Arte de Aislan Pankararu, capa da edição Amarello Futuro Ancestral.
#47Futuro AncestralSociedade

Matricomunidades: a força ancestral e espiritual das mulheres negras, manutenção do legado do povo negro

As referências éticas e solidárias foram práticas no cotidiano de africanas e africanos dispersos, esses grupos fortaleceram vínculos e foram estratégicos e articuladores para compreender as diferentes dimensões cotidianas que estruturavam as relações políticas e econômicas da coroa portuguesa. Vale dizer que os diferentes grupos étnicos que aqui chegaram unificaram forças, recompuseram seu lugar de “humanos”, reelaboraram elos destroçados pelo escravismo e foram agentes de suas próprias lutas para enfrentar o projeto colonialista. Isso foi possível pelo histórico processo de solidariedade entre os povos africanos pré-coloniais, o que poderemos chamar de agências negras, capacidades de regenerar-se e ou reintegrar-se a novas territorialidades, dispondo de recursos organizativos para mudar as relações do local. Essas experiências foram reelaboradas e vivenciadas nos microterritórios de auto-organizações negras agenciadas por mulheres escravizadas e libertas no Brasil e em outros países escravistas.

Como preconiza Clenora Hudson-Weems, em Mulherismo Africana:

“Mulherismo, autodefinição de centralidade na família; genuína irmandade feminina; fortaleza, unidade e autenticidade; flexibilidade de papéis, colaboração com os homens na luta de emancipação e compatibilidade com o homem; respeito e reconhecimento pelo outro e espiritualidade, respeito aos mais velhos, adaptabilidade e ambição; maternidade e sustento dos filhos.”

Diante do exposto identificamos que essas práticas de acolhimento sustentaram, reafirmaram e reafirmam o poder de auto-organização do povo preto e das mulheres como potencializadoras dessas comunidades.

Segundo Helena Theodoro, em Mito e espiritualidade das mulheres negras:

“Como escravizada, a mulher preta sempre foi esteio da mulher branca e contribuiu eficazmente para o desenvolvimento das famílias brancas e para a economia do país, pois também trabalhava na lavoura, sem esperar ou julgar-se credora de qualquer compensação.”

Mesmo em situações de violações e violências acometidas pelo escravismo e pós-escravismo, as mulheres foram esteio também para reorganizar as famílias pretas, com a capacidade coletiva de enfrentar e regenerar-se diante das dores e os desafios e de acreditar na força dialógica para combater o preconceito, racismo e a desumanização que moldou as relações escravistas de poder no Brasil e se perpetua até os dias de hoje. As experiências organizadas por mulheres na escravidão são sustento para lutas de emancipação das mulheres negras, e contribuem também para organizações de mulheres não negras, pois desafiaram e ainda desafiam as ordenações hierárquicas que historicamente delimitavam e delimitam espaços de possibilidades de autogestão, espaços que invisibilizaram o conhecimento sobre si mesmas e as realidades sociais vigentes e, sobretudo, as referências de afro-coletivos, espelhos para pensar outros projetos sociais econômicos e políticos partindo das agências de africanidades. As mulheres negras, na África e no Brasil, sempre estiveram à frente de seu povo e muito presentes na definiçõe de trabalhos como agricultura, colheita, banco de sementes, economia, gerenciamento, ciências, reaproveitamentos, saúde, filosofia, obstetrícia, pediatria com ações das parturientes, banco de aleitamento materno, o fazer das cuidadoras, psicólogas, contadoras de histórias, protetoras do meio ambiente, responsáveis de poupanças, inventoras de brechós, da cultura, das artes, dos artesanatos, da medicina popular, do manejo das plantas, das convivências com as adversidades climáticas e da proteção ambiental, gestoras de territorialidades, manipulações de energias e do asé, orientadoras sociais e educacionais. Esses saberes serviram para a sustentação de trocas, conhecimentos, cooperativas, economias e foram resguardados pelos saberes da oralidade.

As figuras das mulheres negras gestando famílias afetivas e religiosas crescem e resistem no período escravista e do pós-escravismo. Nesses espaços constituíram estratégias, resistências, vivências e permanências até os dias de hoje. Essas mulheres, com grandes limitações pelo racismo, excesso de vigília, torturas psicológicas e físicas, desafiavam os medos e transitavam entre as casas-grandes, senzalas, becos e vielas, canaviais e outros espaços, atentamente teciam redes de cooperação, construíam formas paralelas de organizações e poderes, retomavam as lidas diárias e relacionamentos comunitários e reconstruíam-se como povo através de suas práticas ancestrais, principais vínculos de sustentação e outras dimensões sociais de humanidade. Escravizadas e libertas faziam de tudo para desafiar as barreiras nocivas da escravização e garantir a sobrevivência e a vida do povo negro. Foram violentadas e forçadas a desenvolver todo o tipo de trabalho, braçal, mental ou corporal, subverteram as violações, conflitos, estupros e vulnerabilidades. Confinadas e vigiadas mesmo convivendo com as dores, romperam as barreiras e foram fundamentais para reconstituir os fragmentos étnicos e reorganizar novas comunidades, a exemplo dos grandes terreiros, quilombos e comunidades negras urbanas e rurais, grupos de danças e outros. As referências dos feitos organizativos e estratégicos das mulheres negras cruzaram décadas e mesmo recortadas deixaram marcas positivas de ser, pertencer, participar e conviver solidariamente, e, também, nos deixaram como legado uma multiplicidade de símbolos que recriam a memória e a história.

