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Partículas que se espalham: a fragmentação esquizofrênica do papel do intelectual nos dias de hoje

por Thiago Blumenthal

Uma campanha abominável para distrair a opinião pública e cobrir os próprios erros. Para Émile Zola, intelectual e escritor francês da virada do século XIX para o XX, a república francesa falhava em detectar e punir a mentira do caso Dreyfus: questões nacionalistas, frequentemente despertas em contextos de fragilidade política, se sobrepuseram na condenação de Alfred Dreyfus, em 1894, e o então oficial de artilharia do exército francês foi levado à Ilha do Diabo, na Guiana Francesa, sob regime perpétuo. Seu crime? Ser judeu. Nenhuma prova foi encontrada, e o oficial só seria solto após aproximadamente meia década na prisão, quando evidenciou-se que o verdadeiro espião a serviço dos alemães era Charles-Ferdinand Walsin Esterhazy.

O “J’Accuse…”, como ficou conhecido o artigo que estampou a primeira página do jornal L’Aurore de 13 de janeiro de 1898, acabou por se tornar um dos escritos mais célebres de Zola, e um dos documentos mais corajosos da história. No texto, o escritor acusa as mais altas patentes do exército francês do que chama de “une campagne abominable pour égarer l’opinion et couvrir leur faute”.

Dreyfus, apesar de ter sua carreira militar maculada, jamais recebeu qualquer tipo de exoneração. E Esterhazy, ao contrário, jamais foi condenado.

Zola, ao conceber seu “J’Accuse…”, fala em nome de uma mobilização nacional; sua voz amplifica o grito de muitos, judeus e não judeus, contra a injustiça e contra o antissemitismo característico da sociedade francesa. Levar tal indignação à primeira página de um jornal de grande circulação, mais do que um ato de coragem, cumpriu um papel cabido aos intelectuais de qualquer época; o de pronunciar-se de maneira independente e em prol de uma causa social. Escrever era estampar o próprio rosto, sujeito a achincalhações, escárnios e até à censura. Mas também era ser destacado para falar em nome de uma coletividade, com valores em comum, e expor, evidentemente, o discurso de muitos que não possuem voz e demandam um representante.

Por onde andará este Zola nos dias atuais é o que muita gente se pergunta. Tivera sua importância relativizada diante dos meios de comunicação que passaram a dar mais acesso (e palavra) ao indivíduo? Ou nossos tempos não mais necessitam desta figura simbólica, que sobe no alto de uma grade, megafone em punho, e discursa contra uma autoridade ou uma ordem que precisa ser revogada e recriada? Somos capazes, individualmente, de dar conta de nossas posições na sociedade sem uma representação máxima que se manifeste em nossos nomes? Talvez um pouco de tudo. A importância deste intelectual, conceituado como erudito, muitas vezes como polímata, destinado a, mais do que pensar nossos tempos, defender nossas ideias, teria sido reduzida no imenso cataclismo que vivemos hoje?

Estar junto, conviver junto, defender um mesmo valor, combater uma injustiça, juntos, tudo isso ainda faz sentido, sem dúvida, à nossa sociedade, ainda engatinhando rumo a um século XXI para lá de obscuro. Se não estivermos juntos e se não formos representados por um pensador que nos ajude a entender o que e como vivemos (e devemos viver), estaremos fadados ao obscurantismo de opiniões disparatadas, reproduzidas insanamente em redes sociais, a partir de qualquer fato, do cotidiano mais mesquinho às discussões políticas que vão mudar os ventos e os rumos de uma nação inteira. E o grande questionamento que devemos nos fazer é de que modo isso acontecerá, e como afetará a todos nós, que vivemos no calor dos acontecimentos, e ainda sem esta representatividade.

Há quem suponha que o intelectual de hoje falha em aparecer por ter sido sugado pelo individualismo cada vez mais presente, de forma que não há espaço sequer para um representante de nossos ideais: tornamo-nos nossos ideais, damos conta de todos eles sozinhos. A possibilidade da publicação, graças às redes sociais, criou essa falsa impressão de poder, do discurso e do texto que será lido por todos, ou, no mínimo, por muita gente. Pela primeira vez na história, nunca foi tão fácil expor uma acusação à moda de um “J’Accuse…”. Temos o Facebook, o Twitter e outras ferramentas de publicação instantânea a partir das quais, em algumas linhas e em um clique, dezenas, centenas ou milhares de pessoas receberão, cada uma em seu computador ou dispositivo móvel, aquele conteúdo, aquela determinada indignação. Somos, pela primeira vez, lidos, e isso gera um poder inédito à sociedade.

Seja por um círculo social restrito (amigos, família, colegas de trabalho) ou em círculos maiores, todos nós temos nossos leitores. De modo que o papel do intelectual se fragmenta em discursos perdidos pelo espaço, pelo limbo gerado no tráfego diário e incessante de bytes de informação. O meu temor, que pode ser desdobrado em apelo fácil, é que esse poder se torne esquizofrênico, que apedrejemos todos uma figura que chegue à primeira página de um jornal, e que as ideias se percam em nada mais que partículas, mais do que pensadas, digitadas. Quase uma sujeira espacial, mas com um poder de gerar novos Dreyfus, de acusarmos as causas erradas, pelos motivos errados. Com um poder atômico de fazer tudo explodir ao nosso redor.