Relógio da Academia Francesa (1929), por André Kertész.
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Quem tem tempo para o tempo?

Gal Costa, em uma de suas mais inspiradas interpretações, já cantava: “O tempo não para e, no entanto, ele nunca envelhece”. As palavras escritas por Caetano Veloso para Roberto Carlos, muito embora tenham sido concebidas nos anos 70, não poderiam ser mais verdadeiras e atuais. Se a velhice está associada a um frear necessário, um arrefecimento natural e incontornável do ritmo da vida, isso nada tem a ver com o tempo, que só ganha vigor na medida em que vai acontecendo.

Você não é o único a pensar que, por incrível que pareça, a cada ano que passa, o tempo parece correr mais rápido, vencendo todas as corridas que aposta consigo mesmo. Somando à frase de Força Estranha, não só ele nunca envelhece, como também aperta o passo ilimitadamente com fôlego de sobra, dando pintas de rejuvenescer. 

Homenagem a Apollinaire (1912), de Marc Chagall.

Há registros cada vez mais recorrentes de dias que, de fato, duram milissegundos a menos do que o normal. Mas, apesar da condução de estudos, ainda não se sabe ao certo por que exatamente isso vem acontecendo. As teorias falam de oscilação no movimento dos pólos geográficos, de alterações causadas pelos desastres ambientais, dos malefícios do aquecimento global… Por mais que tentemos nos ater à razão científica, fica difícil não enxergar nisso o acontecimento-símbolo perfeito do ritmo tresloucado de nossas vidas. Sentindo a correria diária acometendo suas superfícies, quase como um formigamento que nunca cessa, até o planeta Terra sentiu a necessidade de aumentar a batida do seu diapasão. Há metáfora melhor que essa?

Assim como nenhum outro ser vivo é capaz de detectar ou produzir uma metáfora, o ser humano é o único capaz de contar o tempo. É como se fosse uma de nossas maiores invenções, uma entidade que vai bem além de respostas biológicas e meteorológicas ao nascer e ao pôr do sol. A noção de segundos, minutos, horas, dias e tudo que vem em seguida transforma completamente a nossa existência. Isso porque, com ela, também temos plena consciência de nossa finitude, conseguindo até ter uma ideia geral de até que ponto podemos continuar vivendo — para o bem e para o mal. Talvez, caso soubesse da média de vida de sua espécie, um gato dormiria menos horas por dia, querendo aproveitar mais todos os carinhos e rações molhadas de suas duas décadas. Ou talvez, sabendo como os gatos são, eles dormiriam ainda mais horas por dia. Há quem diga que saber que estamos fadados à morte é o que deixa a vida mais especial, a efemeridade é o tempero que faz a refeição valer a pena, mas há também quem se sinta diariamente comprimido por essa consciência dolorosa. 

Bem, há até quem acredite que, a partir dos avanços tecnológicos, é possível superarmos nossos limites biológicos.

Essas pessoas, aliás, são chamadas de “transumanistas”, que, na verdade, são extremamente racionais, ainda que uma das principais motivações seja a busca pela imortalidade, o que pode soar sandice a quem cai de paraquedas na conversa. No fim, acreditam piamente na aplicação da tecnologia e da ciência para aprimorar as capacidades humanas para além dos limites naturais — não necessariamente imortalidade, com todas as letras, mas, pelo menos, uma vida prolongada de maneira significativa. De acordo com os transumanistas, por meio do avanço da medicina regenerativa, do desenvolvimento de terapias genéticas e da substituição de partes do corpo por próteses avançadas, será possível superar o envelhecimento e as doenças relacionadas à idade. Outro objetivo é melhorar a inteligência humana, explorando formas de aumentar a capacidade cognitiva humana, seja por meio de interfaces cérebro-máquina, implantes neurais ou até mesmo pela integração mente-máquina. 

Retrato de um homem segurando um relógio (1643), de Frans Hals.

É claro que a coisa toda gera muitos debates acalorados, uma celeuma que ultrapassa as preocupações que concernem os impactos desconhecidos que essas intervenções podem ter no bem-estar humano. Não é necessário ir muito longe para concluir que, por já vivermos num mundo bastante desigual, infelizmente, adventos como esses aprofundariam ainda mais essas fendas sociais. Imagine só a cinematográfica guerra pela vida eterna travada entre quem têm acesso às tecnologias e aqueles que não têm. 

Mas outro debate é: será que queremos mesmo mais tempo? O que faríamos com nossas vidas se tivéssemos todo o tempo do mundo? Realizaríamos algo? Cuidaríamos de nós mesmos do jeito certo? Extrairíamos o mesmo prazer das coisas?

A passagem do tempo é um tópico constante na cabeça de qualquer um, até mesmo a mais espiritual das pessoas. Mesmo com a certeza de que há um pós-vida, os anos que vêm e vão marcam capítulos de uma história de desenvolvimento, de evoluções, eles guardam suas próprias matizes, exalam seus próprios odores — e, mesmo com uma vida depois da morte, tais particularidades não se apagam, elas se mantêm encapsuladas nos afetos da memória. É por isso que, quanto mais rápido o tempo passar (ou parecer passar), mais ansiosos tendemos a ficar: sentimos falta do respiro profundo que retém os sopros memoriais em nossos peitos. Não paramos de trabalhar, sentimos a forte necessidade de nos entreter cada segundo do nosso dia, fazemos questão de alimentar as redes sociais, sem perceber que fazer isso é nos aprisionar numa relação tóxica de faça-bem-a-quem-te-faz-mal.

