Não me engano naqueles discursos – mui críticos da colonização portuguesa do Brasil – segundo os quais a cousa teria sido diferente (e melhor) acaso fôssemos uma ex-colônia holandesa, por exemplo. Diferente, é provável. Melhor… Não sei. Ou não estará aí o miserável Suriname, vizinho nosso, para nos pulguear a orelha?
Portanto, exercendo a minha soberania (concessão, dirá meu nobre editor) sobre este território impresso, informo: o presente escrito não se destina a teses de supremacia de um projeto colonial em detrimento de outro, tampouco se lança a especulações sobre como nos teríamos quedado se – olha o se aí – a empresa holandesa no Nordeste afinal triunfasse. Ora ignoro – ou quero ignorar – os exércitos, as estratégias, os modelos de exploração (quais sejam, estabelecidos em maior ou menor pilhagem dos recursos nativos), o poderio econômico etc.; e desprezo apaixonadamente a noção de pátria e a ideia vulgar de nação. (Ressalvada, claro, a Nação Rubro-Negra). Portugueses, holandeses, espanhóis, ingleses, assim, de modo geral, os colonizadores!, eles pouco me importam e eu os descarto solenemente.
Meu interesse é personalista e se detém a uma só figura – razão fundamental deste texto: João Maurício de Nassau-Siegen (Johann Moritz von Nassau-Siegen), o conde alemão que, contratado pela Companhia das Índias Ocidentais neerlandesas para governar o Brasil Holandês, chegou a Recife em 1637 e ali fundou a sua ambiciosa Cidade Maurícia (Mauritsstad).
A prova clamorosa do sucesso da empreitada de Maurício de Nassau no Nordeste e da força de permanência de sua influência cultural-afetiva junto à população do Recife está, entretanto, no desaparecimento – quase imediato – de seu legado arquitetônico. É sintomático e curioso… Dispostos a apagar – sem vestígios – qualquer marca que remetesse ao período de dominação neerlandesa, os portugueses, ato contínuo à expulsão dos “invasores”, destruíram, de forma consciente, tudo quanto fora erguido pelos holandeses.
E não foram poucas as obras de engenharia encomendadas por Nassau, por meio das quais, de resto, disseminava os valores de sua formação protestante: com a pretensão declarada de transformar Recife em uma capital moderna e dinâmica, investiu na construção de Mauritsstad, cujos traçados urbanísticos ainda conformam os atuais bairros de Santo Antônio e São José, aterrou áreas alagadiças, drenou terrenos, abriu canais, construiu diques, ergueu pontes etc. Para si, mandou edificar dois palácios, Friburgo e Boa Vista, os quais cercou de monumentais jardins que, por sua vez, continham jardins botânicos e zoológicos.
Tudo isso – salvo uma ou outra ruína – perdeu-se. Não fosse a arte, sempre ela, e nada teríamos de material – de físico, concreto, palpável, visível – sobre os quase sete anos de governança de Nassau no Nordeste. É espantoso; milagroso – eu diria. Tudo foi ao chão, prédios inteiros, sólidos edifícios, frondosos palácios; e hoje, improvavelmente, são os desenhos e as pinturas de artistas viajantes os únicos guardiões daquele tempo; os derradeiros heróis ilustrados, senhores daquela história.
Jamais me parecerá pouco que um colonizador – um “invasor”, comandante frio de um exército acostumado a guerras e conquistas – tivesse a preocupação de contratar para sua comitiva, em pleno século XVII, um grupo de artistas; e isso com a clara intenção de documentar, para si, os cenários e os povos do Brasil.
Quando ouço alguém exaltar a de fato extraordinária Missão Francesa de Dom João VI – que, em 1816, fez vir ao Rio de Janeiro artistas como Debret, Taunay e Grandjean de Montigny, entre outros –, sempre me pergunto, sempre deslumbrado, sempre instigado: e Nassau, meu deus?; o que dizer da iniciativa de Maurício de Nassau!?
Sim, é evidente que havia muito de vaidade naquilo. O conde, cultíssimo, ao mesmo tempo bem-relacionado e ambicioso, não estava alheio aos costumes da aristocracia europeia, cujos gostos então já se voltavam para as artes, compreendidas também como um símbolo de status; e era natural que desejasse constituir uma coleção própria e, mesmo, acumular bens culturais para, num futuro incerto, presentear poderosos e lhes colher a proteção e as benesses.
Mas e daí?
Nassau era, antes de tudo, um amante das artes. Enquanto esteve no Brasil, entre 1637 e 1643, e a partir das poucas notícias de que dispomos sobre os seus palácios em Mauritsstad, aventa-se que telas de Frans Post e Albert Eckhout lhes tenham decorado – com destaque – os salões mais importantes. Sabe-se que esses artistas eram então tratados com as melhores deferências e distinguidos – algo ainda incomum – como membros especiais daquela corte, e que almoçavam e jantavam à mesa do conde. Eram muito bem remunerados e, ainda que tivessem obrigações artísticas contratuais a cumprir, estimulados a produzir livremente e providos de todas as facilidades para tanto.
A idéia do mecenas moderno – o homem poderoso, hoje comum, quase banal, que financia criações artísticas generosamente – tem em Maurício de Nassau um de seus mais relevantes fundadores. E isso – repito – na década de 1640!
Venho de me dedicar longamente – por quase um ano – ao catálogo raisonné do pintor Albert Eckhout. Já conhecia a obra completa de Frans Post – publicada, com sucesso, pela editora em que trabalho – e era, como se nota, antigo admirador e entusiasta de Nassau. Sabia, porém, muito pouco de Eckhout.
