Arte de Alvaro Seixas, capa da Amarello Erótica.
#48EróticaLiteratura

Heroína da própria história: Dandara Suburbana e o prazer em primeira pessoa

Entre os murmúrios historicamente abafados das narrativas africanas, Carolina Rocha desafia os fantasmas do silêncio como uma lenda, ancestral e contemporânea a um só tempo. Seu pseudônimo, alter ego, nome artístico, alcunha de heroína — ou como preferir chamar — é nada mais nada menos que Dandara Suburbana. Seus superpoderes? A lista é longa: mulher preta, imersa na espiritualidade de Xangô, bissexual, escritora, ativista e historiadora. Mas o que ela própria acredita que a define, “melhor do que qualquer coisa”, é o fato de ser uma mulher de terreiro. “Todo o meu trabalho gira em torno da minha relação com a ancestralidade”, revela, “com todos os ensinamentos que a literatura e a vivência em uma Comunidade Tradicional de Terreiro me dão.”

É claro que, com poderes assim, periféricos, plurais e transgressores à ordem existente, há muitos inimigos à espreita. O elitismo, o racismo, a heteronormatividade, o capitalismo predatório, tudo que infelizmente ainda predomina nas entranhas da sociedade. Sua jornada é marcada por desafios e superações, mas ela não se importa; prefere continuar sendo um testemunho vivo da força e da resiliência da mulher negra brasileira.

Nascida e criada na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, Dandara cresceu em uma família suburbana. Filha de Eugenia e Fumaça, aprendeu desde cedo o valor do trabalho duro e da determinação. “Minha mãe dizia que, por ser uma mulher preta e pobre, eu precisava ser a melhor em tudo que fazia para driblar de alguma maneira as violências da sociedade em que vivemos”, reflete ela sobre o fato de ser exacerbadamente “certinha” quando criança. Já nessa época, antes de assumir um papel maior na própria lenda contempoancestral, os vilões do conservadorismo estrutural já se faziam presentes. Enquanto outras crianças pareciam caminhar ao seu redor com mais calma, sentindo confortavelmente os pés no chão, ela sentia que, para subverter essa mesma pavimentação incontestada, precisava voar.

Desde os oito anos de idade, “juntava as bonecas no sofá de casa e dava ‘aulas’ para elas”. Não são muitas crianças que fazem isso, mas a jovem Dandara talvez não fosse como a maioria. E, se pensarmos em sua trajetória acadêmica, era um prenúncio natural do que viria pela frente. Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense, tornou-se doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Sua pesquisa aborda questões essenciais, como as relações étnico-raciais no Brasil, estudos de gênero, religiosidade e violência urbana, entre outros temas para lá de relevantes.

Com certo pesar, porém, admite que, durante muito tempo, sucumbiu à pressão de se adequar aos arredores esbranquiçados da vida acadêmica, encurralando-se em corredores labirínticos de normas elitistas que forçavam sobre ela certa autorrestrição: “Só depois de adulta fui entender que a violência do racismo fez com que eu me encolhesse para caber nos espaços que considerava importante.” Nessa contenda, porém, a autoconsciência também brigava por ar e, com um pé na ancestralidade e outro na contemporaneidade, a verdadeira Carolina Rocha empurrou as paredes e encontrou as brechas que precisava para fugir — e a partir daí tomou a narrativa para si, e o encolhimento virou agigantamento.

Deixando de lado a escrita formal e em terceira pessoa, fez emergir uma voz que se ouve em alto e bom som. Afinal, por que escrever? O que faz do ato um dedo em riste tão potente? A resposta é tão categórica quanto tocante: “É revolucionário escrever ao invés de servir.” Além de sua atuação acadêmica, Dandara é uma escritora com obras publicadas em diversas coletâneas e projetos. Seu livro O Sabá do sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas no Piauí colonial, por exemplo, é uma contribuição significativa para o entendimento da história colonial brasileira. E o erotismo que perpassa e por vezes define sua literatura também encontra justificativas fortes: “Amor e sexo, para nós, não obedecem a uma lógica individualista. São, antes de tudo, expressões políticas.” Ou seja, ser Dandara Suburbana, e não uma pessoa rendida aos ditames elitistas da Academia, é uma escolha política, porque “a literatura é um campo estratégico na luta contra as opressões que vivemos, sejam elas de raça, classe, gênero ou sexualidade, pois elabora um imaginário social”.

Ao tomar a narrativa para si e optar por mergulhar no erótico, Dandara valoriza o prazer e a autonomia dos corpos negros; desafia os estereótipos e as representações objetificadas que historicamente os têm marcado; e reivindica o prazer como um espaço de poder e afirmação da identidade. É como ela mesma diz: “Quero falar do meu prazer em primeira pessoa, porque ele não existe só na relação com as outras pessoas, mas também na comigo mesma”.

