O que é o Homem? Essa pergunta sempre esteve, ao longo da história da humanidade, no centro do que é a própria filosofia. Aristóteles disse, 25 séculos atrás, que o Homem é um animal racional. De lá pra cá, várias definições surgiram, inclusive algumas mais cínicas, como a de Fernando Pessoa, que escreveu que o Homem é um cadáver adiado. Mas, como a filosofia tem esse caráter de indagação eterna, e na agenda prática dos não-filósofos não há tempo a perder com essas coisas, algumas questões mais imediatas sobre o ser humano e, por exemplo, sua relação com a natureza ocupam às vezes o papel de pergunta-chave da existência. Por razões óbvias e merecidas, tenho achado sempre bom, ultimamente, rediscutir uma dessas questões mais provocativas: o que é ser verde?
Gisele Bündchen estampa capas de revistas em fotos na Amazônia e dá entrevistas sobre o meio ambiente. Nossa beldade máxima tem até, aliás, seu próprio desenho animado nos EUA, por meio do qual combate crimes ambientais e ensina o público infantil a preservar a natureza. Não consigo pensar em exemplo melhor para dizer que o tema está – e literalmente – na moda. Diversas outras personalidades internacionais têm investido tempo e, em alguns casos, muito dinheiro na tentativa de chamar atenção para assuntos como aquecimento global, desmatamento, poluição dos oceanos, queima exagerada de combustíveis fósseis, mau tratamento do lixo, assassinato de golfinhos etc.
Algumas abordagens são mais românticas, outras mais pragmáticas e construtivas. Não importa. O que interessa é que o debate social existe e, sejamos justos, vários resultados práticos decorrem dele. Nem sempre, porém, é fácil separar o que é de fato concreto do que é apenas retórico ou marqueteiro mesmo. Adepto da máxima de Gandhi – “seja você mesmo a mudança que quer no mundo” –, proponho, como primeiro passo, o autoexame.
Numa tentativa de me sentir mais verde, algum tempo atrás, viajei até Tuvalu, no meio do oceano Pacífico, para entender e mostrar na televisão brasileira o caso desse pequenino país, apontado como a primeira nação que desaparecerá totalmente do mapa por conta da elevação dos oceanos causada pelo aquecimento global. Assim como a equipe da qual faço parte, aprendi bastante sobre esse drama numa importante conferência global climática que acontecera em Copenhague, na Dinamarca, meses antes. Ali resolvemos que viajaríamos a Tuvalu para compreender melhor a questão, e assim fizemos. A viagem foi marcante, tanto pelo que vimos quanto, principalmente, pelo que ouvimos. Mas, entre o momento que embarquei no LAX (aeroporto internacional de Los Angeles) rumo a Tuvalu e o que pousei de volta nele, alguns sentimentos mudaram. Convicções deram lugar a incômodos, e o idealismo deu lugar à vergonha – confesso.
Durante certa época do ano, moro na Califórnia. A viagem a Tuvalu ocorreu nesse período. Entre todos que habitamos o planeta, o povo dos EUA é, notadamente, aquele que mais consome petróleo, energia, bens de qualquer tipo, úteis e inúteis. É o que mais gera lixo e o que mais polui per capita também. Se por um lado a China torna-se o maior poluidor atmosférico do mundo, por outro esse título não é fruto das demandas individuais chinesas. Nos EUA, contudo, a demanda do cidadão comum é implacável e, como diz o ditado, uma vez em Roma torna-se muito difícil não fazer como os romanos. A elevação dos mares que deixará Tuvalu submersa é atribuída ao aquecimento global, e esse, por sua vez, estaria relacionado ao comportamento humano. O sul da Califórnia, símbolo maior do american way of life, tem, por exemplo, mais carros do que habitantes, o que, entre outras mil coisas, ilustra muito bem essa atitude.
