A duzentos e tantos quilômetros de Atenas, numa bacia do sudoeste do Mediterrâneo conhecida como Mar Egeu, existe um conjunto de diminutas ilhas, que inclui as turísticas Milos, Santorini, Mykonos e Naxos. Os gregos do período clássico batizaram essas ilhotas de “cíclades” (kyklades), por formarem um “círculo” (kyklus) em torno da ilha de Délos, sítio de um importante culto. Hoje, esse arquipélago encarna nossa fantasia perfeita da “romântica ilha grega”: são pequenos estilhaços rochosos, com escarpas ricas em cores minerais variadas, encrustados no azul intenso do Egeu, que se funde com o celebrado céu cobalto-púrpuro do Mediterrâneo. Nessas latitudes, a cisão entre mar e ar é tão tênue que os azuis se cindem em profusas variações, contrastando com os belos penhascos áridos das ilhas.
Há mais ou menos quatro mil anos, nessas ilhas, uma civilização pré-histórica vivia seu auge e nos legou um estatuário do qual se enamoraram arqueólogos e antropólogos, artistas e colecionadores: são estátuas de alva brancura, talhadas em mármore cintilante, que aludem à forma humana com doce suavidade e notas de abstração. Quem contempla esses objetos comumente lhes elogia a “quietude”, o minimalismo, o “modernismo” longilíneo e a elegância resguardada.
As estatuetas dessa cultura inspiraram grandes poetas modernos dos volumes corporais, artistas como Arp, Brancusi e Henry Moore (que tinha três estátuas em sua coleção particular). Um exemplar do Museu da Arte Cíclade, em Atenas, celebrado por suas linhas angulares, foi apelidado de “Modigliani”, reforçando as associações frequentes entre os “ídolos Cíclades” (como, muitas vezes, são conhecidos) e as tradições artísticas do século XX.
Mas essas estátuas guardam ainda muitos mistérios e devemos também tentar olhá-las reinserindo-as em seu contexto arqueológico. Esta arte, antes de tudo, é parte da evidência material do repertório visual de uma cultura da Idade do Bronze do Mediterrâneo. Dois trabalhos revolucionaram o modo de pensar a arqueologia dessa região. Em primeiro lugar, o livro The Emergence of Civilization: The Cyclades and the Agean in the Third Millenium BC (1972; reeditado em 2010), de Colin Renfrew, um dos grandes clássicos da arqueologia moderna, responsável por estabelecer muitos dos parâmetros contemporâneos da discussão sobre a história das ilhas, além de utilizar o “caso Cíclade” para exemplificar certos processos civilizatórios que o autor toma como centrais à compreensão de como culturas tornam-se cada vez mais complexas, especialmente no que diz respeito à organização sócio-econômica, modo de produção agrícola, manipulação simbólica e sofisticação tecnológica.
Em segundo lugar, uma poderosa e respeitosa crítica ao trabalho pioneiro de Renfrew foi elaborada por Cyprian Broodbank e publicada sob o título An Island Archeology of the Early Cyclades (2000). Broodbank, como Renfrew, quer fazer um duplo trabalho: por um lado, o levantamento científico detalhado da evidência arqueológica; por outro, utiliza o “caso Cíclade” para pensar questões mais amplas a respeito das civilizações humanas. Privilegia, porém, variáveis distintas das de Renfrew: Broodbank trata as ilhas Cíclades como um caso de arqueologia insular. Ou seja, “ilhas” são habitats que impõem certos desafios particulares à adaptação humana, como, por exemplo, a necessidade de desenvolver tecnologia náutica e ter a exploração do mar como recurso econômico. Para ele, entender os artefatos cíclades demanda considerá-los como produto de uma cultura ilhota. Renfrew olhou para as ilhas comparando e contrastando-as com outros processos de incremento em complexidade cultural em diversas regiões do globo (Oriente Médio, por exemplo); Broodbank optou por utilizar como modelo de comparação e contraste o caso de outras culturas insulares.
Lado a lado, os livros de Renfrew e Broodbank formam um riquíssimo díptico sobre as ilhas: ambos são textos cientificamente amparados em evidências arqueológicas, sem perder de vista grandes questões humanas como as noções de “cultura” e “civilização”. Esses textos são ótima companhia para uma viagem à região.
Uma consequência do aumento do interesse arqueológico nas Cíclades foi uma série de descobertas que nos obriga a alterar completamente o modo como olhamos seu estatuário. Muitas representam mulheres (com algumas estátuas masculinas e outras, hermafroditas), estão comumente associadas a túmulos e cemitérios e eram originalmente pintadas de maneira nem sempre realista (Picasso teria aprovado!). Boa parte dos pigmentos utilizados não ocorre naturalmente na região e demandara alguma forma de comércio ou viagem para sua obtenção. Além disso, as proporções das estátuas sugerem um cuidadoso planejamento matemático antecipado, fazendo uso até mesmo de um compasso para guiar o escultor.
Tudo isso nos diz que o estatuário Cíclade é resultado de um grande investimento cultural. Sua nova vida como fonte de inspiração para a escultura modernista merece ser respeitada e festejada, mas é também uma aventura buscar compreendê-la em seu contexto original e aceitar seus aspectos enigmáticos ou menos palatáveis.
Arrisco uma chave-de-interpretação. O contexto funerário parece-me central. Imagino ritos paralelos transcorrendo: o adorno do corpo morto e o embelezamento da estátua. Enquanto o corpo do falecido se resfria e se enrijece, o mármore da estátua é “aquecido” e “amolecido” pelas mãos do escultor. A vida perdida de um é conferida (transferida?) à pedra antes tão “fria” e inerte. O corpo mole e frágil se esvai em cinzas; já a estátua dura 4 mil anos.