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A espera das flores, de Lucas Rubly (2024).
#52SatisfaçãoCulturaEditorial

A afetada elegância da satisfação

por Carlos Alberto Dória

A satisfação confunde-se com o atendimento de uma necessidade qualquer, material ou espiritual, com a exaustão do desejo. Como uma medida subjetiva da eficácia de uma ação em direção ao mundo, a satisfação é quando o ser encontra o seu lugar e o seu limite. Que os sujeitos estejam fora dos seus respectivos lugares, como um exército de trabalhadores famintos e carentes daquilo que define a sua humanidade, tem enorme poder de subversão. A revolução certamente corresponde a um deslocamento na forma que se apresenta a satisfação até então. Quando Deus condena o homem ao trabalho como única via de satisfação das suas necessidades fora do paraíso, impõe-se a metáfora de que o próprio mundo só existe como coisa apropriada, ao passo que tudo o mais que circunda esse gesto só existe como potência. Se parece óbvio que o mundo que habitamos é fruto do trabalho, não é tão claro como os nossos desejos, pelo tanto de subjetividade que ainda carregam, se metamorfosearam em coisas. Entre uma coisa e outra, situa-se um conjunto de práticas fetichizantes, e, se aparência e realidade coincidissem, todo conhecimento sistemático seria desnecessário. 

Gosto do caminho explicativo que uma dupla de biólogos chilenos (Maturana e Varela, em A árvore do conhecimento) encontraram para explicar o princípio geral da vida: acoplamento. Da molécula mais elementar às formas superiores de vida, a necessidade de acoplamento move os viventes em direção a seus semelhantes ou àquilo necessário para mantê-los vivos. E a satisfação é exatamente atender a essa necessidade de movimento em direção ao outro, visando atender carências de qualquer tipo, sejam materiais ou simbólicas. E como vivemos através de vários acoplamentos, o ser jamais existe isoladamente, visto que traz dentro de si a própria forma como deve agir diante do outro, a sua cultura do acoplamento. Assim, a satisfação é um estado passageiro na luta pela vida, se deixamos de lado sua idealização como estado permanente, próprio das ideologias que prescindem da matéria como ponto de partida e de chegada do conhecimento. 

Na vida erótica humana, por exemplo, o orgasmo é denominado, no idioma francês, petit mort — aquele estado passageiro do qual “voltamos” após a satisfação do acoplamento que justamente suprimiu nossa individualidade por um instante. Sem dúvida, a forma humana de existir produz acoplamentos simbólicos no âmbito da própria cultura, como o êxtase diante de uma música, de um poema ou de um alimento preparado com esmero incomum. A incompletude é evidente, e a imaginação, que permite ensaiar formas de satisfação humana, antes mesmo que se materializem, é já uma forma sua. A satisfação imaginada move o vivente, através de gestos precisos, em direção a seu objetivo.

No seu livro pouco difundido, The Descent of Man, Charles Darwin desenvolveu o estudo dos fundamentos materiais da moral a partir do conhecimento da seleção sexual em meio a um grande número de espécies, nas quais os machos, para conquistarem a atenção da fêmeas, desenvolvem atributos visuais, às vezes transitórios, que representam desvantagens competitivas notórias — como plumagens que dificultam seu mimetismo ou movimentos em meio à floresta, ou galhadas, como nos cervos — numa espécie de “sacrifício de si” em prol da reprodução, sendo ainda que a disputa entre os machos não significa necessariamente a eliminação de um deles, mas a classificação hierárquica entre eles no acesso à fêmea. Ao conseguir “contrariar” o aspecto eliminatório das relações que se dão na natureza, o homem pode aprofundar seu alcance, desenvolvendo instintos sociais que se sobrepuseram à eliminação dos mais fracos, preservando-os. Assim, toda sorte de simpatia, afinidade ou amor encontrou condições materiais de se desenvolver, escapando da lógica eliminatória e criando novas condições de satisfação.

A imersão na cultura humana faz da satisfação uma experiência mediada pelas regras e pelos valores que a comunidade logrou fixar como obrigatórios para todos em um determinado tempo e lugar, o que já a torna uma dimensão variável da vida. O que chamamos “costume” encerra em si essa variabilidade que expressa satisfação. Marcel Mauss, por exemplo, pôs-se a estudar as técnicas de uso do corpo, ressaltando que somente um inventário total, percorrendo todas as culturas, nos permitiria traçar o arco de possibilidades de uso do corpo humano. Há formas de nadar, de caminhar, de amar, de comer que, em conjunto, nos permitem contemplar a obra humana e detectar as formas de satisfação das necessidades que a evolução histórica dos povos permitiu surgirem. 

