Arte de Alvaro Seixas, capa da Amarello Erótica.
#48EróticaLiteratura

Relâmpagos permanentes

“Vêm até nós; passam-nos os cendais, fazendo uma escrita leve na superfície, vão até o fundo e lá traçam letras fortes, cercadas de diabruras”. Assim se descreve uma das diversas uniões eróticas que proliferam no livro Rosa mística, da uruguaia Marosa di Giorgio. Aqui mãe e filha se unem a figos sacrodiabólicos, dotados de “dois pênis vermelhos, arroxeados”, “um para cada uma”. Em outra parte, uma menina conhece a “dor sexual” e o “prazer sexual” ao se tornar a senhora do Furão, do “furão”. Adiante, uma jovem ama um planeta, com seu membro “enorme, de pura esmeralda”. Outras ainda gozam com um bicho, uma figura, seres informes e sem nome. Mais além… Daria para agigantar a lista, tantas são as possibilidades concebidas pela imaginação indômita de Marosa.

Não à toa seu livro — em tradução de Josely Vianna Baptista — inaugura a coleção de escritos eróticos Sete Chaves, lançada pela editora Carambaia com curadoria de Eliane Robert Moraes. Se o mote da coleção são as “inumeráveis” “portas e comportas lúbricas” abertas por Eros, os contos de Marosa não nos permitem esquecer que, nesse domínio, os caminhos “se bifurcam, e logo se bifurcam outra vez” — e que a escrita erótica potente deixa-se afetar pela abertura, furor e multivalência do desejo sexual. Voltamos ao início: como o sexo-escrita apresentado em um dos textos de Rosa mística, a autora nos oferta uma “escrita leve na superfície”, mas com “letras fortes, cercadas de diabruras”. Vejamos.

O mundo construído por Marosa di Giorgio remete aos contos de fada, às fábulas, à infância. À semelhança dos contos maravilhosos, o tempo é ancestral; o cenário é o bosque, o jardim; as personagens — quase sempre crianças ou moças — deparam-se com animais humanizados, monstros e outros seres fantásticos. Muitas vezes, o tom manifesta uma ingênua candura. A inocência convive com o terror, entretanto. Os parceiros assediam, fuçam, devoram, despedaçam, desejam matar muitas das protagonistas nas 40 narrativas breves da primeira parte do livro, “Lumínile”. A experiência é ambivalente: a dor e a vergonha são simultâneas ao prazer; a vítima, beneficiária da crueldade. Em “Rosa mística”, narrativa longa que encerra a coletânea, a protagonista é perseguida, humilhada, martirizada – e assim goza, “ascendendo ao céu”. Nenhuma ingenuidade. A perspectiva infantil convive com o olhar provecto de quem dá a ver, pela hipérbole, a violência de Eros.

Essas “letras fortes” revelam outras diabruras. Talvez a mais fascinante delas seja a erotização da escrita. Eros, em Rosa mística, desestabiliza não só o sexo. O erotismo faz a linguagem delirar. Estamos diante de textos de gênero fremente, degenerados. Os contos da primeira parte do livro tocam o lirismo, com maior ou menor intensidade. Por vezes, a fruição da camada sonora da língua aproxima o texto do poema em prosa: “Só a amapola, a sós denunciada, rosada rosa, cravo de si mesma, engenhoca em gazes, tule sem donas e jardineiro querubim”. Em outros momentos, a prosa se torna verso, em uma franca metamorfose:

E elas iam copulando de modo leve e fulgurante.
Lá nas alturas,
um pouco mais perto do céu.

Até a estabilidade narrativa está abalada. As personagens irrompem, somem, sofrem abruptas transfigurações ou se desdobram sob o domínio de um corpo tornado alteridade tirânica, com uma “sede imensa”. Os narradores — ainda quando externos — questionam seu saber, fecundam dúvidas: “já?”, “(como era?)”, “o que vai acontecer?”. A ação avança ora aos sobressaltos, ora em vaivéns — tudo um “escorregadio sim e não”. O tempo vacila: pode ser “de dia e de noite; escuro, claro”. O cenário é instável: “em frente e ao longe”, “próximas e distantes” nomeiam idêntico e diverso espaço. A separação entre a paisagem e as personagens também se dilui. Natureza, pessoas são atraídas pela mesma pulsão erótica. De um lado, a “senhora” pode estar unida, por um vínculo invisível, desejante, ao que a cerca — palavras ou coisas: a cogumelos que crescem “numa abside do quarto”, “com uma fragrância sexual, leve”; a palmeiras, “aqueles menires rombudos, de pura palha”; à descrição de berinjelas, “potentes, escuras” e “o sumo de um amargor delicioso”. De outro, o vigor da natureza compete com os parceiros da “senhora”: o influxo de um arco-íris, “próximo e potente”, causa vergonha; os gorjeios que circundam a “atividade carnal” inquietam, apavoram, fazem perder a potência viril. O mundo ganha corpo. O corpo se transforma aos eflúvios do mundo.