Seu engajamento social se estende para além dos escritos. Ela é idealizadora da Ataré Palavra Terapia, uma comunidade dedicada à escrita criativa e terapêutica, especialmente voltada para a literatura negra feminina. A ideia geral do Ataré é tirar “a escrita do lugar sacralizado que ocupa neste país, que só reconhece como intelectualidade uma elite branca”. Essas oficinas têm sido um espaço de empoderamento e expressão para centenas de pessoas, incentivando-as a contar suas narrativas e a compreender o poder que reside na escolha pela primeira pessoa. É um lugar no qual a oralidade, a escrita e o corpo são faces da mesma encruzilhada. Em momentos difíceis, como nas mortes do pai e da mãe, que ocorreram consecutivamente em um curto intervalo, os momentos proporcionados pelos encontros têm sido um pilar na força de Dandara, pois, “ao longo desses anos, tudo foi se ampliando” e ela foi “compreendendo ainda mais a importância do poder da palavra para a transformação que queremos ver no mundo”.

Se as palavras fazem Dandara, Dandara também faz as palavras — e essa relação permite que ela transcenda as páginas de um livro e as salas de aula para não ser uma mulher idealizada, mas sim uma “mulher que beijamos na boca com vontade, que benze as feridas da sua comunidade, que falha e chora, que celebra pequenas vitórias, que escreve a sua própria história”.

Cada um de seus superpoderes está na batalha por algo maior. E, na guerra contra a vilania de uma sociedade que nega ou faz pouco dos prazeres que não considera dignos, nada como contar consigo mesma e com as vozes que vieram antes.

Para que Dandara e Carol escutem e se sintam reverberadas, leia a seguinte mensagem em voz alta: o prazer, em toda a sua complexidade, há de vencer.

ORGASMO CURA
Seleção poética de Dandara Suburbana

Dieta

Amor essa semana estou de dieta
Nada além do seu gosto me interessa
Me alimento do seu espesso gozo
Nada de coitos afoitos
Não admito desperdícios
Quero suor, apetites vorazes e vícios

Eu vou me lambuzar de você
Sem parar pra respirar
Sem olhadinha no celular
Sem despertador pra acabar
Eu vou fazer seu corpo, no meu corpo, de lar
Te proponho rever todo o alfabeto
Letra por letra vamos soletrar sobre prazer e afeto

Eu esperei demais pelo instante
De poder amar gemendo só em vogais
Tesão sem miséria,
Mas o papo aqui é manter a cuca sã
Enquanto dá comida à matéria!
Consoante é ter responsabilidade
Senão, nem me interessa…

Vem, desliza os lábios nos meus seios
Sem hesitar, me enche de beijos
Eu pego na sua mão
E desço até a minha calcinha
Pinceladas molhadas de ousadia
Que trago na boca,
E vou fazendo poesia
Enquanto saboreio os seus dedos…

Psiu, não conta pra ninguém esse segredo:
Tem gente preta insistindo em gozar
Ao invés de sentir medo!

Orgasmo que cura

Nego aguenta, hoje é sexta e eu preciso dizer:
Quero uma dose cavalar de você!
Exagero de dedos, dentes e saliva.
Não busco prazer no singular
Meus ancestrais cultuam a fartura
Tenho sede e grandes expectativas
Apetites vorazes, dignos de uma rainha.
Pra tocar meu corpo é preciso saber
Colher, quinar, temperar e mexer
Quando meu mel estiver quente
Escorrendo na ponta da sua língua
É o momento de consumar a magia
Estarei aberta, sedenta, nua e sua
Pode entrar e se servir
Mas não vá pensando que sairá ileso
Eu sou um continente inteiro
Muito maior do que seus olhos podem ver…
Na ânsia por me preencher
São meus grandes lábios que devoram você!
E que vantagem a sua,
Minhas águas são profundas
Nutritiva seiva bruta
Puro amálgama,
De um orgasmo que cura!

[sem título]

Você é um leitor voraz
que em poucas horas
me devora
costumo me abrir inteira
toda vez que me folheia
até lambuzar os dedos
com letra, papel e tinta
te sinto entrando pela capa
até atingir a última página
e no ápice
da ponta do seu lápis
escorre a poesia
que me invade
gota a gota
eu vou melando toda
já não é mais ficção
no meu corpo tenho
todos os vestígios
das suas mãos
você me acompanha
como um livro bom
e mal posso esperar
pra escrever
novas palavras contigo
outra vez.

– para o amor que vai chegar



[sem título]

Estou procurando um meio termo
Para me expressar
Eu quero te comer
Mas não quero ser vulgar
Peço desculpas pela franqueza
Minha poesia tem menos enfeite
Do que ousadia
Estou mais preocupada com o conteúdo
Do que com as rimas
Eu te vejo dançando na pista
Vou molhando o verbo
Que escorre até a calcinha
Me dá uma chance?
Não te prometo nada novo
Mas garanto ser bem gostoso
Meu sexo bruto
Com cafuné fofo
Não se espante
Por trás dessa cara de menina
Tem muita água e muito fogo
Para de se fazer de bobo
Aqui a loteria é certa
Uma pretona dessas
É sua sorte no amor e no jogo
Estou valendo mais que ouro
Pedra rara, dessas lapidadas
Cheias de brilho e contorno
Deixei de procurar uma forma ideal
Pra me expressar
Eu quero te comer
E estou sem tempo pra esperar!