Vale ressaltar que em todas as organizações revolucionárias a presença de mulheres edificou as lutas sociais, territoriais e políticas negras. Para Maria Ivete Nunes Ennes, em Rio Grande do Sul, aspectos da negriute,

 O legado das lutas organizadas das mulheres negras foi tirado da história oficial, porque essas guerreiras traziam como legado os modelos organizacionais das sociedades matriarcais e centravam em famílias, sejam religiosas e de afetos, como unidades e fortaleza para seguir resistindo aos grandes embates do patriarcado cristão colonialista.

Além disso, as organizações familiares afetivas cimentaram outras espacialidades, sempre trazendo a presença das mulheres como matricomunidade e matricomunitárias, compreendendo que as comunidades recriadas eram raízes para a continuidade do povo preto nos processos de escravização e pós-abolição. Essas mulheres à frente de suas famílias, consanguíneas ou afetivas, criaram redes de colaboração em parceria com os homens e, assim, recriaram seus próprios critérios para avaliarem e pensarem saídas de sobrevivências a partir de agências africanas, guardando as memórias culturais, ancestrais, e segredos que estruturam resistências e permanências através de séculos.

As mulheres mencionadas deram significados a esses elementos, auto-organizadas em redes de convivência entre diferentes grupos que realocaram narrativas dispersas, unificando os pensamentos e fazeres, e que compreendiam a necessidade de reorganizar outra dinâmica de existência para estabelecer um conjunto de forças cósmicas e humanas para reagir à escravização, restabelecendo os processos de solidariedade e reconstruindo outros caminhos, dentro de vertentes ancestrais. Centraram-se na reconstituição de famílias em que as afetividades e espiritualidades substituíssem as relações consanguíneas e assim perceberam que os fenômenos negativos que atravessavam suas vidas poderiam ser trocados por outras possibilidades embasadas na reorientação do ser e estar, ou seja, reorientadas no pensamento africano, trazendo elementos fundamentais, como o ser preto conectado ao cosmo e coexistindo. Esses diálogos são atravessados pelos sentidos, ou seja, pela reaproximação, pelos nossos corpos com textos e falas de comuna, sentimentos cooperativos, partilhados e comunitaristas, identificando na escravização a/o outra/o, mesmo de grupos diferentes na maneira de ser, em matéria e espírito, sentimentos e elementos da mesma realidade. Essa junção de coexistência trouxe profundos entendimentos e a aproximação da África dispersa e reconectada pelos sentimentos de uma ancestralidade viva africana e afro-brasileira, trazendo as mulheres como matrigestoras de uma nova existência dentro de microterritórios e matricomunidades, ou seja, espaços que trazem através de conhecimentos e segredos a importância dos elementos da natureza que edificam um pensar-fazer científico e filosófico feminino. No entanto, no Brasil todas as relações sociais negras eram e são controladas por sistemas ordenados, racistas e sexistas, avessas aos pensares e fazeres reconstruídos por dentro dos microterritórios identitários, que, mesmo vigiados, guardaram práticas de acolhimento imbricadas por laços espirituais e constituíram ações coletivas dentro de uma dinâmica reintegrativa entre sagrado, social, econômico e político, partícipes de uma força subjetiva, social africana e afro-brasileira.

As espacialidades individuais e coletivas negras a cada tempo histórico vão perdendo os vínculos comunitários. As teias relacionais e coletivas, muito presentes nessas comunidades, foram estrategicamente invadidas e moldadas pela lógica imposta ao longo dos séculos pela hierarquização pactuada pelo pátrio poder, cristianizado, evangelizado e branco, que impõe modelos de culturas, lazer, educação, organização social e espacial que delimita o acesso aos ambientes naturais e, sobretudo, continua vigiando e controlando os passos do povo negro. Diante desses contextos de violações de direitos e violências, ocasionado pelas institucionalidades racistas, as mulheres negras recriam modos articulados de mobilidades redesenhando cartografias negras, escutando e apresentando possibilidades de caminhos, reajustando pensares, falas, identificando pegadas negras, para garantirem os referenciais pensados por nossas antepassadas/os e pensar estratégias de retomarem e manterem os embriões comunitários fertilizados por práticas acolhedoras e regeneradoras das identidades africanas e afro-brasileiras, agências necessárias para rebuscar as sociabilidades negras como cimento de sociabilidade, referendadas pelos microterritórios que acolheram, cuidaram, renasceram e protegeram o povo negro ao longo de séculos. Deve-se pensar em estratégias organizativas, econômicas e políticas para garantir e estruturar a manutenção da vida e a continuidade desses embriões e reatar o compromisso firmado dentro de uma matriz familiar de afetos que foram matrigestando através da força e a ética da palavra, da partilha, da comuna, ações sociais, concebidas dentro de um sistema filosófico que traz o papel das yás para além da figura de mãe, mas como organizadoras da vida cósmica, humana e comunitária. Voltar a ser é restabelecer outros princípios éticos para pensar sociabilidades comprometidas com o respeito à vida e à continuidade coexistencial. Essas relações de vida estão dentro de um sistema vivo que as mulheres negras edificaram para garantir a sobrevivência do povo negro e que podemos chamar de matricomunidades.


Nota: Os grandes embriões comunitários representados por espaços ou símbolos como pedras, cachoeiras, amuletos, árvores, rios, animais, estrelas, lua, sol, rurais ou urbanos, com representações materiais e simbólicas, organizadas no período do escravismo, foram cuidados e vigiados por mulheres que garantiram o resguardo de um potencial histórico e oral que permitiu a manutenção das espiritualidades de origem africana e todos seus elementos simbólicos que reconstituíram um legado com seus segredos e elementos sagrados que chamamos de matricomunidade.