Obra de Aislan Pankararu, capa da edição Amarello Futuro Ancestral.

Não sei exatamente quando os insetos chegaram, mas lembro do nó que surgiu enlaçando meu peito, minha boca e meus ouvidos. Os insetos faziam muito barulho e parei de escutar minha voz. Eu já não era muito de falar. Não por falta do que dizer, mas por excesso de palavras na cabeça e de amor no coração. “Não tem como não te amar”, me diziam. E eu respondia, satisfeita, sentindo o cansaço nos olhos. 

 Estudei numa escola só de meninas, muito católica e coordenada por freiras que tinham cabelos curtíssimos. “Tudo o que é feito com amor tem sentido de eternidade”. Essa frase, que nunca saiu de dentro de mim, foi dita por uma freira de cabelos cacheados, que usava óculos de grau com lentes Transitions e tinha uma alegria honesta no sorriso. Ela falava de amor como quem respirava. Achei aquilo bonito, porque desde pequena me sentia sufocada e entupida. Respirar era amar? Esse dito se instalou em mim, revirou minha linguagem como um vírus, e a sensação de areia nos olhos aumentou.

Uma das minhas atividades preferidas é gritar, e esse também era o hobby de quase todas as meninas na escola. Conseguia encontrar todas com o olhar e via os insetos instalados dentro das suas bocas, cada uma com seu motivo. Gostava de olhar para as garotas, sentir toda a força, a raiva, a alegria, o desespero, o alívio, a dor delas. A gente inventava desculpa para gritar na hora do recreio, quando era permitido se rebelar. As freiras estavam ocupadas com alguma danação que as meninas faziam: puxões de cabelo, menstruação surpresa ou gravidez surpresa, uniformes customizados com decote, desobediência, meninas que se negavam a fazer a oração, rebeldias em geral. Ainda consigo escutar as freiras com vozes agudas cantando alto na oração, às sete horas da manhã: “Espírito, espírito”.

Desde os meus oito anos de idade eu carregava comigo duas bananas, papéis cheios de anotações, um terço e um livro. Assim eu me sentia preparada para o que estivesse por vir. Sentia medo e esperança de que algo mudasse completamente o rumo da minha vida. O alarme tocou e me fez voltar para a realidade. 20h59. A caixinha de som que tocava a mesma música há 40 minutos denunciava a bateria fraca. “Não, não posso parar, se eu paro, eu penso, e se eu penso, eu choro.” A voz dramática de Moacyr Franco saía rouca entre os livros da minha estante e ocupava todo o apartamento de 36m2. Fui tomada pela angústia, e os insetos se agitaram: à meia-noite as inscrições do concurso iriam se encerrar. 

Pensei na vida tranquila que teria se passasse no concurso e no emprego em que eu estava, em que o trabalho consistia em fazer contas para que nenhum dos meus chefes tivesse surpresas financeiras. Eu tinha todo o controle do que saía, do que entrava, o que comprar, como comprar. O meu chefe me chamava na sala dele e quase sempre começava a comer uma barra de cereal com tanto chocolate que me deixava enjoada. Ele dizia, com a boca cheia de chocolate e cereais, que só confiava em mim para cuidar dele e do dinheiro dele: “Você será minha eterna cuidadora”. Cuidado era outro nome que eu dava para o amor, e me envolvia nele como uma detetive que fareja vidas que precisam de cuidado. 

Eu me sentia um grande inseto rodeando a vida das pessoas. E eu estava cheia delas, que pediam tudo de mim enquanto eu oferecia tudo que tinha. Me ocupava das pessoas, queria satisfazê-las, amá-las, servi-las. Queria descobrir qual era o inseto que as pinicava, fazer um antídoto com as próprias mãos. Olhava os movimentos das pessoas para tentar antecipar tudo. É disso que você precisa? Você precisa de ajuda? Como posso ajudar? Queria desvendar seus problemas. Vivia cheia de soluções e certezas. Vivia entupida. Queria solucionar a vida antes do amanhecer, e todo dia acordava assustada às sete horas da manhã. “Espírito, espírito, que desce como fogo”. A música tomou meu pensamento, e eu sabia que me esqueceria de tudo. Comecei a fumar o cigarro que tinha comprado, apesar de não fumar. Eu precisava tragar alguma coisa na tentativa de matar os insetos dentro de mim. Não consegui. Nunca consegui fumar. Até hoje consigo ouvir minha mãe gritando meu nome com um cansaço tremendo na voz. Eu morria de medo desse cansaço, porque achava que algum dia ela diria que estava cansada de mim. “Se comporte, minha filha, seja uma boa menina”, ela me dizia. 