Nesse universo onírico — em que isso é aquilo —, a consistência da linguagem estremece. Jogos eufônicos e paronomásias geram expressivas metamorfoses do corpo feminino. A vulva se transverte em uma “valva desmesurada”; o corpo — “todo diabolizado” — ganha “valvas por toda parte”; a senhora por fim vira “uma valva enorme, inteira”. Tal deriva, atraída por analogias sonoras, expande a porosidade da mulher ao salientar as profusas possibilidades eróticas propiciadas pela abertura ou pelo fechamento de seu sexo. Mais: o gozo do significante realça a dissolução das identidades rígidas em Rosa mística. A vulva é “vulvo”, assim como ela “era homem e mulher”. Comumente prefixo, o “vulvo” perde sua fixidez, libertando-se para participar de forma autônoma das frases e cenas eróticas.

A sintaxe é outra a agitar os sentidos. Marosa várias vezes omite o sujeito das orações — agente e objeto indiscerníveis. Em outros momentos, a interrupção da frase sustenta a coexistência do duplo sentido, que a narrativa não vem a pacificar:

— Você já se entregou, imagino. Há esposas que permanecem virgens.

— Eu não — respondeu ela.”

Virgem ou entregue? Difícil definir, quando se sabe que a perda da virgindade — como qualquer alteração do corpo em Rosa mística — é reversível, incerta: “Não. E sim”. Os sinais de pontuação transtornam, da mesma forma:

— Me deixe, vamos beber alguma coisa, um pouco de leite, de santidade. Eu vou para um altar do qual não voltarei. Mais. Ele ficou meio atordoado, mas lhe fincou um dente outra vez.”

Não voltar mais, pedir mais: desejo e resistência se identificam nessa mimese equívoca, pontuada por incertezas e ambivalências. Não raro a indefinição é um convite à imaginação libidinosa. Nomeada de forma imprecisa, a cena erótica se abre à fantasia de leitoras e leitores, estimulados a elaborar o que seriam essas “outras coisas miúdas, como botões de rosa para cá e para lá. Dessas coisas que dão felicidade”. O assombro pode decorrer da nitidez, por outro lado. O sexo aparece frequentemente às claras. “O realismo da narração contrasta, porém, com a irrealidade das cenas narradas”, conforme bem notou Eliane Moraes em seu posfácio à edição. Os parceiros são incomuns: botânicos, animalescos, monstruosos, diabólicos, divinos, planetários. Justo essa extravagância alimenta o prazer:

Comeu o que havia ali entre as pernas dela. Por fim, ele a possuiu com o focinho.
Ela se aventurava, ronronava, sea justava a ele e dizia: — Meu Deus, que focinho!… Meu Deus, que focinho!…”

O sexo — descomedido e extraordinário — aproxima-se da devoração da parceira, alimento diminuto para uma lubricidade insaciável. O corpo feminino, por sua vez, expande-se, com pedaços “situados um pouco longe dela, separados”. E transborda, expelindo flores, sangue, ovos, leite, pérolas:

“(…) os pequenos seios com violetas nas pontas, e que deixava sempre nus para exibi-los, como faziam todas as virgens nesse lugar. Ele arrancou com a língua as violetas, e saiu outra coisa de dentro do mamilo, uma penugem, umas perolazinhas prateadas, que ele tirou, com o pênis, de cada mamilo; copulou com os dois.”

Todo aberto a Eros, o corpo da mulher é difusamente penetrado. Repartido, ele se exprime: o ânus grita “doces gemidos”; os mamilos “cochicham”; a vulva parece chorar. Não se trata de simples metáforas para os efeitos ordinários do sexo. No universo ficcional de Marosa, as alomorfias orgânicas denotam fantásticas oportunidades de gozo — vividas pelas personagens como experiências familiares, embora insólitas.

No centro do vórtice que tudo transforma, Eros corrói os referentes sociais e as distinções consolidadas. O cotidiano lá está, pervertido; os tabus, corroídos pela exuberância do desejo. O casamento se aproxima do puro coito ou do rapto sem resgate. A maternidade confina com o monstruoso, amiúde autogestada e geradora de seres informes. Os significantes sagrados são igualmente subvertidos pelo erotismo: “Diabo” e “diábolo” são cambiáveis; “zonas benditas”, “zonas malditas” se equivalem; a mulher confirma ser a Divindade enquanto “requebra o traseiro” e “apoia as tetas no chão”. Ascende-se à experiência mística: as alturas sagradas descem ao baixo ventre.

Eros blasfemo, mas não só: antes desenfreado, ubíquo. Para Marosa, “tudo o que existe está erotizado, tem um relâmpago visível, ou não, permanente”. Esse erotismo onívoro — irrepetível e eterno a uma só vez — é a surpreendente diabrura de Rosa mística.