Assim como Mauss fez com as técnicas do corpo, podemos eleger outras perspectivas que correspondam às formas de satisfação de outras necessidades, ainda que brotadas da fantasia, desenhando o repertório do humanamente possível. Se entende, desse modo, como o encapsulamento da satisfação de qualquer necessidade na forma de mercadoria corresponde, na história humana, a um momento empobrecedor, capaz de restringir os limites de expressão do humano apenas àqueles domínios presididos pelo capital. Levada ao mercado, a lógica eliminatória ressurge, e não é por outra razão que a economia política clássica pode se utilizar da “seleção dos mais fortes” [sic], que Darwin explorou como “seleção dos mais aptos” em seu A origem das espécies, criando a impressão de que o genial cientista não passava de um legitimador da concorrência e da competição eliminatória típica do capitalismo. No plano mais geral, teremos a comunidade se desenvolvendo através de práticas colaborativas, ao passo que as relações externas poderão seguir nos moldes da competição eliminatória, como a guerra e o saque. Na antropologia de Darwin, a satisfação social será o nome de um imperativo, ao passo que suas modalidades expressarão as condições sob as quais se dá o acoplamento, conferindo ao humano um modo específico de ser.

Vejamos, como exemplo, o gosto humano como a satisfação que se forma no encontro de uma subjetividade com algo que lhe é exterior, como acoplamento que vai além dos limites percebidos no instante mesmo da apropriação. Desta, por sua vez, só se acerca o sujeito na crença de que o gosto lá se abriga, porque dele tem uma antevisão que se formou em experiências similares, através de lampejos e da convicção de que ele existe de forma abstrata, independente da experiência, visto que é indiferente à subjetividade. Assim, o gosto só pode se confirmar como algo alheio ao sujeito, anterior a ele, embora só através dele possa existir aqui e agora. Uma manga doce e agradável só existe no seu consumo, embora antes disso já estivesse suspensa na mangueira, indiferente ao seu consumo futuro. Se a gostosidade compõe o conceito de manga, é porque mais de uma pessoa a  confirmou, como consciência de uma sensação abstrata. 

Esse gosto em repouso atrai à satisfação os sujeitos que, a rigor, não o conhecem na sua concretude e por enquanto só como conceito. O gosto da manga compõe-se da experiência concreta orientada pelo conceito originando uma convergência, sem contradições e em concordância consigo mesma. Na multiplicidade dos sujeitos que gostam de manga podemos assim surpreender “gostos do gosto”, multiplicando ao infinito os problemas de seu reconhecimento como “manga”.

A ideia de que a satisfação de uma necessidade cria outras necessidades nos coloca diante de uma insatisfação permanente como móvel da ação, de algo que dirige o homem em direção ao mundo exterior. E nesse movimento se abriga o gosto abstrato e sem identidade, em concordância formal consigo mesmo como mera necessidade do próprio movimento que, na sua execução, satisfaz. Seja na caça ou na pesca, aí se aninha a necessidade de suprimir a fome como gozo. Este, portanto, será o sinal de que aquela foi satisfeita, dando contornos à atividade gozosa como o acoplamento com o mundo.

Fascinar, encantar e atrair são os sinônimos que o dicionário reserva para a sedução. Será com Don Juan, de Tirso de Molina, que o século XVI apresentará a sedução associada ao dom de iludir com falsas promessas, de modo a, por fim, ofender a virtude feminina que repousa na virgindade. A psicologia logo definirá a “síndrome de Don Juan” como uma compulsão em que o objetivo não é propriamente o sexo, mas o processo de conquista, o cortejo sentimental, resultando em relacionamentos pouco duradouros. Distinto é o sentido que se pode encontrar no domínio da biologia, como comportamento e alteração física que tem por finalidade produzir a vida, sem que aí se esconda um propósito de transgressão.

