O padeiro Elias Martins, de 19 anos, foi uma das milhões de pessoas que saíram de casa no último dia 17 de maio para aproveitar um dos eventos mais emblemáticos que São Paulo tem no seu calendário, a Virada Cultural. Durante 24 horas, a cidade, especialmente o centro, fica tomada por uma multidão de gente participando de mais de 900 atrações, de shows tão variados como Racionais MCs e Luiz Caldas a apresentações de stand-up, teatro infantil e música clássica.
Elias e mais três amigos pretendiam virar a madrugada vendo shows. No entanto, em mais um daqueles casos a que infelizmente estamos acostumados, Elias foi morto durante um assalto. Pouco antes do amanhecer, dois ladrões os abordaram na Avenida Rio Branco e levaram seus celulares. Elias, ao acreditar que a arma era de brinquedo, saiu em perseguição aos bandidos, que o atingiram com um tiro no rosto. (Eles foram presos cinco dias depois do crime.)
A comoção que tragédias como essa provoca nos dá a sensação de que estamos na Síria. Muita calma nessa hora. Apesar do medo que sentimos, isso não é verdade. O copo meio cheio de violência nos impede de enxergar com clareza a situação que vivemos. No caso da Virada, pessoas expressam sua revolta declarando que no ano que vem nem vão se arriscar a sair nas ruas. Mas a verdade é que o evento foi um sucesso, apesar da morte de Elias e dos arrastões que ocorreram, e deveria – ao contrário do que pensam alguns – ser cada vez mais valorizado. Não é se trancando em casa que vamos melhorar as coisas.
O ideal mesmo seria fazermos a Virada uma vez por mês. Uma por ano não aproveita todo o potencial de ocupar a cidade com cultura, gente e um bom policiamento (que ainda precisa melhorar, mas não é tão ruim como dizem). Uma mostra disso é que durante a Virada houve menos crimes que num fim de semana típico. Uma Virada por mês faria com que o policiamento fosse cada vez mais eficiente, a sensação de segurança aumentasse e os paulistanos se habituassem cada vez mais a aproveitar seu maltrapilho mas elegante centro, não só na Virada, mas também indo à feirinha da arborizada Praça da República, ao novo café do Theatro Municipal projetado pelos Campana, aos concertos gratuitos na Sala São Paulo aos domingos de manhã.
O centro, aliás, apesar da má fama, é uma das regiões mais seguras da cidade, com poucos crimes violentos. Novamente aqui, nós moradores, de maneira apressada e equivocada, fazemos um julgamento injusto. Por que será? Por que o centro é feio? Tem muito mendigo? Assim como o centro, rotulamos São Paulo como um local muito violento. No entanto, se formos olhar para as taxas de homicídio, índice internacionalmente usado para avaliar o grau de violência de uma cidade, a situação também não é tão grave quanto aparenta.
São Paulo tem uma taxa de 12 assassinatos para cada 100 mil habitantes por ano (essas taxas são sempre calculadas com base em 100 mil pessoas por ano, para facilitar comparações). Isso é muito? Claro que quanto menos melhor. Mas a ONU dá como “aceitável” um número até 10. Aí vão dizer: viu, SP está acima! Sim, é verdade. Mas também é verdade que nos últimos 15 anos melhorou drasticamente, de um pico de 69, em 1999. São Paulo é hoje a capital menos violenta do país, acredite se quiser. O Rio está na faixa de 25, Belo Horizonte e Brasília, 35, Recife, 60, e Maceió, 95!
Outra surpresa aparece quando nos comparamos às cidades dos EUA, país mais rico do mundo, tido por muitos como exemplo de civilidade e provável exílio para quem não suporta mais a violência tupiniquim. A taxa de Miami, onde muitos sonham em ter um apartamento de férias para fugir dessa balbúrdia? 17. Florida não é Estados Unidos, dirão alguns. E Washington, é? Taxa de 18. Chicago? 16. E, apesar de serem casos singulares, nada justifica os índices de Detroit (48) e New Orleans (58). As cidades menos violentas são Los Angeles (8), San Francisco (6) e Nova York, que tem taxa de 4 (após um pico de 22, em 1991). Não é à toa que as eficientes corporações policiais dos filmes sejam dessas três cidades.
Se os homicídios são o pior traço da violência, grande parte deles acontece no entorno do tráfico, entre gangues, longe dos olhos de grande parte de nós. No dia a dia de um cidadão não envolvido com o crime organizado, o maior medo é o de ser morto num assalto, como Elias. Mas a chance disso acontecer é muito baixa: 1 em cada 100 mil moradores por ano tem esse fim trágico. E, apesar de casos recentes, é muito raro isso ocorrer com alguém que não reaja. Se devemos ter um grande medo, é o de morrer no trânsito. Todo ano, a cada 100 mil habitantes, morrem 2 ao volante, 4 dirigindo motocicleta, e 5 andando a pé! Ou seja, a chance de se morrer atropelado é cinco vezes maior do que em um assalto. E estranhamente temos mais medo de andar numa rua escura do que de atravessar fora da faixa.
O que esses números todos nos sugerem? Que devemos ter um pouco menos de preconceito e parar de olhar tudo pelo lado negativo. O Brasil. São Paulo. O centro. A Virada Cultural. Um mendigo. Claro, temos que almejar uma cidade mais segura. Mas em vez de ficar falando mal, se trancar em casa ou fugir para Miami, vamos respirar fundo, ver que a coisa não é tão feia como parece e fazer a nossa parte para que, a cada Virada, os jornais possam destacar mais o cultural e menos o criminal – de preferência com uma Virada por mês.
PS: Este texto foi escrito antes das manifestações na cidade que começaram com foco no aumento da tarifa de transporte e ganharam vulto graças a uma indignação generalizada da população. O título Occupy São Paulo incentiva a ocupar a cidade com cultura, mas também se aplica a ocupar as ruas com protestos por uma cidade e um país melhor – desde que sem violência por parte dos manifestantes ou da polícia.