#28O FemininoCulturaSociedade

O Feminino

por José Ernesto Bologna

Início, mansamente incisivo, chamando a atenção para o artigo definido masculino, “o”, para se referir ao “feminino”.

O que significaria um título como “A Feminina”?
Quem entenderia, e comentaria o que a respeito?
Seria o início da história de uma “mulher feminina”?!
O nome de uma loja? A marca de uma nova lingerie?

Uma cultura constrói uma linguagem – uma linguagem reflete uma cultura – em que conceitos e valores, conscientes e inconscientes, se sucedem no discurso, tanto erudito e estruturado quanto cotidiano e coloquial.

Falando, fixamos… Fixando, falamos…
É um contrato… Ele desenha um círculo…

Quebrar esse contrato gera medo, irritação, pode chegar ao ódio, construir ideologias, fazer aflorar revoltas justas, vingar antigas prepotências. Revela o quanto a reversibilidade – ou a irreversibilidade – da linguagem significa arejamento, inclusão, revisão e, portanto, inteligência, e o quanto a rigidez dos seus fraseados gera ilusão, exclusão e preconceito.

Diriam os linguistas de intenções culturalistas:
— Se já cabe nas palavras, um dia caberá nos costumes e valores, transformando os hábitos. Se ainda cabe convicta e veementemente nas palavras, é sinal do quanto a rigidez da tradição se defende das mudanças com as palavras.

Ou seja, as mudanças se mostram nas palavras.
Daí a importância do discurso.
Daí, para quem os tem em alta consideração, a importância dos poetas.
Mas nem todos assim creem. Talvez porque não vejam, talvez porque vejam a partir de pontos de vista cujas história e origem sejam tão alheias que não lhes cabe considerar.

Dentre esses outros – dos que não enxergam as palavras e o frasear como espelhos da cultura, considerando que é possível estudar uma cultura, sua rigidez e suas mudanças, a partir das suas palavras –, dentre esses muitos, podemos arbitrar alguns conjuntos.

(i) Aqueles que consideram “o feminino e o masculino” – notem que não escrevo “a feminina e o masculino” – o produto evolutivo de um processo darwinista milenar, em que o acaso e a determinação interagiram de maneira a criar poderes associados a papéis sociais e papéis associados a poderes. Musculosos machos caçadores, ancestrais e seminais, servindo e protegendo cuidadosas fêmeas maternais receptivas, e vice-versa, num contrato arqueo-antropológico capaz de oferecer as fundações de um certo tipo de discurso para os milênios sucedentes.

(ii) Aqueles que creem firmemente, conforme fixa a Escritura, que “(…) macho e fêmea os criou (…)”, descartando a fé na pretensa ciência evolutiva em nome da religiosa fé criacionista.

(iii) Aqueles que se dedicam a engendrar mil sutilezas, na tentativa de integrar tais abordagens, buscar outras e inovar.

Aqui, no entanto – mesmo atento, respeitoso, e incluindo tais hipóteses –, eu escolho o caminho das palavras. Elas refletem a realidade – ao menos algumas realidades – e podem mudar a realidade – ao menos algumas realidades. Consideremos uma declaração:

Assim como a alimentação humana não é um ato biológico cujo objetivo é a sobrevivência – ela é um ato social cujo objetivo é o compartilhamento e a celebração das relações sociais e do alimento –, também a sexualidade humana não é um ato biológico cujo objetivo é a reprodução – ela é um ato social cujo objetivo é o prazer, incluindo o compartilhamento e a celebração dos corpos.

Pois bem, nesses maravilhosos tempos bicudos, nos quais discutimos intensa e apaixonadamente, há décadas, muito daquilo que imaginamos – ilusoriamente – ter estabilizado por séculos, qualquer tema se torna rapidamente polêmico, gerando disputas e polarizações cujas latitudes vão de estudos acadêmicos e reportagens de improviso a passeatas inflamadas e rupturas de amizades, afetando fortemente as expressões, as relações e, certamente, a literatura, a arte e a educação.

O “feminino” – com sua inexplicavelmente obrigatória contraparte, o “masculino” – não ficaria de fora do elenco dessas discussões centrais. Que seja!
Natural ou cultural?

A resposta, a meu ver, integradora, é “culturalmente natural e naturalmente cultural”, principalmente via discursos, cujas intenções devem ser interpretadas não apenas nas maravilhas que tais antigas falas procuraram evidenciar, mas nos horrores que sempre procuraram ocultar e disfarçar.

Um desses horrores, hoje em evidência transformadora e corajosa, é a opressiva prepotência da tal “estabilidade bem assentada dos papéis sociais dos gêneros”, ao ver de muitos “consolidadora de uma sociocultura contratada, e funcionando muito bem”, com suas barbaridades escondidas.

