Foto de Nayron Rodrigues
#49SonhoMúsica

Conversa Polivox: Marissol Mwaba

Marissol Mwaba é uma artista brasileira de origem congolesa. Cantora, compositora, multi-instrumentista e estudante de astrofísica, tem livro lançado e vem trilhando uma jornada intergaláctica.

Você estudou astrofísica na Universidade Federal de Sergipe e depois ganhou uma bolsa para estudar física na Sorbonne, em Paris. Paralelamente a isso, estudava no observatório da capital francesa. Tem até um artigo publicado na revista Astronomy & Astrophysics. Como foi isso?

Mandei e-mail pra uma professora, ela me chamou pra conversar, e falei que queria trabalhar com a parte de galáxia, que eu gostei muito dela e tal. E ela já conhecia o Brasil. Aí ela falou assim: “no período que você pode estagiar, eu vou estar de férias, então só vou ter uma semana pra te explicar como fazer, e é um trabalho muito complicado, você provavelmente não vai conseguir terminar, porque é um volume enorme de coisas, eu não sei até que ponto serve você fazer esse estágio”. Eu falei: “mesmo assim, eu quero”. Aí eu fui lá pra fazer a catalogação de galáxias. Ela estava estudando um aglomerado de galáxias chamado Aglomerado de Ofiúco. Ele é interessante, porque é muito grande e muito velho. Então, saber sobre ele significa saber como as galáxias interagem. Só que tem um problema: ele fica num lugar que a gente, observando aqui da Terra, tem dificuldade de ver. Estou tentando simplificar.

Tudo bem, o que eu não entender, te falo.

A Via Láctea tem muitas estrelas, então alguns lugares pra onde a gente olha, tudo aquilo que está aqui vai fazer um ruído nessa imagem. É como tentar ver o pôr do sol em São Paulo com um monte de prédio na frente. Esse aglomerado está numa posição que é muito difícil de ver. Então o que ela estava fazendo junto com outros pesquisadores? Estavam tentando resolver essa questão da visibilidade, só que por mais “prédios” que a gente conseguisse eliminar com a tecnologia, ainda assim precisava de alguém pra pegar galáxia por galáxia e fazer uma limpeza dessa imagem e entender também se aquilo era realmente uma galáxia ou se aquilo era uma estrela da Via Láctea. Eu cataloguei mais de duas mil e quinhentas galáxias. Ela ficou chocada. E eu ainda terminei antes dos dois meses.

E ela achando que você nem ia dar conta, não é?

M — Ela achou que eu não ia nem chegar na metade. Aí ela falou assim: “olha, eu vou ter que te colocar como coautora do artigo, porque o catálogo é seu”. E assim esse artigo saiu na revista Astronomy & Astrophysics.

Que experiência incrível!

Agora, voltando à vida pessoal, pra poder ter essa perspectiva de fazer o curso no observatório de novo, e dessa vez conseguir me formar, e isso coincidir com a minha formação na física, aí eu vou ter um diploma na astronomia e um diploma na física… Enfim, ter um outro lugar de construção um pouco mais firmado, porque é muito difícil trabalhar com música. E eu sinto que o trabalho na arte é muito mais sobre como você para de depender da arte do que sobre você viver de arte, entende? Eu tenho muito essa sensação. Eu fico analisando carreiras, e todas as carreiras longevas e bem-sucedidas, no sentido de felicidade, estabilidade, prática do artista, qualidade de vida… Essas carreiras são sempre carreiras que não têm a dependência contínua do que o artista está fazendo na arte, tem outras fontes que se criam a partir daquele lugar. Porque senão a gente não consegue, não dá, não tem como manter uma coisa assim, que é passageiro. A cultura se transforma. Quantas pessoas eram relevantes em algum momento e agora não são mais? E isso acontece em todas as escalas. O legado fica, a vida continua, a cena se transforma. E se a gente quer continuar tendo condições de deixar o nosso legado, continuar criando e tendo felicidade em fazer isso, a gente precisa ter a renda vindo de um lugar que nos possibilite ter alegria de viver, porque senão a gente não vai ter.

Onde e como acontece a infância da Marisol? 

A infância… Nossa, lembro de muita coisa. Eu lembro de ter uma imaginação muito fértil, viver praticamente um mundo dentro da minha cabeça. De ser musical desde pequena, porque a primeira música que eu fiz, eu tinha seis anos. Desde então, compositora. Eu aprendi a andar, a falar e a cantar, e a criar, veio junto com as coisas básicas que eu aprendi. Quando perguntavam o que eu ia ser quando crescer, eu não falava cantora, mas isso era uma coisa que parecia que fazia parte de mim. Também sempre muito móvel, sempre me mudei bastante, então a infância da Marissol aconteceu em todo lugar.

