
Fantasia de violência
One of the best things that ever happened to me is that I’m a woman
— Marilyn Monroe
Os saltinhos dos meus sapatos fazem esse barulhinho no chão do centro da cidade, tec tec tec. Quando era mais nova e comecei a andar sozinha, meu pai falou para eu usar tênis, para o caso de precisar correr de um homem que pulasse de um beco em cima de mim, que me agarrasse pelo braço e me puxasse para uma obra, um terreno baldio. Usei os tênis, e os homens não pararam de grunhir, então continuo usando meus sapatinhos.
Enquanto passo, sei que irão tentar invadir o meu silêncio e o meu espaço. Desde pequenininha assim, ó, sou pecinha delicada. Pegava com uma folha caída a lagarta venenosa, sua pelúcia neon frágil na calçada, e a punha de volta na árvore. Sentia pena de tudo o que via, e principalmente daquilo que estava avariado. Cachorro filhote da patinha quebrada, perguntava à mãe se podia levar pra casa. A velhinha esmolando na porta da igreja, santinho na mão, valha-me misericórdia, por favor, não podemos levar pra casa? Queria dar um banho no mundo. Me enfiava tão dentro do meu pensamento que era difícil sair. Não tinha linha reta. Começava com a cabeça encostada na janela do ônibus, inventa aqui e ali o que passa por trás de cada casa, grade na esquadria, quintal virado em garagem. Terminava não sei onde, Saturno, Vietnã, um beijo de amor. Teve o dia que fui assim arrancada disso sem aviso. O velho magro sentado no assento ao lado sorria congelado pra mim, o pau pra fora da calça, mole mole, se desenrolando pra fora do fecho-éclair igual um gongolo.
Fiz sinal e desci no ponto errado, o homem do gongolo olhos fixos em mim, o sorriso idiota fixo bem no meio da caroça, colado no vidro pra ver minha reação. Eu toda sozinha na calçada deserta, a cara fixa colada no vidro, esquecido meu lanche do lado do velho. Foi aí que começou. Voltei lá pra dentro de mim, pra dentro da minha cabeça. Na minha imaginação, entrei de volta no ônibus, o momento exato, o sorriso, o gongolo. Sorri de volta, toda menina, peguei na mochila o compasso da aula de geometria e atravessei a bochecha do velho. O sangue escorria. Depois, na fenda das calças. Gritava o velho, me chamava de maluca, pedia para me tirarem de cima dele. Para, motorista! Para tudo! Um escândalo, a trocadora me arrastando pra fora. Bem feito pra ele.
Depois que o cineminha na minha cabeça acabou, fiquei satisfeita, toda me tremendo, esperando outra condução passar. Demorou à beça. Gostei muito de dar o troco, mesmo que de mentirinha. Mas adiantou estar de tênis?
Perdi foi um tempo não gostando de ser mulher para depois entender que eu não gostava era das coisas que aconteciam com as mulheres. Todo dia me pergunto se gente ruim briga com a bondade que tem dentro de si, igual gente boa briga com a ruindade dentro de si. Não queria gostar tanto de revidar na minha invencionice, mas gosto. Então, fingindo distração, leio Agamenon no metrô, pernas cruzadas, enrolando uma mecha do rabo de cavalo no dedo. Na minha frente, o carinha de terno azul marinho acha que saiu impune me chamando de gostosa. Na minha cabeça, ele já está banguela. Meus socos na sua cara redonda e barbeada, as raízes dos dentes ficando moles nas gengivas, ele cuspindo os pedacinhos brancos, a boca toda tingida de vermelho. Olho pras minhas mãos e fico triste com o cristalzinho que escapuliu do meu anel. Volto ao livro. Babado essa Cliemnestra.
