Trabalho há quinze anos com estrangeiros e tendo a ver o mundo a partir de perspectivas culturais. Também sou da área de política, e sempre senti falta de uma identidade política para nosso povo.
Fiquei extremamente comovida com as manifestações de junho. E mesmo sabendo que não é característica cultural do brasileiro protestar, acreditei que podia estar vendo um sinal de mudança naqueles dias.
Meu argumento aqui será, no entanto, que até agora, não. Num jogo muito bem jogado, os rapazes do futebol reassumiram suas posições de heróis nacionais e nosso pacifismo cultural característico triunfou sobre a violência de um dos piores sistemas políticos do mundo, para o bem e para o mal do Brasil. E as manifestações não deixaram um legado de construção de identidade política nacional, ainda que possam ter dado um gosto de despertar do gigante.
O Brasil viveu 388 anos de escravidão explícita e ainda vive sob regras culturais implícitas dessa mentalidade. Aqui, ou se é senhor, ou se é servo. A dinâmica das relações no Brasil é das mais violentas do mundo, padrão ditadores africanos. A injustiça impera no país que tolera ser a quinta economia e estar entre as maiores desigualdades sociais do mundo, com aproximadamente 90% de suas terras ainda pertencentes a 10% de sua população e com 40% de sua população universitária considerada analfabeta funcional. Aceitamos uma realidade ‘Bélgica-India’ como quem sai às ruas para manifestar e depois tem um deputado preso, inocentado pela Câmara. Mas não vamos entrar em conflito. Violência, aqui, não. Mas e a guerra civil silenciosa que vivemos no dia a dia brasileiro?
E por isso tudo mesmo, caoticamente, como exige a contemporaneidade, o Brasil é miscigenado, místico, flexível, criativo, esperançoso e, pacífico, a ponto de esperar que os políticos e a elite brasileira acertem suas contas com Deus e não com as armas dos manifestantes.
O desafio se apresenta quando a essa aversão ao conflito se soma a falta de educação formal generalizada da população, e logo, a impossibilidade de pensamento crítico. Os vinte centavos eram apenas a ponta de um iceberg de muita, muita injustiça; nem se sabe quanta, pois perdeu-se há muito o fio da meada da história brasileira. Daí tanta gente meio perdida.
Na maioria dos países, desenvolvidos ou não, cabeças rolaram na construção de consciência política. Mas não somos conflitivos e é pouco provável que cabeças rolem por aqui. Vamos fazendo samba, e elaborando tristeza com música. Mas acho que nossa geração é sim aquela que pode deixar como legado a disseminação da idéia de que negro não é feio, de que pobre não é menos, de que desigualdade não é uma diferença que deve ser aceita como realidade naturalizada.
E que parem os carnavais até que isso se resolva. Mas no Brasil, isso é difícil. Por quê? Eu te devolvo a pergunta. O que não te move a lutar pelos seus direitos ao invés de ceder ao sistema brasileiro?
Em geral, o brasileiro vai colocar os valores familiares antes da instituição política, o Estado, e com isso, vamos sendo uma sociedade com características mais relacionais e de clã, do que institucionais ou políticas. Natural então que as regras escritas façam pouco sentido, que as instituições tenham pouca representatividade, que os partidos não queiram dizer muito. O que importa, são as relações, a família, e as prioridades do país vão sendo definidas a partir desses valores.
Estaria confortável com essa ideia não fosse os números mostrarem que algumas famílias têm sido muito, muito mais privilegiadas que outras. E que no Brasil a dinâmica senhor-escravo é tão forte que as pessoas realmente ainda não se entendem como iguais.
As manifestações ainda poderão ter deixado um legado político, se os brasileiros começarem a se entender como uma nação política, de cidadãos iguais, de iguais oportunidades, direitos e deveres. Para tanto, precisarão priorizar, entre seus valores, a construção dessa nação. E isso, ainda não se verifica.
Assim fala Zizek sobre as manifestações mundo afora: “Não se apaixonem por si mesmos. Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de seu valor é o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida normal e cotidiana será modificada. Apaixone-se pelo trabalho duro e paciente – somos o início, não o fim.”
Tudo bem que as manifestações não tenham sido uma tomada de consciência política por parte da maioria dos brasileiros. Mal falamos delas em nosso dia a dia. Mas oxalá elas venham sendo, no caminhar de alguns, muito mais que apenas mais um carnaval.
As manifestações e o desafio da mudança numa cultura avessa ao conflito
por Mariana Barros