Do lado analítico, sempre usando as palavras, esse discurso por milênios ocultou a intenção de submissão via opressão, a atribuição dos papéis “chatos”, na milenar exploração, usando o gênero.

Gerou consciência da evidência, gerou revolta, gerou novos discursos, e hoje interdita frases e expressões no curioso mecanismo histórico segundo o qual “o (novo) discurso proíbe o (velho) discurso” e se estende para além “do feminino”, procurando “a feminina” – que, como vimos de saída, ainda não existe na linguagem –, mas já dá sinais como “conceito” e, portanto, existirá.

No entanto, há mais.
Como é usual em tais (r)evoluções, as ousadias vão além!
Entre “a feminina”, “o feminino”, “a masculina” e “o masculino”, o que encontramos?

A masculina e o feminino poderiam se dar bem?
Também a feminina e a masculina?
E que tal a masculina e a masculina?
Ou, quem sabe, o feminino e o feminino?
Ou, até, haveria ainda espaço para o masculino e a feminina?

Consideremos as frases “essa homem é um mulher”, ou “esse mulher é uma homem”, e, até mesmo – que arcaico! –, “esse homem é um homem” e “essa mulher é uma mulher”, ou “esse homem é masculino”, “essa mulher é feminina”, ou “esse homem é feminino”, “essa mulher é masculina”.

Esperta e ágil, a cultura criou novas palavras: masculinizada e afeminado.

Atentem às terminações, masculinizada e afeminado, dando um sentido de “processo”: (…) ela foi se masculinizando, ele foi se afeminando, um dia se encontraram no éden das oposições reversas, e foram felizes para sempre (…)

Descartando as ironias que tangenciam o mau gosto – necessariamente ilustrativo e ilustrativamente necessário –, um dia, faz tempo, a linguagem aconteceu para os humanos de maneira tão estruturada, estruturante e refinada que se tornou “Grande Senhora”, construtora de contratos e cultura, assim como de ardil, cinismo, exclusão, prepotência, mentira, preconceito, opressão e traição.

Os humanos desenvolveram competências especiais – fazer, falar, pensar, sentir – e se tornaram capazes de fraturar essas instâncias “fazendo o que não sentem ou que não pensam”, “sentindo e pensando o que não fazem” e, até mesmo, “fazendo e falando o que pensam e sentem” – que perigo! –, num jogo social e cultural, também sexual, também oral, anal e genital, ético e erótico, prático e político, cuja complexidade simplesmente ri das nossas precárias categorizações e dos nossos ridículos esforços de “fixar nossos costumes”, abrindo mão da única possível maravilha da nossa humana condição: transformar, procurando aprimorar, a cultura via linguagem.

A cognição funciona por categorização, está no meio.
Antes dela, a intuição nasce integrada.
Depois dela, a imaginação planta o futuro.
Quando os humanos descobriram os substantivos – dando nomes, via fala, a pessoas e objetos –, houve um avanço.
Quando os humanos conseguiram elencar tais pessoas e objetos em conjuntos, dando nomes aos conjuntos, isso dependeu de adjetivos, e houve um grande avanço.

No entanto, foi quando os humanos descobriram que todos os adjetivos poderiam, boiando sobre eles, colorir todos os substantivos que se iniciou o grande salto da imaginação. Nasceu a poética.

Então, todas as representações mentais do mundo podiam se superpor umas às outras, e essa intimidade poderia projetar-se sobre o mundo natural, criar mundos culturais e, até mesmo, emular culturalmente os mundos naturais originais. A natureza da cultura e a cultura da natureza nasceram integradas, até que uma cultura as separou.

Nós não conhecemos a história das culturas que não se apartaram da natureza porque nós não apenas as destruímos como também destruímos seus registros e vestígios. Ao que parece, dos poucos registros que ficaram, essas culturas não tinham um sentido de “inclusão” ou de “exclusão”, tais como temos hoje, por não terem suas categorizações tão rígidas. Talvez já tivessem a capacidade de superpor quaisquer adjetivos a quaisquer substantivos, o que lhes conferia suficiente imaginação para criarem o pensamento mágico – na verdade, uma poética. Não se tratava de categorizar uma homem como afeminado ou um mulher como masculinizada, porque os fatos são os fatos, os sentimentos e as ideias são os sentimentos e as ideias, porque as falas são as falas, os desejos os desejos, integrados num potente todo arcaico. Foi o desdobramento, a atualização – no sentido de uma potência virar ato – dessa ancestral integridade que, (i) categorizando, permitiu cognição; (ii) adjetivando, galgou falar das qualidades; e (iii) colorindo certas coisas com qualidades improváveis, criou o imaginário. Daí a poética estar acima da razão – e acima da política, da estética, da ética, da prática e da erótica. Daí a poética se manter pelos milênios, em qualquer que seja o tempo, como a fonte das nossas esperanças mais potentes.

