
De Truman Capote a Gay Talese: antídotos contra a informação instantânea
Em meio ao cansaço e à superficialidade do mundo digital, o jornalismo literário ressurge com força.
Depois que Truman Capote lançou o clássico A Sangue Frio, em 1966, o mundo do jornalismo nunca mais foi o mesmo. A obra, que reconstrói com minúcia o brutal assassinato da família Clutter, no Kansas, marcou o nascimento oficial do “jornalismo literário”, definido como uma fusão entre reportagem e narrativa ficcional, com personagens reais, cenários reconstruídos e diálogos reconstituídos.
Por sua vez, Gay Talese, outro expoente do gênero, se consagraria com perfis e textos que esbanjavam requinte, como o lendário Frank Sinatra Has a Cold, publicado pela Esquire, também em 1966. Nele, Talese monta a figura do astro sem nunca tê-lo entrevistado. Ao questionarem os limites formais do texto jornalístico, ambos romperam com o engessamento até então visto como necessário ao ofício. Nascia ali uma escola que influenciaria gerações de repórteres ao redor do mundo, inclusive no Brasil.


Em tempos de redes sociais, timelines aceleradas e consumo compulsivo de conteúdos efêmeros, é difícil não nos perguntarmos se ainda há espaço para esse tipo de jornalismo.
Se por um lado o jornalismo atual é guiado por métricas de cliques, engajamento e velocidade, por outro, vive-se também um movimento de cansaço do consumo rápido, uma estafa totalmente justificada. A avalanche de conteúdos breves gerou um apetite por histórias mais densas, bem contadas, que escapam da lógica do imediatismo. É nesse vão que o jornalismo narrativo vem encontrando novos caminhos, não mais nas bancas de jornais, mas nos fones de ouvido e até nas caixas de e-mail dos leitores.
Chico Felitti e o seu podcast A Mulher da Casa Abandonada (2022), da Folha de S.Paulo, talvez seja o exemplo nacional mais emblemático dessa reinvenção. Em sete episódios, Felitti reconstrói a história real de uma mulher misteriosa que vive em uma mansão decadente no bairro de Higienópolis, em São Paulo. A narrativa se desdobra em uma investigação profunda, revelando que a protagonista era foragida do FBI por crimes de escravização doméstica. O podcast virou fenômeno, alcançando milhões de ouvintes e gerando debates éticos, jurídicos e jornalísticos. O jornalista não inventou o estilo, mas o adaptou, tomando como inspiração os podcasts internacionais, e trouxe-o para a esfera nacional, gerando repercussões inéditas.
“Eu gosto muito de jornalismo literário, sempre gostei”, disse Felitti em entrevista à IJNet. “Nunca estudei roteiro de podcast, nunca estudei escrita de podcast, como eu nunca estudei escrita de não-ficção. Eu fui fazer isso depois de ter trabalhado em jornal diário a vida inteira, o que é um pouco diferente. A seriedade precisa ser a mesma, as ferramentas para investigar são as mesmas, mas o texto precisa ser um pouco diferente. Era o tipo de coisa que eu já estava em banho maria a tanto tempo, que saiu.” Guardadas às devidas proporções, seu trabalho se insere numa tradição que remonta a Capote e Talese, mas adaptada ao formato contemporâneo de storytelling em áudio, com edição sonora cuidadosa e ritmo de suspense.
Antes da virada tecnológica que redesenhou o fazer jornalístico, nomes como Eliane Brum e Caco Barcellos já mantinham viva a chama do jornalismo narrativo no Brasil. Brum, que já escreveu para diversos veículos, além de autora de livros como A Menina Quebrada, segue praticando um jornalismo que busca o humano por trás das estatísticas, com longos relatos que exigem do leitor tempo e entrega. “Meu pacto com o leitor é de só tomar o seu tempo se acreditar que posso iluminar alguns cantos escuros de um acontecimento ou trazer para a luz o que chamo de ‘desacontecimentos’ e não está no noticiário. Essa sempre foi a minha busca. Se consigo ou não, só os leitores podem dizer”, disse em entrevista.
