Transformar é a principal ação da arquitetura. Ninguém projeta para tudo ficar como está. Para isso basta não projetar, como estamos cansados de ver.
Temos muito a fazer. Nossas demandas urbanas nos remetem a agendas do século XIX, como saneamento, abastecimento, transporte, ou seja, infraestrutura. São Paulo sempre foi pensada do ponto de vista do escoamento da produção de uma cidade industrial. Nosso desafio agora é desenhar essa infraestrutura articulando-a com a escala local. São oportunidades de reconfiguração de enormes áreas urbanas com novos princípios, adequadas à escala humana. Projetos são precisos.
Se recuarmos um pouco nosso ponto de vista, como fazem os historiadores, é possível perceber os avanços do Brasil desde sua redemocratização. Algumas poucas décadas de continuidade democrática fazem diferença. A transformação é nítida: aumentamos, desde o final da década de 1980, em oito anos a expectativa de vida do brasileiro. O analfabetismo baixou de 20% para 8%. A mortalidade infantil foi reduzida de 58 para 16 por mil habitantes.
No entanto, nossas metrópoles ainda não expressam esses avanços. A imagem da pobreza de um Brasil profundo, concentrada nos rincões esquecidos, hoje migrou para as grandes cidades. A crise urbana que deflagrou as manifestações da sociedade, que ocupou as ruas das cidades brasileiras exigindo o acesso aos benefícios urbanos, “tem a ver com a certeza de que o transporte deveria ser um bem comum (…), assim como a água, a terra, a internet, os códigos, os saberes, a cidade.” A pauta ecológica se mesclou à urgência das transformações urbanas. A sustentabilidade tem que ser abordada na escala infraestrutural, como indica a dramática situação do abastecimento de água potável de São Paulo. Insustentável é a pobreza.
As necessidades de deslocamento, o uso múltiplo das águas, a saúde, a educação não se resolvem sem a ação compartilhada dos três entes federativos: união, estados e municípios. Hoje não temos instituições capazes de gerir o fenômeno das metrópoles. As prefeituras não conseguem administrar nessa escala. É urgente a criação de uma instância metropolitana que articule o território, com verbas compatíveis aos investimentos necessários e com continuidade administrativa de planejamento. Algumas decisões consistem em compromissos impossíveis de serem cumpridos em quatro anos. Não se planeja assim nenhuma grande cidade. Como exemplo, os metrôs de Paris, Cidade do México e Tóquio são providos diretamente por verbas federais.
Ao mesmo tempo, temos conquistas que precisam ser defendidas. Conseguimos formular, nos últimos anos, uma importante equação que conjuga a ocupação periférica informal da cidade com sua geografia. As áreas vazias, lugares possíveis para as famílias mais pobres construírem suas casas na periferia da cidade, estão quase sempre associadas a córregos, onde os riscos de deslizamento e enchentes são frequentes. Surge aí uma oportunidade para enfrentar o problema da habitação precária – vinculando as ações de saneamento, limpeza de rios e nascentes, da montante à jusante, à construção de bairros – da cidade. A questão habitacional não pode mais ser pensada somente como problema quantitativo. São Paulo, situada no “mar de morros”, como cunhou Aziz Ab’ Saber, poderá reencontrar sua geografia que foi solapada pela contaminação e tamponamento de seus rios.
Acredito na desativação do Minhocão, símbolo violento da ditadura militar, que a população ocupou devido à falta de opções de espaços de lazer, mas também porque deseja a vida em espaços públicos. “O desejo coletivo implica imenso prazer em descer à rua, sentir a pulsação multidinária, cruzar a diversidade de vozes e corpos, sexos e tipos e aprender um comum que tem a ver com as redes, com as redes sociais, com a inteligência coletiva”. Tirar os carros do elevado representa a revisão do sistema rodoviarista de transporte individual pelo transporte público de massa já em marcha em São Paulo. É quase um milagre, que, se acontecer, nos permitirá vislumbrar uma reversão da indústria do medo, que constrói paulatinamente a morte da cidade com condomínios fechados, praças gradeadas, muros, guaritas e segregação social.
Acho que parte dos paulistanos já percebeu que exercer a cidadania é uma potente ação política. É nisso que acredito. Boto fé.
* Trechos citados: Peter Pál Pelbart Anota aí: eu sou ninguém – Folha de São Paulo, 19/07/2013.
Arrumando a casa
por Fernando Viégas