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Prelúdio, de Manuela Navas
#53MitosSociedade

O que fazer com as histórias que contamos a nós mesmos?

por Daniela Faertes

Conteúdo exclusivo da edição digital.

“Sou assim, sou assado”, “fiz isso, fiz aquilo”, “não sei, só sei que foi assim”. Quantas histórias cabem em uma personalidade? Nossa busca por felicidade, sentido, realização e, muitas vezes, aprovação externa é cheia de crenças cuidadosamente construídas (de maneira mais ou menos consciente), histórias que contamos a nós mesmos sobre quem, como, por que somos. Essas narrativas, em alguns casos, nos fortalecem, fazendo com que assumamos nosso papel no mundo; em outros, enclausuram, prejudicando nosso campo de visão e até reduzindo possibilidades. Vivemos a nossa própria Ilíada, recontando aquilo que tomamos como nosso, definindo o “eu” a cada vez que o fazemos.  

Um acontecimento pode ser visto por diversas perspectivas, e, em se tratando de algo que aconteceu com a gente ou perto da gente, seremos nós o ponto focal da história que contaremos dali em diante. Isso não quer dizer que contaremos versões falaciosas do que aconteceu, mas tudo será mediado a partir do nosso olhar, que de isento não tem nada. E nem sempre a interpretação que fazemos de nós é generosa. Em meio ao emaranhado das nossas histórias pessoais e das pressões sociais, é comum que nos joguemos para baixo, tão comum quanto nos jogarmos em bajulação própria. Quando não há uma verdade absoluta, o que sobra no quadro são as tintas que temos à disposição. 

O chamado “efeito Rashomon” descreve situações em que, por diferentes interpretações pessoais, não é possível saber o que realmente aconteceu. O filme de Akira Kurosawa de 1950 que dá nome ao efeito e que segue impressionante mesmo 75 anos depois de lançado, fez isso com o julgamento de um caso de estupro e assassinato em que três pessoas relatam sua versão do acontecido — daí o termo. Na vida real, raramente conseguimos “rashomonizar” qualquer história ou qualquer versão de quem somos, então ficamos com a interpretação que elaboramos ou que chegou até a gente, externa ou internamente. E assim seguimos, como mestres titereiros de nós mesmos. 

Mas e se “rashomonizássemos” nossas histórias? Com qual versão ficaríamos?  

A terapeuta Daniela Faertes tem olhado de perto para essas costuras invisíveis entre o eu e o mundo. Especialista em terapia cognitivo-comportamental, ela aborda como crenças limitadoras, baixa autoestima e o desejo excessivo de agradar fazem parte das narrativas internas que nos impedem de viver com autenticidade e satisfação. 

Com sua ajuda, exploramos como essas histórias impactam nosso bem-estar, como reescrevê-las e quais mitos desconstruir para viver com mais plenitude. 

Como você entende o conceito de “mito pessoal”? Em que medida pode funcionar como limitador? 

Daniela Faertes: São crenças profundas, formadas ao longo do nosso desenvolvimento, que funcionam como constructos rígidos e convictos. Por isso, acabam nos atrapalhando: são limitadas e limitantes. Isso significa que, quando temos uma convicção muito forte sobre algo, fechamos espaço para outras possibilidades. Faltando essa flexibilidade, deixamos de considerar outras narrativas além dos nossos mitos pessoais. 

Como a terapia cognitivo-comportamental atua sobre eles? 

DF: Partimos da premissa de que não são as situações em si que nos fazem mal, mas a forma como as enxergamos. Enxergamos o mundo através de uma lente formada por nossas crenças, convicções e visão de mundo. Quando essas crenças são disfuncionais, podemos trabalhar nelas para mudar nossa forma de ver, pensar, sentir e agir. Nossos pensamentos, sentimentos e comportamentos vêm dessas crenças. No fim, atuamos na vida conforme as narrativas que contamos a nós mesmos. 

Muitas pessoas escrevem seus próprios scripts sobre a felicidade, baseadas em expectativas sociais ou familiares? 