Você morou em muitos lugares.

É, em muitos lugares, então eu estava sempre me deparando com uma nova realidade e, ao mesmo tempo, também sempre me despedindo de alguma realidade, amigos e tudo. Nisso, eu tive que encontrar um lar dentro de mim já muito cedo. E acho que foi assim que eu aprendi a guardar as coisas na escrita. A preciosidade de guardar os momentos na escrita começa muito nova pra mim, desde pequenininha. Eu lembro que eu tinha um caderninho onde eu ficava rabiscando, como se eu estivesse escrevendo muitas coisas. Depois foram se tornando cadernos onde eu realmente escrevia as coisas da minha vida. E acho que tem a ver com isso, com encontrar refúgio na minha companhia, porque eu tenho muitos irmãos, mas eu sou caçula, então todo mundo foi crescendo e indo embora, e eu fiquei em casa. De repente, eu não tinha mais meus irmãos ali. Na memória de infância, às vezes eu vejo mais os meus irmãos do que os meus pais, porque eles eram muito presentes, e, na nossa cultura, o irmão mais velho tem esse lugar de cuidado e de orientação do irmão mais novo, e até de autoridade sobre o irmão mais novo. Eu nunca morei mais de cinco anos numa cidade, então é isso, sempre muita itinerância. As músicas sempre tiveram um poder muito grande sobre mim. Em muitos momentos, eu considero que a minha vida foi preservada pela música. E como pessoa que cria, eu sempre sonhei um dia ter a minha música disponível pra felicidade e bem-estar ou acolhimento de alguém, da mesma forma que eu tinha tantas músicas disponíveis pra minha felicidade, pro meu bem-estar, pra um abraço. Então esse é um grande sonho. Assim, poder pegar na mão de quem eu nem conheço. Acho que é isso. A minha mãe sempre falava assim: “se veio uma música, para tudo e faz a música”. Ela me deixava faltar aula, deixava me atrasar.

Seu primeiro disco foi lançado em 2015?

Foi, lancei em 2015. Eu tenho muita sorte. Sabe, essa coisa de ser uma pessoa preta, e no Brasil ainda, só que ainda africana, e brasileira, ainda mulher… A fila de coisas que me botam pra trás é bem grande.

É imensa.

Não sou herdeira de nada, não tenho um tio chato pra onde ir. Se estou no Brasil, é nós ali, meus pais e meus irmãos. Então o legado da gente, e nosso amparo, vem muito do presente. Eu tive a sorte de ter dois irmãos mais velhos também na música, e isso me catapultou de um jeito que as pessoas brancas têm por outras vias, pela via do dinheiro, pela via dos contatos, pela via da própria abertura que já tem. Aí teve coisas que eu não precisei passar, porque meus irmãos passaram. Pra fazer a primeira apresentação, as primeiras experiências artísticas foram vivenciadas muito junto com meus irmãos. A preparação para o primeiro álbum foi um período que eu estava muito atribulada com a universidade. Estava em projeto na astrofísica e estava prestes a sair pro intercâmbio, então eu nem tinha condições. E eu era cantora no coro, bolsista no coro de música erudita da Universidade Federal de Sergipe. Tinha acabado de passar por um processo e estava com um problema vocal, e, ao mesmo tempo que estava com problema vocal, eu não podia sair, porque eu precisava da bolsa. Eu tinha sangramento vocal em todos os ensaios. E eu gravei assim. O sabor de muitas faixas do Luz-A-zul é de sangue. A gravação desse álbum foi um milagre da voz. E a partir desse problema que eu comecei mesmo a fazer aula de canto pra canto erudito, comecei a fazer tratamento com um grupo de fonoaudiólogos da universidade, consegui esse tratamento gratuito, mas foi bem desafiador. O desafio que eu tive com esse álbum foi de conseguir cantar e poder manejar com os afazeres que eu tinha pra intercâmbio e na universidade. E como foi importante poder ter ali o François [Muleka] cuidando de tudo. O trabalho do álbum foi o primeiro mais profundo que eu fiz com Alice Assal, que é diretora de arte, e que trabalha comigo até hoje. Ela traz uma coisa interessante, que é a tradução da história da minha música e trajetória através da imagem.

