CulturaLiteraturaSociedade

O que vem depois do capitalismo?

Se tivermos sorte, uma era digital de vida breve será superada por uma cultura material híbrida baseada em antigos e novos modos de vida e de subsistência cooperativa.” 

— Jonathan Crary, em Terra arrasada: Além da era digital rumo a um mundo pós-capitalista

Não há uma resposta única ou consensual sobre o que virá ao fim do já extenso domínio do sistema capitalista. Pode parecer fora de mão pensar num mundo não regido pelos ditames que conhecemos tão bem, e com os quais às duras penas lidamos diariamente. Até mesmo conceber tal mundo alternativo soa como algo esquisito de se fazer. Mas é natural, e lógico, se ter em vista que, cedo ou tarde, o reinado atual há de acabar. O que espera na esquina? Não se trata de uma resposta certa, como as que vemos de vez em quando em filmes, aquela solução que se apresenta heroicamente no fim da lousa preenchida de contas. No entanto, existem várias teorias e abordagens que tentam imaginar ou antecipar o futuro dos sistemas econômicos. Karl Marx — sempre ele — previu alguns movimentos do futuro: dentre eles, viu a inevitabilidade de uma unificação capitalista do mundo na qual as restrições à velocidade de circulação e troca seriam progressivamente diminuídas por meio da “aniquilação do espaço pelo tempo”, e também entendeu que o desenvolvimento de um mercado mundial levaria necessariamente à “dissolução da comunidade” e de quaisquer relações sociais independentes da “tendência universalizante do capital”. 

Mas, diante deste mundo que Marx não chegou a conhecer, com o capitalismo mostrando sinais de enfim estar em sua fase terminal, o que dizem os pensadores contemporâneos?

Frente a frente com um planeta à beira de um colapso ambiental, e sempre a um passo de eventos nucleares ou da próxima grande recessão econômica, muito se fala sobre a chegada iminente de um pós-capitalismo, que nada mais é do que uma etapa de transição para um novo sistema que não depende do crescimento ilimitado e da exploração do trabalho humano. Em outras palavras, trata-se de uma fase em que o que hoje conhecemos como capitalismo ou é superado ou é transformado significativamente. Embora não haja ainda uma definição de como seria exatamente esse capítulo posterior ao capitalismo, no geral se espera que ele se caracterize por uma maior igualdade econômica, social e política, bem como uma maior ênfase na cooperação e colaboração entre as pessoas, indo na contramão da competição intrínseca atual. Economias alternativas com frequência são associadas a esse possível novo momento: economia colaborativa, compartilhada, circular e solidária, todas elas baseadas na ideia de que é viável construir um sistema ideal que valorize a cooperação e o bem-estar coletivo ao invés do lucro individual.

Nos últimos anos, devido a diversos fatores — entre elas: sucessivas crises dos mercados financeiros, aumento progressivo da desigualdade social, mudanças tecnológicas cada vez mais meteóricas, preocupações ambientais batendo à nossa porta —, a discussão sobre o pós-capitalismo tem se colocado sob os holofotes. É, portanto, a partir do final do século XX e início do século XXI que o debate ganha visibilidade e relevância, especialmente com o aumento da globalização e a traumática crise de 2008. Desde então, uma série de pensadores, ativistas e movimentos sociais têm proposto diferentes estratégias e abordagens para a construção de um sistema pós-capitalista, algo que possa superar as limitações e injustiças do atual modelo econômico. O que se pergunta é: quais são as melhores formas de alcançar um sistema pós-capitalista? O debate não só segue vivo e com saúde, mas a cada dia que passa ele é mais importante no contexto das crises atuais que a humanidade enfrenta. O britânico Paul Mason e o estadunidense Jeremy Rifkin são bons exemplos de vozes que teorizam sobre as possibilidades de amanhãs menos predatórios e ensimesmados, um futuro cujas fichas não estejam todas depositadas no mundo virtual (ainda que dele se beneficie).

Paul Mason & Jeremy Rifkin

“⁠A raiz do problema é, simplesmente, a globalização e a resultante monopolização da riqueza por uma elite global.”