DF: O mais comum é que as crenças sobre felicidade estejam baseadas em padrões familiares e, depois, em influências sociais. É raro que essas crenças sejam totalmente individuais e desvinculadas dessas duas fontes. Às vezes, acontece até o contrário: a pessoa decide ser o oposto do modelo familiar porque não se identifica com ele, ou simplesmente segue a trajetória construída ao seu redor, mesmo quando sente algum incômodo. Essas crenças são muito enraizadas, moldam nosso olhar sobre a vida e até a forma como nos percebemos. Não temos como fugir completamente dos padrões sociais. Todo mundo diz “não se compare”, mas somos seres sociais, e o comparativo é natural. Esses modelos foram importantes para a sobrevivência dos grupos, para que pudessem se adaptar e se organizar. Porém, muitos desses scripts sociais hoje podem ser bastante adoecedores. 

A ideia de “narrativas que nos protegem” pode ser ambígua: às vezes dão estrutura, outras vezes aprisionam. Como diferenciar entre uma narrativa que serve como suporte e uma que mantém um ciclo de autossabotagem ou estagnação? 

DF: Elas tendem mais a nos limitar e sabotar do que, de fato, proteger. Em geral, funcionam como proteção contra rejeição, baixa autoestima… Até são protetoras, mas, justamente quando cumprem esse papel, se tornam menos críveis e mais difíceis de sustentar. A pessoa acaba criando um mundo que não é real. Na terapia cognitiva, buscamos evidências para flexibilizar essas crenças. Na verdade, qualquer rigidez é disfuncional. Uma crença muito rígida, ainda que pareça protetora, pode me impedir de entrar em contato com os meus medos, com o amor, com o risco. São protetoras, sim, mas limitantes. Sempre deixam uma interrogação sobre o quanto realmente fazem bem. 

Quais são os principais obstáculos que impedem uma pessoa de questionar suas próprias narrativas? 

DF: Eu apontaria dois. Um deles é quando a narrativa protege a pessoa de algo ainda mais difícil de encarar — algo que, psiquicamente, ela não está pronta para enfrentar. O outro tem a ver com a rigidez da personalidade, com a inflexibilidade para rever pontos de vista.  

A sociedade moderna, com a cultura do “faça o que te faz feliz”, cristaliza uma narrativa que nem sempre ajuda? 

DF: Essa cultura acabou sendo adoecedora, porque criou, principalmente entre os jovens, uma expectativa de que a gente tem que fazer só o que gosta. E nem sempre é assim — às vezes, o que a gente faz não é algo de que se gosta, ou esse gostar simplesmente não aparece. A felicidade é algo amplo e não pode ficar estagnada num construto, presa a uma única parte da nossa vida. Por outro lado, pesquisas mostram que ser uma pessoa mais positiva — não no sentido de buscar a felicidade o tempo todo, mas de ter uma postura mais otimista — costuma ter uma visão de mundo que abre mais possibilidades. Não é sobre certezas sem evidências, mas sobre um otimismo que se abre para o que pode acontecer. Quando a gente tem uma visão muito pessimista, a tendência é não enxergar saídas ou outras possibilidades. 

A hiperexposição do mundo atual atrapalha ou acelera a construção de uma narrativa pessoal mais autêntica? 

DF: Com esse bombardeio constante de informações e opiniões, as pessoas acabam deixando de criar narrativas próprias mais autênticas e passam a adotar discursos prontos. Com um mundo tão polarizado, a enxurrada de notícias dificulta o diálogo entre diferentes linhas de raciocínio e até mesmo o desenvolvimento de uma narrativa pessoal sólida. 

Quais sinais podem indicar que estamos presos a um mito pessoal que nos impede de evoluir ou mudar? 