Sentia falta de gritar e de ser rebelde; isso me ajudava a tirar o peso do peito. Fiquei viciada em parques de diversões, e reservava o último final de semana do mês para gritar em todos os brinquedos. Foi a forma que encontrei de botar os insetos para fora. Havia algo na minha voz desesperada na montanha-russa que abria espaço para eles saírem. Era o único lugar em que me permitia gritar. “Tudo o que é feito com amor tem sentido de eternidade.” Tinha medo da freira com lentes Transitions aparecer e falar sobre amor. Todos os dias eu me lembrava de esquecer e seguia em frente com o desprazer colado no meu corpo. Estava trancada junto com os insetos, que faziam um barulho estrondoso. Tinha medo de falar e meus insetos saírem um por um, revelando tudo o que sabiam sobre mim. Aprendi a sorrir e a falar somente o necessário. Eu era prisioneira e aprisionava os insetos. Vítima e algoz. Me sentia um caquinho de dor que passava pelo mundo. Acho que foram tantas as palavras que me magoaram que acabei me afogando dentro de um abismo sem fim, como se não pudesse me manifestar toda vez que alguém dizia algo cortante. Eu me entupi de tantas vidas que vivia sem sequer saber da minha. Tinha medo de nunca mais chorar. 

21h33. Chegou mensagem de Camila, minha melhor amiga. “Sua vaca, se inscreva nessa merda! Que se fodam os outros, que se fodam os outros”. Camila é uma produtora de eventos renomada, conhece muitos artistas e é a presença mais querida e solicitada em qualquer festa. Nem parece mais a menina desengonçada que eu conheci há 15 anos no colégio das freiras; agora é loira, alta e ostenta um nariz enorme, que a deixa ainda mais poderosa. Eu tinha muita inveja de Camila, porque ela falava alto e não tinha medo de ser uma menina má. Seus insetos saíam em forma de palavrão. 

Fui moldando meus silêncios como as massinhas de modelar que usava na escola, enquanto minha melhor amiga continuou na missão de gritar e se rebelar. Camila estava certa: eu adorava fazer contas, mas não só as de matemática, eu gostava também de calcular cada passo que daria, quanto tinha na minha conta bancária e como as pessoas me veriam — sempre sorridente, controlada, mesmo que milhões de insetos me corroessem por dentro. 21h46. Mais uma mensagem de Camila, dessa vez um áudio que denunciava sua voz bêbada. “Sua égua, não esquece de se inscrever, caralho! Já preencheu a autodeclaração?” 

O documento estava aberto há dias, mas os insetos haviam dominado a minha mão desde o dia em que o havia lido. “Como você se autodeclara? Quais seus traços?” Que perturbação. 22h. Os insetos que estavam dentro de mim saíram para fora da minha pele. Eles aumentaram de tamanho, não eram mais os mesmos insetinhos, agora pinicavam. Levantei desesperada, tomei o resto de vinho que tinha na taça. Como sempre, decidi limpar todos os cantos da casa com água sanitária. Eu tinha a sensação de que conseguiria matar os insetos com o cheiro ruim que ficava. Lembrei de todas as vidas que entraram em mim, como se eu tivesse uma fenda que as atraía. Vou abrindo espaço e as vidas-insetos vão entrando, fazendo forma dentro de mim. O peito pesou ainda mais. Meu coração pareceu ter aumentado de tamanho, meu corpo se agitou. Eu estava infartando? 