Assim, é pela poética, e não por outra via contratual, que eu aqui escolho ilustrar as infinitas gradações que se estendem do masculino ao feminino, do feminino ao submisso e ao maternal, do masculino ao heroico e provedor – e vice-versa, tergiversa essa conversa… –, fazendo a esse mundo cultural uma pergunta natural: Por que não cabe? Por que não cabem as evidências existentes, as gradações e as sutilezas que individualizam os indivíduos? Por que não cabem as singularidades singulares que constroem a abstração do universal? …O feminino? …Assim tão masculino?!

O que a floresta tem a dizer sobre o que cabe na floresta?
Sobre o que nasce na floresta, vive e morre na floresta?!
E o oceano sobre o oceano? As estrelas sobre o céu?
Por que a dignidade não é devida pela simples evidência da existência?
Por que a dificuldade de respeitar o direito a ser, só porque nasceu e é?
Por que a dificuldade de acolher aquilo que a vida manifesta?
Observando, estudando e meditando, ofereço uma resposta.

É porque os humanos odeiam os humanos por espaço. Porque esse espaço não é só físico. Ele é mental, é social, é cultural. Porque os humanos desejam e almejam as semelhanças que os façam se sentir espelhados e seguros. Porque os humanos temem as diferenças como potencialmente destrutivas das suas identidades tão precárias e medrosas.

No entanto, alguns humanos – que se consideram, a meu ver erroneamente, mais humanos do que outros – apreciam e são capazes de integrar a cultura e a natureza, acolher o que aparece como vida manifesta, e mostram-se afáveis e curiosos antes de apedrejar sem saber quem. Porque alguns humanos aprenderam que ninguém deve ser julgado, condenado ou excluído por ser aquilo que é inerente ao seu ser próprio, aquilo que ele ou ela não poderia deixar de ser: elea, ou elae, se caso for. Aqui, porém, ao dizer “se for o caso”, eu conduzo a presente caminhada ao seu final.

Da mesma forma que devemos acolher, culturalmente, a natureza que se mostra tão evidente, que devemos evitar os preconceitos – e os preceitos, que intencionam, infantilmente, fixar nossos valores além do que a história das mentalidades autoriza –, não devemos permitir que tais (r)evoluções forcem humanos a desejar o que não desejam, a fazer o que não aceitam, ou a ser o que não são.

Cuidado, portanto, com a sombra semelhante que, reversa, via revolta, via deboche, via anarquismo, deseja apenas destilar, como ódio, as velhas mágoas.

Incentivemos nas pessoas a coragem para olhar dentro de si, saber quem são, e achar no mundo seus justos espaços singulares. Evitemos permitir (e, pior ainda, incentivar) que os humanos cometam os mesmos erros, ao reverso, que hoje pretendem denunciar e corrigir.

É verdade, integradora, que os gêneros evoluíram em processos bioquímicos, que a reprodução sexuada, que a mitose, que a meiose, geraram endocrinologias que influem nos psiquismos e nas disposições afetivas e sociais.

É verdade, integradora, que os humanos, via linguagem, criam e contratam – desejando, ou à violenta revelia – culturas que mudam com o tempo, construindo a história das mentalidades.

É verdade, integradora, que as categorias que criamos para pensar e conhecer a natureza são invariavelmente pobres e precárias face à imensa variedade com que a natureza “não dá saltos” mas, ao contrário, é toda feita de gradientes ante os quais a linguagem está sempre aquém.

É verdade, integradora, que não vivemos hoje, como sempre, apenas mais uma época de transição. Estamos diante da transição de uma época. Tal transição redefine “o feminino” e, com o tempo, criará novas palavras refletindo tal conceito.

Esse “Novo Feminino” é uma “Nova Feminina” para a qual nossas palavras são ainda inconsistentes. Tradicionais adjetivos já não cobrem os predicados que hoje surgem, e os que ressurgem dos milênios soterrados, quando as mães lideravam as divisões e criança alguma era esquecida; quando o mênstruo, o sêmen, o gozo e a gravidez, cada qual com a sua lógica, ainda não eram associados; quando os afetos não censuravam os carinhos, nem os corpos discriminavam as carícias. Essas memórias – naturais?! – constituem o alicerce do que veio, a linguagem ampliou as possibilidades culturais

E aqui chegamos a esse assunto atualmente tão falado.

Não há por que apartar o que foi junto nem deixar de unir o fraturado.