No trabalho, mando um inbox pro meu pai falando saudade, tec tec, minhas unhas longas na tela do celular, e sinto as mãos do chefe nos meus ombros, conversinha boboca. Agarro o celular com força, a unha feitinha pronta para sair uma lasca. Respiro gostosinho, e o celular voa na orelha do boss, ele atordoado no chão, os saltinhos dentro do orifício do nariz, rasgando de fora a fora. Entra uma paz no meu pulmão quando eu respiro, prometo entregar o relatório ainda hoje. Se nojo escorresse, eu tava pingando. No começo, as meninas do setor me convidavam pro happy hour, pro samba, pra passeios nos fins de semana. Fizeram um grupo de WhatsApp. Todas tinham nojo. Depois de um tempo, se cansaram de mim. Não bebo, não saio à noite, quero preservar minha juventude intocada até o momento certo. Outras coisas melhores estão preparadas para mim. Sinto que eu não pertenço a este lugar, acho que elas sentem também, o ar fica mais leve quando acaba meu expediente e eu saio da sala. Parece que todo o andar solta um grande suspiro, e eu também fico aliviada quando estou no elevador.
Não mexo no celular na rua, não sou boba. Tenho essa coceirinha, a mão formigando, igual todo mundo tem. Estamos muito viciados em rede social, valha-me. Entro num café e tiro o bendito da minha bolsinha baguete. Gosto de olhar o perfil do meu pai, a pele dele enrugada de velho feliz, a carne tostada sarapintada de manchas descoradas. O anel no mindinho, a cerveja reluzente, o versículo da Bíblia, o parabéns pelas notas boas do meu irmão. O mais novo é inteligentíssimo, entrou na faculdade e vai ter festa de formatura do ensino médio. Morro de orgulho e dou uma curtida, um parabéns, emojis com olhos de coração, um dois três, é melhor mandar mais. Saio do café chupando meu frapuccino com creme no canudinho até a sugada final. Não quero deixar de ser. Não vou deixar de ser. Dessa vez nada acontece na minha caminhada, mas, se acontecesse, gostaria muito de dar um tiro.
Dispenso a cuidadora de Mamãe quando chego em casa. Hello e Kitty, as gatinhas brancas, se enroscam na minha perna. A cuidadora nunca dá ração, diz que não é paga para isso, mas Mamãe gosta dela, então vou engolindo. Os bichanos de rabo em riste e olhos brilhantes se deliciam com o barulho do grão seco no pote de plástico na cozinha, miando de prazer. Toda noite a cuidadora faz uma listinha, diz como Mamãe foi boazinha. Não brigou para tomar banho, tomou a sopinha, gemeu pouquinho na fisio. Sinto que a cuidadora não gosta muito de mim, também igual não gosto dela, acha que eu não fico muito em casa. Faço o PIX, tec tec, unha na tela, me distraio com mensagem do meu pai perguntando se estou em casa, olha, que coisa boa, pergunto qual é o dress code da formatura do mais novo, tenho um vestido verde de vidrilhos que pode cair bem. Na televisão, passa a novela favorita da Mamãe, A viagem. Enquanto passo cânfora nos pés e nas pernas dela, torcemos para o espírito maligno não destruir um casal tão bonito. Falar ela não fala, mas sabemos, desde que nasci, uma o pensamento da outra. Depois disso, muitos anos. Primeiro foi a perna, tava assim meio parada. O dormente do braço debruçado na máquina de costura veio em seguida, depois foi a vista embaçando, quando a doença lhe pegou pela boca eu passei a falar por nós duas, vem a minha palavra perguntando e a palavra dela na minha boca respondendo, e é assim que eu sei que a gente é unha e carne.