— Paul Mason

Mason, jornalista e escritor, é conhecido por seus trabalhos acadêmicos nos campos da economia e da política, mas sobretudo pelo livro Pós-Capitalismo: Um Guia para o Nosso Futuro. Publicado em 2015, o livro comenta sobre o colapso do capitalismo e argumenta que estamos caminhando a passos largos em direção a uma nova era, uma página ainda em branco na qual as tecnologias digitais e a economia colaborativa podem abrir caminho para um sistema pós-capitalista baseado na produção em rede, na propriedade comum e na colaboração livre. Segundo Mason, o capitalismo tem mostrado sinais de exaustão nos vincos de sua face e já não é mais capaz de sustentar um modelo de crescimento baseado no consumo em massa e na exploração de recursos naturais. Ele aponta que a revolução digital e a emergência de uma nova geração de empresas colaborativas — como, vá lá, a Wikipédia e o Linux — estão criando as condições para uma economia que valoriza a colaboração, a inovação e a propriedade comum.

“A era capitalista está passando. Não rapidamente — mas inevitavelmente.”

— Jeremy Rifkin

O economista e ativista Rifkin, que faz coro a Mason, vem falando sobre a transição para uma economia pós-capitalista há décadas. Em seu livro A Terceira Revolução Industrial, publicado em 2011, argumenta que estamos no início de uma era econômica em que a internet das coisas, a energia renovável e a produção descentralizada estão criando as bases para, como diz Mason, um modelo de economia distribuída e colaborativa, baseado na produção em rede, na energia renovável e na economia do compartilhamento. Segundo ele, a tecnologia está criando as condições para uma mudança fundamental na forma como produzimos e consumimos bens e serviços, e que a transição para uma economia pós-capitalista é inevitável. 

Tanto Paul Mason quanto Jeremy Rifkin defendem a ideia de que uma inversão de mesa, um legítimo plot twist, está tomando forma há algum tempo: a tecnologia, hoje um tanto danosa, será fundamental para uma nova era. Essa visão de futuro pós-capitalista tem sido influente em diversos setores da sociedade, não só na política e no ativismo social, mas em meios acadêmicos também.

Será possível a era digital nos levar a um mundo menos digital? 

Embora a tecnologia e a digitalização tenham se tornado praticamente onipresentes em nossas vidas, há também um movimento crescente em direção a um estilo de vida mais simples, consciente e sustentável, um caminho praticamente inverso que pode incluir uma redução do uso de dispositivos eletrônicos e uma volta às práticas tradicionais. Como indícios desse movimento, observa-se o aumento da demanda por produtos e serviços locais e artesanais, um resgate da popularidade de atividades ao ar livre — de caminhadas a acampamentos —, e a valorização de práticas como a meditação e a desconexão digital. Essas e tantas outras escolhas apresentam alternativas simples e mais acessíveis do que a alta tecnologia. O conjunto constitui uma confrontação bem munida contra a ideia de que a conectividade é um jeito incontornável de se viver com felicidade e ser relevante. 

É bem verdade: é preciso colocar a cabeça para trabalhar para imaginar qualquer mundo sem o digital. Se nos deixarmos levar, toda e qualquer previsão do futuro é uma previsão da onde a internet e a tecnologia nos levará (e com nosso absoluto consenso). Qualquer hipótese que exclua o digital da operação parece fadada a virar motivo de zombaria, uma espécie de negacionismo mal visto. É como diz Jonathan Crary, outro pensador que tem o pós-capitalismo como pauta constante: “O complexo internético opera como uma proclamação sem fim de sua própria imprescindibilidade e da insignificância de toda forma de vida que continue avessa à assimilação de seus protocolos.” A cada momento, a cada scrollada, essa ideia fica mais incutida na nossa mente. É feito uma verdade universal, um não-questionamento incentivado pela própria realidade inquestionável. Com tanto acontecendo, talvez não haja tempo para que se inflame qualquer interrogação. Se uma onda violenta vem em nossa direção, por que contestá-la? Melhor fazer malabares em cima da prancha para tentar surfar. No meio do caos, esquecemos da possibilidade desse mar um dia se acalmar, como fazia há algum tempo.

A noção de que a internet funcionaria de forma independente das operações catastróficas do capitalismo global é só mais uma das ilusões estupefacientes do atual momento. Estão estruturalmente entrelaçadas, e a dissolução do capitalismo, quando vier, será o fim de um mundo pautado pelo mercado e moldado pela rede de tecnologias do presente.”

