“que, ao menos, outros homens venham à luz por meio da mulher-terra fecunda!
é para cumprir esses votos que o homem molda
as deidades temerosas da fertilidade.”
O simbolismo da terra é uma das portas de entrada para a compreensão da sensibilidade religiosa em civilizações tão diversas quanto a grega, a judaica e a chinesa. Seu estudo também contribui para o entendimento das práticas artísticas.
A terra integra os cinco elementos fundamentais no I Ching, ao lado da água, da madeira, do fogo e do metal. Esse conjunto representa as energias fundamentais que, ao interagirem, engendram a vida. Em Hesíodo, a terra é um princípio feminino, gestada do Caos original. A Terra é primeira com relação ao Céu, que dela nasce virginalmente e com quem ela copula para gerar deuses, heróis e monstros dos tempos primordiais. Esse papel importante, porque matricial, da terra na mitologia grega se reflete na profusão de divindades ligadas ao elemento telúrico; Gaia, Rea, Hera, Afrodite, Cibele ou Deméter são alguns de seus nomes. Também na Bíblia, e em especial no Antigo Testamento, a terra é tingida de simbolismo materno. Ela pode ser, entre outros, a terra agrícola, terra arada que é imagem da alma humana semeada pela Palavra de Deus. Ela também pode ser a matéria de base para a geração humana, terra-argila de que Deus se serve em sua ação modeladora dos seres humanos. Dela sempre nasce algo, espiritual ou material: a fé ou a própria humanidade.
A terra produz – e, com isso, sobretudo aos olhos de sociedades agrárias, ela nutre. A terra sustenta – nela o homem assenta seus pés. A terra encerra – ela é o destino do corpo após a morte, pó entre o pó.
O homem sente essa ligação primordial com a terra. Seu próprio estar-no-mundo se vincula imediatamente a ela. A terra é seu primeiro lugar (ela é terra-topos). Ela é também um dos seus primeiros elementos (terra-stoicheion). A partir da terra-elemento, o homem povoa sua terra-casa. Cria com a própria terra artefatos essenciais para moldá-la: vasos, vasilhas, jarros – tudo o que é fundamental a fazer de um lugar um lar. Também é com a terra que forja esses instrumentos – especiais, por certo, mas ainda assim instrumentos – para curvar a vontade dos deuses às necessidades dos homens, garantindo sua sobrevivência em meio à hostilidade das forças cósmicas: que abundem as frutas e os cereais! Que a terra não cesse de gerar! Que, ao menos, outros homens venham à luz por meio da mulher-terra fecunda! É para cumprir esses votos que o homem molda as deidades temerosas da fertilidade.
A profusão de deusas carnudas deixadas sob a terra pelas primeiras culturas podem sugerir um observador sensível à angústia de dependência desses homens a uma ordem natural que os ultrapassa. Também podem sugerir a importância dos meios de que se valiam esses mesmos homens para magicamente tornar essa natureza indiferente mais dócil a seus objetivos. Que essas estatuetas tenham sobrevivido precisamente enterradas só serve a nos mostrar a importância simbólica da terra, seja como nutriz ou como conservadora, última morada não só do cadáver mas também da memória daqueles que não são mais; por isso mesmo, essa memória pode um dia ser revelada, ainda que de forma fortuita. “E a medalha austera/ Encontrada por um lavrador/ Sob a terra/ Revela um imperador”, escrevia o poeta Théophile Gautier em “A Arte”.
Desde o Paleolítico, a terra crua cobriu e preservou a terra cozida (terra cotta, em italiano) desses artefatos primevos. A mais antiga cerâmica de que temos notícia dessa época é a Vênus de Dolní Věstonice (29.000-25.000 a.C.), escavada na Morávia. Há centenas de outras vênus semelhantes, datadas do Paleolítico e vazadas em materiais diferentes. Se o sentido preciso dessas estatuetas causa debate entre eruditos e especialistas, elas, por certo, com suas ancas redondas e seus seios fartos, fazem imaginar esse passado imemorial da humanidade, esse anseio angustiado de vida e de fertilidade.
Talvez por isso a ligação primordial do homem com a terra tenha se mantido gravada na evolução da escultura, ainda em seus períodos de apogeu. Mesmo quando as mais altas expressões da plástica tridimensional grega elegeram o bronze e o mármore como seus meios de expressão, não cessou a confecção de estátuas em terracota, como as de Tanagra. O mesmo se deu em civilizações como a etrusca e, principalmente, a romana; nesta, a terracota se torna símbolo de um sentimento cultural propriamente latino, em contraponto à helenização. Catão, segundo Tito Lívio, teria lamentado a admiração dos romanos elegantes de seu tempo pelas esculturas refinadas de Atenas e de Corinto, enquanto riam dos toscos deuses de argila dos seus antepassados. Há algo nessa argila das divindades ancestrais, nessa terra desprezada, que remete às origens e à simplicidade das origens (humildade, humus – terra).
Esse simbolismo teria se limitado, na arte, ao mundo greco-romano? Ao ascender ao trono, o Primeiro Imperador chinês, Qin (259 a.C. – 210 a.C.), decide construir um mausoléu, escolhendo a terracota como material para moldar os guerreiros e os pavilhões que o acompanhariam em seu túmulo. O Primeiro Imperador apela justamente à terra originária como companhia para descer à sua última morada no subterrâneo. “No meu fim está meu princípio”. “Do pó viemos e ao pó retornaremos” – da terra à terra. Não haveria, quanto à terra, um sentimento e uma esperança de um recomeço cíclico que redima a frágil presença humana de sua própria finitude? Não estariam esse sentimento e essa esperança inscritos, de maneira inefável, nos artefatos – grandes ou pequenos, quotidianos ou funerários – de terracota? Talvez seja por essa associação simbólica com a vida e o renascimento – e não pela dureza do “bronze perene” de Horácio – que a terracota, na sua singeleza e na sua aparente fragilidade, desafia o próprio tempo.
Rodrigo de Lemos é professor na UFCSPA (RS) e doutor em Literatura pela UFRGS.