Por isso terminei com o quase namorado. Era tão bonzinho ele, mas não compreendia que não saio à noite, que prefiro o sofá, a novela, achou estranho botar a mão por debaixo da minha blusa com a Mamãe olhos fixos na televisão, não quis. Chorei um pouquinho quando ele foi embora. Ele disse que me amava, pediu pra eu parar com as mensagens pra preservar o que a gente teve de bom, que não era eu, era ele. Até quis parar de mandar mensagem, mas ele disse que me amava, e se o amor me chama eu vou. Um dia sumiram os perfis dele nas redes sociais e a foto no zap. Sentia muito a minha falta, certeza. Do outro lado da calçada, eu via ele chegando sozinho no prédio, dava uma pena, meu coração do tamanho de uma ervilhinha, o mesmo que eu sentia com as lagartas, os filhotinhos. Um dia não aguentei e fui lá nele dizer que ele podia voltar atrás, voltar pra mim. Tinha que ver a cara de espanto, o portão automático, clek, ele atrás da grade como um prisioneiro, o moço da portaria, uma educação inglesa, informou que eu tava proibida de subir, eu, que nunca nem subi lá, que jamais subiria no apartamento de um homem sozinha. É dia do lixeiro, tem caixa de feira na calçada. Eu daria um tanto de paulada no moço da portaria, mas só para desacordar, a cabeça tombando no pescoço, para ele aprender a conversar. Fico muito triste que as pessoas não conseguem mais se entender na conversa. Não adianta explicar pra ele que o namorado só está confuso, com medo de amar.
No fim foi bom que agora somos de novo só eu e Mamãe, o namorado atrapalhava muito o acompanhamento da novela.
Na cozinha, um macarrãozinho. É a hora que gosto de usar meus utensílios comprados online nos sites chineses, tudo muito melhor que aqui, bem mais barato. Espátula de silicone rosa-bebê, chaleira azul-turquesa, um mini raladorzinho de queijo muito mimoso quase dourado. A sensação é de surpresa em cada pacote que chega, nem lembro o que pedi, e quando abro é Natal qualquer dia do ano. A cuidadora diz que não é obrigação dela colocar tanta caixa pra dentro, só que eu faço um monte de coisa que não é minha obrigação, é por gentileza, mesmo com quem não pede nem precisa. Meu Pai, por exemplo, desde que encontrei ele, se ele não me liga, eu ligo. Acompanho tudo da vida dele. Torço pelas vitórias, digo que a esposa dele é linda, tenho um emoji pra cada um. Prestigio. Família é família. Ai, saiu uma lasca de pele do meu dedo, o pedaço de queijo é muito grande pro raladorzinho.
Vai ser difícil fazer o skincare da noite com esse curativo no dedão. Touca na cabeça, máscara de papel no rosto. Patches em formato de olhos nos olhos, patches em formato de boca na boca, cremes e meias nos pés, óleos no corpo e um roupãozinho de fleece estampado com ursos tão felpudos quanto o tecido. Gosto de ficar assim, atada, amarradinha, imóvel, apenas livres os orifícios do nariz. A música de abertura da novela A viagem embala meu sono de quarenta em quarenta minutos. Mamãe não consegue mais dormir deitada, dá escara. “O seu amor chamou e eu regressei” embala o começo do meu sono. No solo de guitarra, já estou sonhando.
O sono é sagrado, mas meu celular é um pouco herege. Normalmente ninguém me liga a essa hora, mas a tela pisca, iluminada, Hello e Kitty ronronam em cima de mim. Alguém esmurra a porta. Meu ritual de beleza está oficialmente arruinado. E essa hora, pacote não deve ser. Os entregadores gostam muito de mim, dou gorjeta. Pelo olho mágico eu olho para Papai e Papai olha para mim. Claro, ele não consegue conter a emoção ao notar que estou ali.
VOCÊ TÁ EM CASA
EU SEI QUE VOCÊ TÁ AÍ
RESPONDE
O QUE VOCÊ QUER
Corro até a Mamãe e já aviso: não falei que ele ia voltar? Ele voltou. Por mim e pela senhora! Ela tá tremendo, mas também tô tremendo de felicidade.
MINHA VIDA É OUTRA
VOU TE MATAR
É DINHEIRO? ENTRA NA JUSTIÇA
PARA DE PERSEGUIR A MINHA FAMÍLIA
TÁ MALUCA
Ainda bem que sempre estou pronta para as visitas. Fiz curso de cerimonial no YouTube. Tem que receber bem, mesmo quem chega sem avisar. Calço meus sapatinhos, solto os rolinhos do cabelo e escolho no faqueiro comprado na Shein a lâmina com o cabo mais bonito. Papai voltou. É sempre tempo de perdoar.

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