22h46. A caixinha de som ainda tocava a mesma música. “Eu canto, eu choro e eu grito e o mundo, tão bonito, não consegue me entender”. Meu pai adorava escutar essa música. Ele dançava e dramatizava enquanto cantava, e eu ria, era uma criança apaixonada vendo seu pai se divertir. Isso fez com que eu nunca prestasse muita atenção na letra; é como se as palavras fossem substituídas por meu pai cantando no seu microfone imaginário. Nos momentos em que me sentia entupida, imitava meu pai e cantava junto com ele. “Não, não posso parar, se eu paro, eu penso, se eu penso…” Caí no chão sem perceber. O celular tocava, mas eu não conseguia chegar até ele. Olhei para as plantas da minha casa como quem pede aconchego e cuidado. As plantas foram a única coisa que decidi levar comigo.

O meu exercício diário era esquecer de mim para que as freiras com cabelos curtíssimos não me punissem, para que a lentes Transitions não me cobrassem cuidado e amor. Todos os dias lembrava de esquecer. Mas as plantas ficaram. A única lembrança que trouxe para a grande e assustadora metrópole em que morava. Eu estava infartando? Morrer era assim? “Não, não posso parar.” Seria a primeira mulher que morreria de amor. “Espírito, espírito, que desce como fogo, vem como em pentecostes e enche-me de novo.” O coração aumentava a cada memória que me invadia, dilacerava, cortava. Os insetos gritavam e se rebelavam.

Não queria mais nada. Fui inundada pelo descontrole, pelo surto festivo, pela vida, pela morte. E se eu quiser o meu querer? Quanto mais tentava esquecer e sufocar os insetos, mais o coração aumentava. Uma lembrança nova me invadiu, e enxerguei com meus olhos pequenos minha mãe dançando e cantando na sala junto com Emílio Santiago: “Mas o que é a vida, afinal?”.

Comecei a tossir de forma descontrolada. Vi todos os insetos saindo de mim. Eu estava infartando? “Espírito, espírito… E enche-me de novo.” Me senti desgovernada, desequilibrada e louca. “Seja boazinha.” As plantas se levantaram e começaram a arrumar a casa. Elas tinham olhos profundos, que iluminavam a sala inteira, e andavam devagar, observando a casa, ao mesmo tempo em que eram ágeis para fazer o necessário. Elas começaram a preparar um chá com suas folhas enquanto conversavam entre si e sobre o corpo caído que tinha sido esquecido por mim. Quando tentei levantar, escutei a grandiosa gargalhada delas. Elas cresceram ainda mais, e me senti minúscula num apartamento cheio de plantas vivas e falantes. 

— Ela não quis lembrar de nada, agora tá aí, caída.

— Por isso que não sabe para onde ir, não sabe mais de onde veio — disse uma planta que tirava um ramo de si. 

Meu corpo estava imóvel, mas eu via tudo o que estava acontecendo. As plantas estavam cuidando do meu corpo-cabeça. As memórias me invadiram junto com as cantigas que minha avó cantava. Lembrei do pano que adornava sua cabeça e da sua gargalhada, que parecia infinita. Lembrei das histórias mirabolantes que meu pai contava, da sua cor e do seu coração.

As plantas continuavam me molhando com a água que elas produziram. Escutei as rezas de minha mãe e sua voz que dizia “estou aqui”. As memórias me invadiram tanto que resolvi chamá-las de insetos. Memórias que acreditava com todas as minhas forças que poderiam ser lavadas, deixadas de molho na água sanitária, enxugadas, deixadas para secar. Eu estava seca e também cheia de insetos. Eu estava entupida.

As plantas entoavam um canto junto com suas gargalhadas, dançavam na sala, junto do meu corpo-cabeça. Cheguei lá tomada pelos insetos. Não havia muito mais de mim além disso. Cheguei levada pelas vozes da memória que eu quis esquecer. Cheguei e fui tomada por tudo o que veio antes de mim. O espaço-tempo era uma invenção. Quando fiquei, me tornei viva. Senti todo o impacto que a água trouxe. Senti a vida, a água viva em mim. Me tornei água e nada sabia. Minhas certezas boiavam, meu corpo-cabeça já não era mais o mesmo. 

Acordei esvaziada e com os olhos cheios de lágrimas. Estava molhada, banhada de afeto e de lágrimas. Os insetos se foram e eu fiquei. 23h. No notebook havia uma mensagem. “Sua inscrição foi confirmada”.