DF: Muitas vezes, os sinais são mais externos. Os internos têm a ver com o nosso mundo emocional e mental — como está o nosso nível de angústia, de tristeza, de medo. Já os externos se expressam na paralisia, nas coisas que a gente gostaria que acontecessem e que simplesmente não acontecem. Por exemplo, crenças que temos sobre relacionamento podem impedir que a gente consiga ter um. Então fica esse empecilho. As pistas estão nas coisas que gostaríamos de realizar na nossa vida, mas que não estão acontecendo. Porque se a gente sente, pensa e se comporta a partir das nossas narrativas, é como se estivéssemos insistindo em um caminho — e talvez existam outros, em outros formatos.  

O cuidado da saúde mental individual pode ser considerado um investimento coletivo? 

DF: O cuidado com a saúde mental individual é, sem dúvida, um investimento coletivo. Como propõe o conceito de capital mental, trata-se de investir na nossa capacidade de lidar com a vida de forma mais saudável. Mas a terapia, no Brasil, ainda é um recurso muito elitizado. Os serviços públicos oferecem poucas alternativas de atendimento, e a maioria das pessoas precisa recorrer a atendimentos pagos, o que limita o acesso de boa parte da população. Existem faculdades e institutos que oferecem esse tipo de serviço, mas eles ainda não dão conta da enorme demanda. Quando falamos em capital mental, falamos também de investimento governamental em saúde mental. As consequências da falta desse investimento costumam ser mais graves e mais caras do que se pensarmos em ações realmente preventivas. 

Como entender a diferença entre autocuidado e individualismo? 

DF: A diferença é sutil, mas importante. O autocuidado é essencial para o nosso bem-estar. A partir do momento em que estamos bem, mas não convivemos, trocamos, contribuímos em nada com as outras pessoas, aí estamos diante de uma postura individualista. Há inclusive pessoas individualistas que nem praticam o autocuidado, mas continuam focadas apenas em si, de forma rígida, sempre buscando o que é melhor para elas. Isso as torna alheias ao mundo. Já o autocuidado é cuidar de si para ter condições de oferecer bem-estar também às outras pessoas. Quando dizemos, por exemplo, que a terapia individual é voltada ao indivíduo, isso não significa que ela não afete o coletivo. Quanto mais saudável está uma pessoa, mais ela contribui para o bem-estar coletivo. E o oposto também é verdadeiro: quanto mais adoecida mentalmente, mais adoecimento social ela pode provocar. 

Muito se fala em liberdade, mas a liberdade de se reinventar ainda assusta. Por que mudar continua sendo visto com desconfiança? 

DF: A liberdade de se reinventar às vezes esbarra naquele clichê do futebol, de que mudar de time é estranho — se você é de um time, tem que ser para sempre. Há uma ideia de que a pessoa deve manter uma posição fixa, não pode mudar de crença política, religiosa ou estilo de vida. Mas, na verdade, reinventar-se é a essência da vida e da liberdade, é o nosso potencial de transformação. A mudança ainda gera desconfiança, porque a sociedade criou esse hábito rígido de que as pessoas devem se manter iguais. 

O que você diria para quem sente que precisa mudar, mas está paralisado diante da complexidade da própria história? 

DF: Eu diria: valide essa complexidade. Todos temos uma história, mas não precisamos ser reféns dela. Não é sobre apagar ou negar o que aconteceu, mas sim sobre mudar a forma como enxergamos essa história. Temos essa capacidade cerebral — a neuroplasticidade, a flexibilidade cognitiva — que nos permite transformar a visão que temos da vida. Quem está preso à angústia da própria história precisa saber que pode mudar essa perspectiva. A partir daí, mudam também os sentimentos, os pensamentos e o comportamento. 

Em qual mito sobre felicidade você gostaria que as pessoas deixassem de acreditar? 

DF: Que as pessoas começassem a substituir a palavra “felicidade” pela busca do bem-estar no cotidiano. Vivemos o dia a dia, e não aquele grande sonho que pensamos que vai trazer nossa felicidade. Não vale a pena ficar só em busca da felicidade como um conceito amplo. A felicidade para cada pessoa é algo diferente, e o mais importante é buscar um estado de bem-estar, algo que pode ser cultivado no cotidiano. 

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