A pandemia, tempos em que estávamos em casa na maior parte do tempo, em tese correndo menos do que corríamos na vida pré-Covid, foi paradoxal nesse sentido: embora sentados, deitados, sem pegar trânsito ou transportes públicos, o tempo pareceu acelerado. Isso, possivelmente, aconteceu pelo fato de os dias terem menos diferenças entre si. Na mesma moradia, assistindo à mesma televisão, com as mesmas pessoas, tudo ficou difuso, dando a sensação de celeridade e pouca absorção. Isso para não falar do medo que tocava a época, outro fator que contribuiu para o borrão temporal. Esses anos deixaram bem explícito o quão relativa, para não dizer emocional, é a passagem do tempo. 

Isso não é novidade, é claro. Desde a mais tenra idade, temos diferentes vivências temporais, disparidades que nascem da subjetividade: numa festa, as horas passam voando; no trabalho ou na escola, as horas se arrastam. Mas, antes da pandemia, a relação parecia mais simples, parecia ser somente uma questão de divertimento versus tédio. Mas, na verdade, tudo vai bem além dessa ingênua dicotomia. Se pensarmos no marasmo/temor pandêmico como um achatamento da experiência humana, sendo capaz até de acelerá-la, então podemos considerar o tempo não como um agente biológico-espiritual que produz a percepção, mas um corpo etéreo totalmente submisso às nossas sensações. 

Nada é mais fugaz que o presente, então nada é mais desconfiável que o tempo — não importa se é sua percepção se ela, no final das contas, é tudo que você tem.

Uma das razões para que a turvação atual seja tão consensual é que, em algum nível, estamos distraídos demais para olhar ao redor. Temos tempo, é bem verdade, de pegar o celular e tirar fotos dos arredores, mas não de realmente apreendê-los. Se o presente não é capturado nem quando tentamos capturá-lo, que dirá se nem sequer tentarmos. Sem o presente, que já não teríamos de qualquer maneira por sua bravura indômita, vivemos com a cabeça atolada no meio-fio entre o passado e o futuro, duas abstrações que se ancoram na autoficção. O título e o andamento frenético do filme Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo (2022) resumem bem o metrônomo das canções que cantam as nossas rotinas: um ritmo insano, uma grande sequência de time lapse para dar náuseas em alguém que não está acostumado a tal velocidade. 

Do filme Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo (2022), da dupla Daniel Scheinert e Daniel Kwan.

Mas, de tudo isso que acontece ao mesmo tempo, e em todo lugar, existe a névoa chamada presente, que consegue ser mais célere que qualquer instante, qualquer luz, qualquer pessoa. Pense no filme vencedor do Oscar com Michelle Yeoh como uma metonímia da atualidade, mas menos por seus temas e mais pelo seu compasso, pela sua convicção na pressa. Os filmes estão mais rápidos, mas têm aquelas mesmas duas horas de antes (com frequência, chegando em três horas de duração ou até mais). Não é assim que estamos vivendo? Mais e mais rápido? Na verdade: mais, porém mais rápido. 

Faz tempo que não saímos da quinta marcha. No entanto, para fazer um contraponto necessário, a humanidade está avançando a passos largos, mais largos do que nunca. A digitalização do mundo abriu as portas para uma infinidade de novas possibilidades, progressos que nem o mais otimista dos otimistas poderia imaginar há algumas décadas. Mas é claro que, como toda época de grandes avanços, a atualidade exige de maneira nada sutil que nos adaptemos. Primeiro porque, se não o fizermos, estaremos à margem de tudo que está acontecendo; e segundo porque, se somente formos conforme a maré e não tirarmos um segundo para realmente nos adaptar a tudo, separando o joio do trigo e conseguindo assimilar o positivo e o negativo do quadro pintado diante de nós, aí é que estaremos fadados a viver vidas que se resumem a um piscar de olhos. Não podemos voltar no tempo e desfazer toda e qualquer noção da passagem do tempo, desaprender o que são meses e anos, mas, ao invés de viajar no tempo, ir para o futuro e tentar emular filmes de ficção científica, mais interessante seria parar o tempo. Sem notícias, anúncios publicitários, postagens, tique-taques, por pelo menos uma hora. O que você faria?

Mas quem tem tempo para esse tempo de análise e autoconhecimento? Quem tem tempo de se manter longe das novidades e priorizar o respiro meditativo? Pouca gente. Quase ninguém. Bendita é a minoria que tem, maldita é a maioria que não tem. Enquanto estamos suando sangue em cima de uma cruel esteira ergométrica, sempre querendo mais, sempre encaixando mais afazeres no descanso e mais alienação no entretenimento, o presente que não se captura estará lá, fazendo troça de nós. Como uma neblina debochada.

E assim caminha a humanid… Ou, melhor dizendo: assim corre a humanidade.