#17CulturaSociedade

Reflexo

por Helena Cunha Di Ciero

Sentimos o poder da palavra fé logo ao dizê-la: nossa boca se abre como um túnel entre o universo e nosso corpo, formando ali um espaço íntimo e sagrado. Uma espécie de templo. Tão forte quanto um poema, essa palavra de apenas duas letras se basta – e, por outro lado, nos basta e nos acolhe em momentos difíceis, de dor, dúvida e desespero. Trata-se de uma ferramenta interna que utilizamos em busca de esperança e, sendo assim, ambas caminham de mãos dadas: fé e esperança. São estes os alicerces de um outro estado fundamental para nosso desenvolvimento, o da confiança. No dicionário, fé, confiança e credibilidade são sinônimos.

O psicanalista Bion define a fé como uma resposta primordial e profunda de defesa contra o sentimento de catástrofe. É uma experiência emocional, singular. Porém, não se trata de uma fé religiosa – um conjunto de dogmas e doutrinas que constitui um culto. Para o autor, esta fé se torna apreensível quando se representa no pensamento e por meio deste. Se trata da fé na existência de uma realidade verdadeira e última. A fé que move um cientista a ir em busca de algo, mesmo sem dados objetivos.

A beleza da fé é que não precisa de provas nem de sustentar-se em nada racional para existir. Proveniente do grego fides, fidelidade, a fé é. E pronto. O sentido de fé que coloco aqui é uma convicção íntima, um lugar onde não resta dúvida, no qual confio imensamente e onde deposito meu desamparo. E de lá tiro uma outra palavra fundamental para ir adiante: coragem.

É um caminho alternativo que buscamos quando somos frustrados pela realidade. Nesse sentido, ela nos dá uma noção de resistência e também de existência – pois é uma forma de confrontar o presente. Explico: meus exames dizem que estou doente, meu médico também, mas minha fé é maior. É uma fala comum de pacientes nos hospitais, que mostra uma tentativa de encorajamento frente ao medo provocado por estar diante de algo insuportável, como uma doença grave. Eu existo apesar do que está sendo dito, assim eu enfrento de peito aberto o que está por vir. Podemos pensar então como uma forma de desafio do real e, a partir deste sentimento, uma nova realidade pode vir à tona. Nesse sentido, seria a base para mudança. E tampouco são raros os momentos nos quais a fé altera o estado de saúde de alguém. Não falo em milagres, pouco entendo disso. Falo dos fenômenos nos quais as pessoas, apoiadas em suas crenças, modificam um estado que parecia irreversível ou o toleram com mais resignação e menos inquietude.

Sou de origem católica, mas nem um pouco praticante. Sempre me comoveu, porém, a oração do Credo, que começa com a palavra “creio”. O ato de crer em algo, seja lá o que for, nos tira de um lugar comum e nos transporta para o futuro, esperando que algo ali seja mais belo que o hoje. E, nesse ponto, crer ajuda a movimentar-nos. Crer no sentido de confiar. Confiar que além do horizonte exista um outro lugar é confiar em que o movimento trará evolução, que há algo melhor adiante. Nesse lugar da alma é que procuramos uma transformação, uma forma de sonhar e buscar.

A fé não costuma falhar, já dizia Gilberto Gil, e é aliada de nosso trajeto. É ela que move montanhas, que nos ajuda na difícil caminhada da vida. Na peça Alma Imoral, o texto de Nilton Bonder conta que o que fez com que o mar se abrisse foi Deus, comovido com a força do caminhar dos Judeus que fugiam do Egito. Deus, surpreendido pela fé dos fiéis que marchavam, abre o mar. A fé move, comove, clareia, norteia.

Nos momentos de questionamento e medo, testamos nossos recursos pessoais contando com algo interno. Se a realidade responde bem, acredito que minha fé em mim e na força de meu passo foi capaz de uma possível metamorfose daquilo que estava se passando anteriormente.

Uma questão que fica, para mim, como mãe e psicanalista, é como as crianças de hoje, tão viciadas em tecnologia, constroem em si um espaço para que esse sentimento as adentre de forma verdadeira. Se, antigamente, entrávamos em contato com ele quando a realidade nos testava, hoje, com a realidade virtual cada vez mais tomando posse, onde será que a nova geração busca a coragem? Passando de fase nos games? Confiando na força dos dedos ao apertar um botão, em lugar de confiar na força do passo? E, se a realidade é cada vez mais virtual, como é que me diferencio dela a ponto de resgatar em mim um sentimento que possibilite seu enfrentamento? Seria esse lugar da fé somente interno ou externo? Ou seria algo entre esses dois lugares? Uma ponte entre o céu e a terra? Uma terceira margem do rio, talvez? Eu tenho fé que a realidade impera e ensina a partir da experiência, sempre.