Um amigo em Los Angeles pagou quase duas vezes o preço de seu carro para que fosse um modelo híbrido, ou seja, com propulsão elétrica. “Não quero mais queimar tanto petróleo”, disse. Automóveis híbridos têm sido vistos cada vez em maior número na cidade, e é claro que, num lugar que respira imagem e aparência, a referência das celebridades engajadas com meio ambiente impulsiona o consumo green. Isso não parece ruim, pelo contrário. Mas será que faz mesmo sentido, do ponto de vista ambiental, optar por carros elétricos num país em que a energia termoelétrica tem origem no carvão?
O carvão contribui em muito para o efeito estufa e para o drama de Tuvalu. Além disso, contém componentes chamados de sulfetos, que, em contato com o ar, formam substâncias que contaminam os lençóis freáticos. É, portanto, altamente poluidor, e nada que lhe é associado deveria ser chamado de green. Os carros elétricos dependem de energia elétrica, que, em boa parte do mundo, depende de carvão mineral. Esse detalhe um tanto óbvio é surpreendentemente desconhecido por pessoas supostamente educadas. É evidente que automóvel elétrico é bom, mas não há milagre: ir sozinho até um coffe shop dirigindo uma Yukon de quase duas toneladas, hábito típico da Califórnia, é sempre a-testar alienação ou indiferença ambiental. A não ser que o sistema de propulsão seja aquele igual ao do desenho dos Flinstones, em que se impulsiona o veículo por meio dos pés no chão.
Numa era em que os países emergentes e mais populosos do planeta caminham para ser o motor da economia mundial, e melhoram o padrão de vida de seus cidadãos, vale a pergunta: se centenas de milhões de pessoas tiverem recursos (seguimos nessa direção) para viver com os mesmos hábitos do cidadão do sul da Califórnia (o que parece ser a intenção das agências de marketing), será que o planeta sustenta? Não é, então, uma questão de dinheiro. Não é porque você possui dinheiro de sobra para pagar sua conta de luz que tem o direito de deixar o ar-condicionado ligado ao sair de casa, de modo a encontrar o ambiente agradável quando voltar. É como comprar comida fresca para jogar no lixo. Essas noções básicas de civilidade são bem assimiladas na Europa, mas ignoradas nos EUA. No Brasil e na maior parte do mundo, infelizmente, o padrão aproxima-se mais do estadunidense. Não é raro, numa manhã de sábado no Rio de Janeiro, por exemplo, assistir a todos os porteiros de prédios da zona sul “varrerem” suas calçadas com mangueira d’água e lhe gastarem (enquanto conversam sobre futebol) centenas de litros apenas para empurrar uma única folha de árvore até o bueiro – entupindo-o, aliás. Em países como a Inglaterra, enquanto isso, uma atitude dessas leva os vizinhos a chamarem a polícia.
Voltando à autocrítica, um outro hábito que me condena, além do de levar a caminhonete ao Starbucks, é o número excessivo de viagens de avião. Depois da ida a Tuvalu, meus companheiros e eu resolvemos neutralizar nossas pegadas de carbono calculando quanto teríamos emitido para chegar lá e plantando árvores que o compensassem. Fizemos isso. Mas, numa análise posterior, percebi que teria de plantar a Floresta da Tijuca inteira para sustentar meu estilo de vida de forma neutra em carbono. Viajar e descobrir o mundo por si mesmo é ótimo, e seria ótimo para o mundo, em diversos pontos de vista, se mais e mais jovens pudessem fazê-lo. Mas não do ponto de vista ambiental, certamente. Alguém poderia dizer que estou sendo severo demais; porém, dados são dados.
Precisamos ser capazes de avaliar nosso papel no mundo, e colocar o que sabemos acima de qualquer propaganda comercial. Cuidado com a propaganda. Se nem mesmo um cara que vai até Tuvalu – e posa de mocinho por isso – é, na prática, 100% inocente… O importante é ao menos tentarmos, com mais inteligência e esforço, seguir aquela máxima de Gandhi.
Caso contrário, é a definição de Aristóteles sobre o Homem que parece não fazer sentido algum.