Interessante mesmo, porque você consegue ter uma cartografia da própria jornada.

Total, bem isso mesmo. Ver essa história sendo contada assim é como se eu tivesse registro de muita coisa da minha trajetória. Bom, o Luz-A-zul foi gravado desse jeito, então o meu compromisso era manejar as coisas e conseguir gravar, porque já tinha o Fran cuidando de tudo. Aí eu vim pra França ainda gravando o álbum, uma das faixas eu tive que gravar aqui, e fiz o lançamento aqui também. Depois, quando voltei pro Brasil, fiz um show de lançamento em Floripa. Mas é isso, primeiro álbum é aquela coisa, são músicas que você escolheu de um monte de músicas da vida inteira. Foi bem difícil escolher quais eram as músicas, uma até entrou de última hora, porque eu fiz na semana. Falei: “nossa, quero que ela entre”, aí gravei, e como eu componho muito, quando eu lancei esse álbum, já estava com outro pronto. Eu só fiz o show de lançamento. Depois eu nunca mais fiz esse show.

E a escola de música Mwaba Canto e Expressão, quando é criada?

A escola nasceu em Floripa, no ano de 2018, da necessidade de sobrevivência. Acho que as coisas que eu amo, elas vão entrando na minha vida e fazendo parte de todas as coisas juntas. Astrofísica faz parte da minha música, eu não consigo ver minha trajetória na música sem a minha trajetória na astrofísica. E vice-versa também, não ia achar a astrofísica tão bonita e ter saco pra toda aquela matemática se não fosse a música. Depois, futuramente, comecei a achar bonito também o foco em matemática. Acho que a minha poesia me permite ter esse olhar poético pra ciência, ao mesmo tempo que a ciência me permite ter um olhar físico, um olhar existencial na música também. A dança também entra nesse lugar. Eu faço dança do ventre desde 2013. É uma coisa que me deu sempre prazer. Quando voltei pro Brasil, eu não tinha mais como fazer dança do ventre. Eu não tinha mais como fazer muita coisa, estava sem dinheiro, estava doente. Aí eu conheci a Lídia Pereira, que é uma grande amiga, e ela viu como eu estava. Ela falou “cara, vem dançar” e me chamou pra fazer aula com ela. Então eu fazia aula, ela me carregava pra todas as aulas que ela dava, às vezes eu até ficava na casa dela, dormia na casa dela, ia pra cima e pra baixo, e ela foi a minha primeira professora negra e uma das poucas pessoas negras da dança do ventre. Hoje em dia, a gente vê até mais, mas antes não tinha referência negra nenhuma. Era muito foda ver ela dançando, porque, na dança do ventre, tem muito da moda que dita ali também. Na época do liso, era aquela coisa, joga o cabelo, cabelo liso. Então ter ela ali foi incrível. E ela me adotou mesmo, e nisso a gente também fez uma amizade muito bonita. Hoje ela é tipo uma irmã pra mim, e também trabalha comigo na produção. Aí ela um dia falou pra mim: “por que você não dá aula de canto?” Eu falei: “nossa, será que eu posso dar aula de canto? Não sou capaz de dar aula de canto”. Ficava me sentindo assim, “não tenho capacidade de dar aula de canto”. Aí ela falou: “olha, eu comecei a dar aula de dança dando aula. Eu também não achava que ia conseguir, mas, quando eu comecei a dar aula, vi que conseguia”. Ela botou uma sementinha na minha cabeça a partir da dança. Aí veio pro Brasil uma cantora estadunidense chamada Jessica Cohen, e a gente fez amizade. Ela é muito legal, e ela teve estudo formal de música. Isso também me travava. A gente conversou. Ela ficou uns dias na minha casa, então a gente pode se conhecer bem mais e tal, até que, no final, ela falou isso, que eu tinha total capacidade pra dar aula de canto e que eu podia estudar e fazer isso. O fato dela ter falado me fez acreditar. Então eu comecei a estudar, e um tempo depois eu tomei coragem e divulguei as aulas. Eu pensei: seja o que Deus quiser. Aí comecei a dar aula. E foi muito bonito poder me conectar com outros corações artistas, em outros momentos, em outras intenções com a música, em outras realidades, e nisso fui identificando uma missão também nesse lugar de partilha. Então, aos poucos, foi se estruturando mais esse formato de escola em torno da ideia mesmo de ser um lugar onde a gente estuda a partir do que é ser um artista independente. Eu continuei estudando cada vez mais, hoje já tenho várias certificações em pedagogia vocal, pra poder atender meus estudantes. Fui estudar teoria musical, fui estudar coisas que eu precisava, da parte mais formal da música, pra ter cada vez mais capacidade de atender. Inclusive, comecei a atender também profissionais da música, que estavam com carreiras estruturadas. Então dar aula me puxa bastante pra parte do estudo, da formação, do aprimoramento. Mas dar aula também é uma coisa que me alimenta no lugar da inspiração. Porque sentir o frescor que tem a música e a arte no coração dos estudantes alimenta algo dentro de mim. É muito mais do que ficar convivendo com um monte de profissionais.

