
Moda, consumo e desejo: quando o carnaval da satisfação chega só para ir embora
“O que é felicidade?”, pergunta Don Draper em um dos muitos momentos memoráveis presentes na série Mad Men. Ele mesmo responde: “É o momento antes de você precisar de mais felicidade”.
A frase não poderia ser mais perfeita para a era da ultra fast fashion. A moda sempre esteve ligada ao desejo, mas, atualmente, se transformou em um ciclo ainda mais acelerado de satisfação e frustração — satisfação momentânea no momento da aquisição; frustração duradoura na busca ininterrupta pelo breve regozijo da compra. A promessa de acesso fácil a novas tendências esconde uma engrenagem que gira à base da insatisfação permanente: as roupas-novidade duram pouco, e o desejo por algo novo nunca é completamente saciado, uma vez que sempre haverá algo “mais novo”.
Representada por gigantes como Shein e Temu, a ascensão da ultra fast fashion intensificou um processo que há décadas já transformava a indústria. Se antes as marcas rompiam com os tradicionais ciclos sazonais para lançar coleções com mais frequência, essas plataformas agora despejam novos modelos diariamente, alimentando um consumo compulsivo embalado pelas redes sociais. Um estudo da McKinsey & Company revela que a velocidade de produção atual supera, e muito, o que as varejistas de fast fashion alcançaram nos anos 90, quando a Zara, uma das pioneiras, quebrou o modelo convencional ao lançar centenas de novas peças por semana. “Centenas” parece muito, mas aí cortamos para mais de trinta anos mais tarde: em 2023, a Shein chegou a produzir até 10 mil novos modelos por dia. O ritmo frenético atual escancara a derrota pré-anunciada de correr atrás da novidade ad aeternum, criando uma cultura na qual o valor de um objeto, sobrepujado pelo que há de vir, é cada vez mais efêmero. O descarte danoso é, assim, efeito colateral.
Segundo a ONU, a indústria da moda é responsável por até 8% das emissões globais de carbono e 20% do desperdício mundial de água, tornando-se uma das indústrias mais poluentes do planeta (o que, neste planeta, não é pouca coisa). O volume de roupas descartadas também é alarmante: de acordo com a Abrema (Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente), o Brasil descarta mais de 4 milhões de toneladas de resíduos têxteis por ano, a maioria sem qualquer reaproveitamento. Nos Estados Unidos, de acordo com um levantamento feito pela Environmental Protection Agency (EPA) há alguns anos, o número salta para 17 milhões.
Essa dinâmica da moda refém do desejo e do trabalho refém da mega produtividade é registrada com sensibilidade no documentário Estou me guardando para quando o Carnaval chegar, de Marcelo Gomes, lançado em 2019. O filme acompanha a vida dos moradores de Toritama (PE), cidade considerada um dos maiores polos de produção de jeans do Brasil. Ali, trabalhadores dedicam a vida à costura e ao acabamento de peças. Como ganham por produção, sentem a necessidade de trabalhar duro sem descanso, tudo para, no Carnaval, venderem seus bens e viverem alguns dias de liberdade. Ironicamente, tal qual na lógica da moda ultra veloz, a satisfação é passageira. Logo o ciclo se reinicia.
O filme de Marcelo Gomes opta por uma lente crua e local, despida de qualquer glamour ou romantização. Toritama, conhecida como a “capital do jeans”, sintetiza o mecanismo global da fast fashion aplicada à realidade brasileira: produção incessante, baixo custo e condições de trabalho exaustivas. Os moradores, que ralam de forma autônoma e sem qualquer segurança trabalhista, representam o bebedouro invisível do sistema que banha as grandes marcas e os desejos insaciáveis de consumo. O contraste entre o ritmo intenso de trabalho e a esperança de alguns dias de lazer revela a fragilidade, e a melancolia, do modelo vigente.
A história de Toritama ressoa a realidade de outras regiões brasileiras que vivem da produção têxtil. O que acontece por lá não é um caso isolado, mas um microcosmo da forma como o Brasil se insere na cadeia produtiva da moda global, muitas vezes reproduzindo os mesmos ditames de exploração vistos em lugares como Bangladesh e Vietnã. A produção incessante encontra seu respaldo em um consumo igualmente célere, impulsionado pela internet.
Falar de consumo impulsivo significa apontar o dedo diretamente para a influência das redes sociais. O Instagram e o TikTok popularizaram o famigerado unboxing — espetacularizando a sensação de bem-estar ao se abrir um pacote de entrega e monetizando em cima do consumo rápido, que faz com que roupas novas sejam exibidas e celebradas naquele momento para nunca mais. A prática acaba servindo como um símbolo emblemático da contemporaneidade dopaminérgica. Uma pesquisa recente da CNDL (Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas) e do SPC Brasil (Serviço de Proteção ao Crédito) revela que 51% dos consumidores compram por impulso na internet com certa frequência e 9% fazem isso sempre, influenciados pelas redes. O FOMO (fear of missing out, ou medo de ficar de fora) gera ansiedade e reforça a ideia de que estar atualizado é indispensável, não importando o quanto isso pode custar e quão pouco isso pode durar.
A relação entre moda, desejo e insatisfação está, então, entrelaçada com questões psicossociais, especialmente se pensarmos que a necessidade de constante renovação do guarda-roupa corrobora a ideia de que a identidade está diretamente ligada ao consumo. Sem aquilo, você não tem identidade; sem o novo, você não é relevante. Há estudos que indicam que a satisfação gerada por compras impulsivas dura em média apenas vinte minutos antes que o desejo por algo novo se imponha novamente. Não é que Don Draper tinha razão? Essa efemeridade do prazer é a espinha dorsal da ciclicidade do mundo fashionista e do consumo, curiosamente criando padrões de moda que, no fim, mais nivelam do que destacam. Isto é, a identidade não é caracterizada por aquele vestido ou aquela camisa, pois a identidade não é o que se está consumindo, mas o consumo em si, e o consumo é um estilo fácil de se reproduzir.
A cultura que se gera é paradoxal. Por um lado, ela se vende como libertadora: consumir significa expressar quem somos, conquistar autonomia e pertencer a grupos sociais. Por outro, a identidade que se cria passa a ser mediada por um sistema que exige constante atualização. O desejo nunca é realizado por completo, pois sua função é justamente manter a roda girando. Disfarçado sob as sombras das vontades que nos são impostas, está o aprisionamento.
Será possível encontrar satisfação real dentro desse sistema? Ou estamos fadados a desejar sempre o próximo lançamento, o próximo look, a próxima tendência? Prevalece a angústia de quadros pintados com sonhos que, independentemente de quais sejam, foram pincelados com as cores da impossibilidade.
Por mais que a desejemos, a verdadeira satisfação do Carnaval não virá. Se chegar, será por míseros minutos. A moda, que historicamente sempre refletiu os anseios de seu tempo, precisa encontrar novas formas de se reinventar — e nós, como consumidores, também.