#36O MasculinoCulturaLiteratura

Redonda

por Bruno Cosentino

Segundo alguns mitos de origem, a criação é antecedida por uma forma circular, que representa a totalidade primordial. Somente quando o mundo é criado, se dá então o seccionamento – a diferenciação entre bem e mal, claro e escuro, céu e terra, masculino e feminino etc. Antes, portanto, está tudo contido nessa unidade redonda. O ovo é, por excelência, o símbolo dessas cosmogonias, mas não somente ele.  

No livro Os nagô e a morte, Juana Elbein dos Santos nos conta o mito do nascimento de Exú. Exú é considerado o primeiro nascido, da mãe e do pai primordiais, simbolizados pelas metades inferior e superior de uma cabaça, que recebe o nome de Igbá-odù. Os dois poderes – masculino e feminino – se comunicam e encontram equilíbrio no filho, associado, por isso, ao andrógino. O mito do andrógino tornou-se conhecido no ocidente através do discurso de Aristófanes, em O banquete1, de Platão. Ele nos diz que antes do homem e da mulher existia o andrógino, ser de duas cabeças, quatro braços, quatro pernas, que, devido à sua forma circular, se locomovia velozmente dando cambalhotas. Por isso, os andróginos eram muito fortes e pretenderam desafiar os deuses.

No amor, dizendo acto de o sagrar,
apertado o corpo do recém-nascido
no ovo solar, há ainda um outro
corpo incluído,
mas um corpo aquém
de ser são ou podre,
um repuxo, um magma,
substância solta,
com pulmões.

Luiza Neto Jorge, “O corpo insurrecto”

Andrógino, de Leonardo da Vinci

Ao saber da afronta, e com o intuito de enfraquecê-los, Zeus cortou-os ao meio – “como os que cortam ovos com cabelo”. O procedimento é rico em detalhes: “torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o que agora se chama o ventre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia uma só abertura e ligava-a firmemente no meio do ventre, que é o que chamam umbigo. As outras pregas, ele se pôs a polir, e a articular os peitos, com um instrumento semelhante ao dos sapateiros quando estão polindo na forma as pregas dos sapatos; umas poucas ele deixou, as que estão à volta do próprio ventre e do umbigo, para lembrança da antiga condição” [grifo meu].

(Esse trecho me veio à cabeça quando, certa vez, trocando a fralda do meu filho, vi aquela cicatriz que começava no ânus, percorria o saco escrotal e terminava na pele que envolve a glande do pênis. Fiquei admirado, pois as tais pregas não polidas, assim deixadas por Zeus “para lembrança da [nossa] antiga condição [de andrógino]”, estavam ali, inscritas no corpo dele – eram a evidência irrefutável do antepassado ancestral. Pensei: “então, de fato, fomos um ser único e redondo, separados posteriormente em homem e mulher!”. É claro que o que se passa é o contrário: foi a partir da observação dessa marca de nascença que homens e mulheres trazem no corpo desde o nascimento que a história foi inventada para explicar o inexplicável: a criação. Mas a cicatriz do meu filho, que eu podia ver e cujo relevo podia sentir com os dedos, era por demais forte para me fazer acreditar no contrário – e aí está a pregnância encantada do mito na realidade concreta das coisas e do mundo.)  

Em manobra posterior, Zeus muda o sexo dos andróginos “para a frente – pois até então o tinham para fora, e geravam e reproduziam não um no outro, mas na terra, como as cigarras.” Terminado o expediente e separadas as criaturas em homens e mulheres, as partes passaram a buscar para sempre a metade perdida. Essa é a moral da história. Como consequência disso, nutrimos algumas ilusões de retorno a esse um. A primeira se dá pelo sexo – o encaixe do pênis, que se projeta para fora, no buraco da vagina, seu receptáculo, recompõe a unidade originária –, nos corpos unidos de duas cabeças, quatro pernas e quatro braços, e através da despersonalização do gozo. Mas se dá também pela reprodução. E aqui, Platão encontra Exú. Filhos e filhas serão eternos portadores das essências masculina e feminina de pai e mãe e, portanto, necessariamente ligados à ancestralidade andrógina. 

(Ainda na barriga redonda da mãe, até a décima segunda semana de gestação, não há determinação dos órgãos sexuais no embrião, cujo desenvolvimento, a partir da mesma estrutura, se dará dali em diante, a depender da produção ou não de hormônios, e resultará no clitóris das meninas e na glande dos meninos, seu análogo. Os bebês, quando nascem, também possuem aparência andrógina — difícil dizer o sexo de um recém-nascido sem os sinais da cultura que o distinguem: brincos, cabelo, lacinhos, roupas, brinquedos etc.)

Assim, o feminino e o masculino se atraem – não se trata de gêneros, sequer de homem e de mulher, mas de energias contrárias postas em tensão em todas as pessoas, independentemente de orientação sexual ou de gênero – como desejo inconsciente de retorno à forma primeira. Impulso que liga os fios do início e do fim, como a descrever um círculo de proteção, uma mandala, ou a posição fetal em que aguardamos o nascimento dentro da barriga da mãe e na qual quedamos desamparados na hora fria da morte – quando, enfim, seremos absorvidos pela terra do planeta redondo. 

1 Todas as citações deste texto foram retiradas da edição bilíngue de O banquete, com tradução de José Cavalcante de Souza, pela Editora 34, de 2016.