— Jonathan Crary

Jonathan Crary e o cansaço como impedimento do progresso

Jonathan Crary é um crítico cultural e historiador da arte que se insere na discussão sobre o pós-capitalismo ao explorar as implicações das mudanças tecnológicas e econômicas para a vida cotidiana e a subjetividade humana. Em seu livro 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono, de 2013, argumenta que a nossa cultura atual, em que a economia global funciona 24 horas por dia e 7 dias por semana, tem implicações profundas para a nossa percepção do tempo, do trabalho e do descanso. A economia 24/7 “twenty four seven”  —, juntamente com as tecnologias digitais e de comunicação, estão mudando a forma como as pessoas experimentam o tempo, e que isso tem consequências na nossa capacidade de imaginar alternativas ao capitalismo. A cultura de agora, diz ele, está nos privando do tempo e do espaço necessários para refletir e imaginar novas possibilidades de organização social e econômica.

O livro Terra arrasada: Além da era digital rumo a um mundo pós-capitalista, lançado agora em 2023, questiona algumas “verdades” sobre o mundo digital, conceitos que, de tão embrenhados no nosso dia a dia, não chegam a ser postos à prova. 

As ferramentas e os serviços digitais utilizados por indivíduos do mundo inteiro estão subordinados ao poder das corporações transnacionais, das agências de inteligência, do crime organizado, de uma elite de sociopatas bilionários. Para a maioria da população na Terra à qual foi imposto, o complexo internético é o motor implacável do vício, da solidão, das falsas esperanças, da crueldade, da psicose, do endividamento, da vida desperdiçada, da corrosão da memória e da desintegração social.

Se o capitalismo tem como ordem do dia nos levar à exaustão dos recursos naturais, à desigualdade econômica e à exclusão social, então esses problemas só podem ser resolvidos por meio de uma transformação fundamental do sistema econômico e social. De acordo com Crary, isso só pode ser alcançado por meio de uma mudança radical nas relações de propriedade, no controle dos recursos produtivos e na distribuição da riqueza. E importante: é necessário que a briga seja levada para fora do âmbito das redes sociais.

O caráter constante dos tipos de luta e solidariedade exigidos por um movimento antiguerra ou anti-imperialista é inconciliável com as temporalidades e formas superficiais de atenção que acompanham a proliferação das redes sociais.

Em Terra arrasada, Crary explora como as tecnologias digitais estão, hoje, transformando a economia e a sociedade para pior, mas argumenta que elas têm o potencial de ser uma ferramenta para a criação de uma sociedade pós-capitalista, desde que sejam utilizadas de maneira estratégica e consciente. Ao examinar como as tecnologias digitais estão afetando a subjetividade humana, a privacidade e a autonomia individual, argumenta que a criação de uma sociedade pós-capitalista deve incluir a proteção desses valores. Num mundo em que as tecnologias de vigilância são cada vez mais sofisticadas, a nossa capacidade de resistir e lutar por alternativas está comprometida.

É possível que o futuro dos sistemas econômicos seja plural e complexo, com diferentes formas de organização coexistindo em diferentes contextos e escalas. O que quer que venha em seguida, independentemente de quando ou como isso acontecer, também pode envolver mudanças significativas nas estruturas de poder e nas relações de propriedade, incluindo a democratização da economia e a transferência do controle sobre os recursos produtivos das mãos de uma pequena elite para a sociedade como um todo. 

Sugerir que a internet é o local em que povos indígenas, imigrantes apátridas, desempregados, depauperados e pessoas encarceradas podem contestar sua própria marginalização e descartabilidade é não só errado como malevolamente irresponsável.

Talvez o pós-capitalismo, ou qualquer nome que se dê ao que está inevitavelmente por vir, não seja necessariamente um estado final ou um destino fixo, mas sim um processo contínuo de transformação social e econômica que pode levar a diferentes formas de organização social e econômica em diferentes momentos e lugares. O importante é que as pessoas sejam incentivadas a participar ativamente desses debates e a imaginar novas possibilidades para o futuro. Acima de tudo, a exemplo do que defende Jonathan Crary, é fundamental que se reduza o ritmo. Só assim, distante do frenesi viciante, que transformaremos, agora para melhor, a nossa escala de atenção e percepção de nós mesmos enquanto espécie: frear para que se enxergue a imagem turva do espelho. 

Em 1994, no sul da França, um grande acontecimento: foi descoberta a caverna de Chauvet, com imagens rupestres milenares. Crary extrai delas, e do timing de seu descobrimento, os melhores auspícios: para ele, elas “afirmam uma humanidade que somente pode florescer se aceitar sua inseparabilidade do mundo da vida animal e não humano”. 

Trocando em miúdos, não basta trocar a velocidade da máquina pela velocidade do humano, é preciso ir além. Ou, então, ir de encontro àquilo que está perdido mas que já se tem.