Apesar das belíssimas paisagens de Post, creio (hoje posso afirmar) que nenhuma obra representa melhor o período holandês no Brasil e, portanto, as pretensões intelectuais de Nassau e o modo como compreendia e se relacionava com as culturas aqui de súbito reunidas, que a de Eckhout; e isso por um motivo simples: ele foi o retratista oficial daquela corte e, com fabulosa originalidade e inegável habilidade técnica, pintou alguns óleos cuja observação é impactante mesmo para os padrões visuais correntes e que representam e documentam um momento muito peculiar de transformação. Mais do que retratos das gentes, dos brasileiros, dos índios, dos negros, dos mestiços etc. – o que, por si só, já significaria uma inovação espetacular –, são retratos do encontro entre esses povos; e se carregam de todas as consequências imediatas disto.
Que se tenha em precisa conta sempre o seguinte: Frans Post e Albert Eckhout foram os primeiros pintores viajantes que retrataram o Brasil; os pioneiros. É evidente, pois, que criaram sob um olhar condicionado, certamente contaminado pela busca do exótico e em perfeita consonância com a visão eurocêntrica segundo a qual tudo quanto estivesse do outro lado do Atlântico seria excêntrico e genericamente definido por Novo Mundo.
Uma vez que fosse o retratista de Nassau e que se dedicasse especialmente a representar as pessoas recém-chegadas que compunham a novíssima população brasileira, é em Eckhout – no trabalho desse pintor – que se revelam de maneira mais candente os preconceitos, as tensões e as expectativas daqueles encontros.
Aqui, vou me dedicar, brevemente, à Mulher africana do artista, este monumento à sexualidade e à fertilidade ou, mais formalmente, à interação entre as gentes e à fluidez entre os limites étnicos; quadro que avalio ser uma obra prima. Afora o fato de que a figura seja a precursora – ainda não reconhecida e valorizada – do modelo de silicone em voga nos seios (prestes a explodir) de algumas moças da tevê, representa, por meio de seu corpo vigoroso, mas, também, de suas (breves) vestes e de seus adereços, e do panorama de fundo, a reunião idealizada de vários povos do planeta em um ambiente tropical, e simboliza, de uma maneira não menos fantasiosa, o projeto colonial de Maurício de Nassau e o jeito pacífico, ameno, miscigenado, firme mas discreto, como desejava impor o seu domínio. (Tudo seria maravilhoso, mas desde que sob seu controle).
Trata-se – não nos esqueçamos – de uma negra africana e, pois, de uma escrava. Tal qual Eckhout, no entanto, ela é igualmente estrangeira – o que os aproxima. A composição da tela é, como se diz, “uma viagem”, e agrupa, por exemplo, num litoral claramente brasileiro (em que índios pescam à praia), um cesto transbordante de frutos tropicais, uma saia e um chapéu africanos característicos e um cachimbo tipicamente europeu, assim como podem ser também classificados os brincos burgueses e o colar de pérolas.
O conjunto resulta numa saborosa mistura – francamente artificial – de elementos de diversas partes do mundo, espécie de Epcot Center da época, que se destinaria, especulemos, a forjar a identidade cultural do futuro sob as rédeas dos holandeses e, especificamente, de Nassau. (Aliás, a mesma interpretação serviria, com singelas adaptações, à Mameluca de Eckhout). A criança do quadro, o filho, ouso dizer, indica – nada a ver com o norte malicioso que dá à espiga de milho – este porvir de dupla nacionalidade harmônica, ao segurar o cereal, próprio às Américas, e o pássaro identificado como a “ave do amor africana”. Era a paz – a união – permitida pela generosa matriarca da humanidade, a Sra. Europa, e concedida, como uma graça, pelo Governador-Geral, o conde Maurício de Nassau.
Estou entre aqueles que consideram que os maiores personagens históricos brasileiros só logram de fato a grandeza quando enfim homenageados por um enredo de escola de samba carioca. É verdade que nem sempre funciona, como nos lembram os desfiles que reverenciaram tipos como Beto Carrero, Chico Recarey etc. Exceções terríveis que confirmam a deliciosa regra.
Nassau, não obstante fosse o “invasor” e, logo, o inimigo, aquele que desafiou a ordem portuguesa e o orgulho da tradição conquistadora lusa, brilhou, direta ou indiretamente, em dezenas de enredos que cruzaram a passarela ao longo das décadas – os do Império Serrano em 1959 e 1968, o da Vila Isabel em 1972 [obra de Martinho da Vila, que, aliás, refere-se ao conde, com imensa felicidade, como “Bom Nassau”], o da Beija Flor em 1982, o da São Clemente em 2004, entre outros – e que resultaram em alguns sambas memoráveis.
Ao menos um deles é supremo: aquele – “Pernambuco, Leão do Norte”, de Silas de Oliveira – com que o Império Serrano foi vice-campeão do carnaval de 1968. Trata-se de uma letra concebida sob a visão dos portugueses, dos vencedores, e que dignifica a luta daqueles que expulsaram os holandeses e restabeleceram o controle patrício do Nordeste. No entanto, a despeito do tom de glorificação à reconquista triunfal, o samba-enredo, bem a seu início, reconhece e distingue – num verso tão curto quanto elegante – o nome e a honra de Nassau:
“Esta admirável página
Que o passado deixou
Enaltece a nossa raça
Disse um famoso escritor
Que Maurício de Nassau
Na verdade foi um invasor
Muito genial (…)”
Não poderia ser mais justo.