Recentemente você teve um lançamento muito especial. Conta um pouco como foi a produção de Frase única.

Sim. Essa obra é um milagre. É uma música que eu já cantava há muito tempo, uma música minha, que eu compus há bastante tempo, mas em 2023, participei das atividades da diversidade, foi a Maratona da Diversidade, e teve várias falas, palestras e mesas. E aí a professora Letícia Carolina fez uma fala.

Isso foi em São Paulo?

Foi em São Paulo. Ela é professora, doutora, negra, trans, enfim. Ela escreveu um livro e é ativista da diversidade. Eu estava passando por um momento de muitas dores, muitas questões, e ela falando sobre a sua conquista do doutorado. Na hora que ela foi falando, eu fui anotando no bloco de notas. Ela diz assim: “precisamos transmutar a dor pra ir além, mas o que me trouxe até aqui não foi a dor, foi o sonho, precisamos de inspiração pra sonhar”. Eu fiquei refletindo, e vejo também o tanto que o sonho já me moveu. Essa reflexão me fez ter certeza de que eu queria lançar Frase única, eu queria fazer uma versão bem simples, tipo voz e piano. Aí o Zé Manoel, que eu conheci, já ouvia falar muito dele, mas quando eu conheci fiquei muito encantada pela pessoa, e depois eu vi ele cantando e tocando em Salvador. E eu fiquei assim, tipo… Ele toca com uma sensibilidade muito grande, e eu sou muito admiradora das pessoas que se exibem sem perder a sensibilidade. Enfim. Uma vez, do nada, eu ouvi a voz do Chico [César] cantando o trecho “se encontrar, jamais deixarei”. Eu pensei: “poxa, nunca tive coragem de chamar o Chico pra nada”. Escuto ele desde muito pequena, desde os meus sete, oito anos, e aquela história toda, eu sempre falo que não sabia que ele era brasileiro, a gente ouvia pra caramba sem saber, e eu ficava lá, toda encantada

Como o Chico tem uma importância, como ele atravessa gerações com sua autenticidade e sensibilidade.

As palavras dele… Acho que é isso, ele é muito lúdico, as palavras que ele vai inventando e falando, e abre um portalzão de permissões. Quando eu tinha uns 14 anos eu fui pela primeira vez em um show dele, em Jequié, “meu Deus do céu, eu vi ao vivo Chico César!”. E aí, anos depois, ele me chamou pra gravar as vozes, junto com François, no álbum dele, O amor é um ato revolucionário. E aí já foi a realização de um grande sonho ver o Chico no estúdio. Ele me hospedou, ele apadrinhou a minha ida pra São Paulo. Eu fiquei muitas vezes na casa dele, muitas vezes ele viajava e deixava a chave comigo, e eu podia ficar lá, ficava à vontade. Mas claro que eu nunca ia ter coragem de pedir pra ele cantar uma coisa comigo, porque é reverência. E quando me veio a voz dele cantando, na intuição, eu pensei: preciso falar. Aí eu mandei a mensagem pra ele, mandei a música e ele topou. A gente teve muitas conversas. E eu sei que ele não faz nada que ele não queira, não faz só porque conhece essa pessoa, ele faz se ele está a fim de fazer. Então, pra mim, sabendo desse background também, foi muito importante. Nessa coisa de eu sempre ter um caderno, agora também o bloco de notas, no dia que ele respondeu falando que topava, eu escrevi no meu bloco de notas: “7 de junho de 2023. No dia de hoje, Chico César aceitou gravar uma composição minha comigo. Um milhão de exclamações. Estou radiante. Às 21h35h”. E ele falou que a música era belíssima, agradeceu por eu ter pensado nele. Cara, que pessoa. Nossa, fico emocionada só de falar. Aí eu convidei o Zé Manoel pra gravar com a gente o piano desse encontro, fechando o trio de possibilidades.

Trinca de ases.

É, trinca de ases.