Caco Barcellos, embora tenha migrado para a televisão, nunca abandonou a lógica do jornalismo investigativo-narrativo. Suas reportagens no Profissão Repórter frequentemente mantêm o fio condutor de personagens reais, tramas sociais e construção de contexto — elementos essenciais ao estilo que praticava em Rota 66 (1992), seu livro-investigação sobre execuções extrajudiciais cometidas pela polícia de São Paulo.
Mas o jornalismo narrativo atual não vive mais apenas nas páginas impressas, ele se pulveriza em formatos digitais que resgatam a ideia de fidelização com o leitor/ouvinte. Newsletters como a da jornalista Juliana Diógenes (Assunto Sério) ou da própria Eliane Brum têm conquistado leitores interessados em análises aprofundadas, longe do ruído das redes sociais. No campo dos podcasts, além de Felitti, destaca-se a jornalista Paula Scarpin, criadora da Rádio Novelo, produtora responsável por sucessos como Praia dos Ossos (2020) e Retrato Narrado (2019). Ambas as produções se valeram de longos períodos de apuração, arquivos, entrevistas e roteiros complexos, uma prática que remete à paciência e ao rigor investigativo dos grandes nomes do passado.
Apesar dos bons ventos, o jornalismo narrativo ainda esbarra em um obstáculo estrutural importante: ele demanda tempo, fôlego e investimento, elementos escassos em um mercado marcado por cortes e crises. O jornalista e professor da ECA-USP, Eugênio Bucci, chama atenção para essa fragilidade ao refletir sobre o papel atual da imprensa:
“A imprensa passou por turbulências vindas da mudança de padrão tecnológico, da alteração de receitas publicitárias, porque com a transição tecnológica, sites e plataformas digitais passaram a sugar a receita que ia para os jornais e organizações jornalistas. E [a impresa] entrou numa crise econômica e, por fim, numa crise de pensamento, parou de se ver como um organismo pensante, as redações deixaram de ser formuladoras e passaram a ser apenas fechadoras. O que fazer agora? A imprensa precisa reencontrar seus vínculos com a sociedade democrática, precisa investigar o poder, precisa se apoiar em esteios mais permanentes, como, por exemplo, as emissoras públicas, que são um pilar das democracias no Reino Unido, na Alemanha, na Suíça e em outros países, e com isso recosturar, reaproximar a sua vitalidade da vitalidade da democracia.”
Sua análise aponta para um cenário em que produzir perfis aprofundados, coberturas extensas e narrativas imersivas pode parecer um luxo. Mas, paradoxalmente, é nesse tipo de conteúdo que reside uma das forças mais transformadoras do jornalismo, justamente por ser o oposto da produção apressada e descartável que domina as timelines.
Há esperança. A Agência Pública, primeira agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos do Brasil, fundada em 2011, opera no modelo de financiamento por fundações e doações individuais, publicando reportagens de profundidade com apuração minuciosa. O modelo independente é um dos caminhos possíveis para manter vivo o jornalismo narrativo.
O jornalismo literário, no fundo, sempre foi um híbrido: exige apuração rigorosa, ética e método jornalístico, mas também sensibilidade narrativa, capacidade de observação e domínio da linguagem. Quando bem feito, ele não apenas informa, mas permite compreender. Se Capote e Talese tivessem nascido em 1990, talvez não estivessem escrevendo para a Esquire ou a The New Yorker. Talvez tivessem um canal no YouTube, um podcast, uma newsletter com milhares de assinantes. Mas o compromisso com a história bem contada, com o detalhe que faz a diferença, com a ética da escuta — isso seguiria igual.
Existe terreno para a mentalidade de Capote e Talese continuarem se fazendo valer. Mas, para tanto, é necessário coragem, paciência e, acima de tudo, leitores e ouvintes dispostos a fazer o caminho inverso da pressa.
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