Com efeito, se há uma história natural da sedução, ela começa entre os protozoários, no período pré-cambriano, quando estes seres desenvolvem a capacidade de se alimentar conduzidos pelas cores das presas, isto é, pelo carotenoide presente nas microalgas (como nos lembra Claude Gudin, em Une histoire naturelle de la seduction). Essa teoria biológica nos leva em linha reta às explicações darwinianas sobre o dimorfismo sexual, fenotipicamente distinto, como são faisões, pavões, perus, galos da serra e tantas outras espécies, de insetos a mamíferos, inclusive o homem. O notável, porém, é que essas diferenças entre os sexos se manifestem, muitas vezes, pela presença copiosa das cores e formas, combinadas e expressando o que não titubeamos ao considerar beleza. O poder de atração da beleza, de qualquer tipo, podemos considerar um fenômeno circunscrito à lógica da sedução. As manifestações naturais do belo nos fazem suspeitar, por outro lado, que sua derivação moral nada mais seria do que o acoplamento do juízo humano ao reconhecimento de formas vivas, a despeito de qualquer teoria estética.

Seja como for, outra descoberta extraordinária de Darwin, ao estudar a seleção sexual, seria o fato de certas espécies serem capazes de conformar o mundo circundante, objetos naturais, à própria lógica de sedução. Não seriam, assim, apenas os homens capazes de produzir uma sorte de “joalheria”, de modo que o próprio Savarin, ao estudar a gastronomia, identificava em espécies como a baunilha uma finalidade (conferida por Deus) de embelezamento da comida, à maneira que a coqueteria embelezava as mulheres com o fito da sedução. A “elegância afetada” das mulheres seria, pois, um momento do ritual do acasalamento, assim como o embelezamento da baunilha é do ritual gastronômico. Ambos, atendendo aos desígnios de Deus, conforme Savarin, garantem a reprodução tanto do indivíduo como da espécie.

A hipótese de Savarin, ainda que deixemos de lado o socorro que busca em Deus, não deixa de colocar a questão instigante, relativa a uma harmonia entre espécies animal e vegetal, como um terreno de desenvolvimento da sedução. Essa questão é evidentemente anterior ao desenvolvimento das ciências morais, ao longo do século XVIII, conforme seu enfoque. Assim, e num sentido a esclarecer, a formação do gosto seria, de algum modo, tributária da estética naturalizada, com vistas à sedução. A essa altura, a sedução, enquanto atração exercida por um objeto natural, exterior, seria ela mesma uma forma de subordinação do vivente, em tudo que possa parecer uma escolha sua, às determinações que suprimem qualquer ilusão de alternativas. Os estudos de Matti Chiva sobre o atavismo dos bebês diante do doce e do amargo indicam determinações da mesma natureza que a predileção pela baunilha.

Certamente os modos como as culturas se apropriam dos “dons naturais” das coisas que possam ser tomadas como alimentos é o ponto de partida de qualquer antropologia da alimentação. É preciso chegar à pimenta, por exemplo, antes de conhecer a tolerância desenvolvida por uma determinada cultura à sensação que provoca, de modo que parece existir um atavismo anterior à calibragem cultural da sua intensidade. Qualquer dimensão física do homem, é sabido, pode ser apropriada e moldada pela cultura, de modo a promover as formas concretas de acoplamento do animal humano ao meio. A identidade sem conteúdo, indeterminada e abstrata, expressa a ausência de contradição ao mesmo tempo que a concordância formal consigo.

À mercantilização dos frutos do trabalho humano corresponde a mercantilização da própria satisfação e do desejo. Antes mesmo do acoplamento ou da satisfação, o desejo, pegajoso, toma forma e banha o mundo, encarnando nas coisas. Alienado do sujeito, passa a comandar seu trabalho presente e futuro, à medida que se torna prisioneiro de outros produtores dos objetos de satisfação, agora só acessíveis pela troca. Desse modo, e como carência, comanda todos os gestos de consumo consumíveis e, pois, produtivos. Essa centralidade da economia será própria do capitalismo, visto que, em sociedades anteriores, desejo e satisfação materiais podiam surgir e serem satisfeitos no bojo de outras instituições que não o mercado, como a religião e a família, conforme bem demonstrou Karl Polanyi. Ora, as funções vitais do mercado terminam mesmo por subordinar as demais instituições, fazendo do desejo e da sua satisfação meros sinônimos de mercadorias. Essa forma ardilosa de existir, à medida que as coisas escondem o trabalho humano que as trouxe à luz, acabam por absorver o próprio sujeito através da troca. Não à toa, Marx fazia blague dizendo que, do capitalista, o capital necessitava apenas da alma.

Desejos que contrariem essa lógica ensejarão novas formas de satisfação, quiçá antagônicas e disruptivas. O desejo dos despossuídos, por exemplo, conforme o Manifesto Comunista de 1848. Ou, num plano simbólico, dos artistas antissistema, ontem e hoje.

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