Somos feitos de som e fúria, já dizia Shakespeare. O velho Freud adicionaria que, entre fezes e sangue, nascemos. A verdade é que não somos assim tão puros e limpos, como postamos por aí… Embora os filtros virtuais tentem a todo custo disfarçar nossas impurezas, existem desejos inconfessáveis inclusive para nós mesmos: provocam vergonha, são menos civilizados, trazem afetos menos aceitos, mais brutos, e geram culpa, medo, inveja. Embora o desejo nos mova, nem sempre pode ser comunicado às claras.
No entanto, sofremos. É que nossos desejos não partem da nossa reflexão, nem sempre combinam com nossa parte consciente, com os caminhos escolhidos. Eles vêm de outro lugar, menos racional, mais bicho, menos elaborado, indomável e esfomeado, que busca satisfação e prazer. Sua força é violenta, embora a gente viva tentando controlar. A tal bruta flor do querer se prima pela desobediência.
Muitas vezes é preciso reprimir certos sentimentos para manter determinadas escolhas. Mas, por outro lado, o que fortalece o desejo é a sua repressão. Quanto maior for, maior a força na tentativa de realizá-lo. Nossos instintos costumam ser teimosos e persistentes.
Nessa tentativa de domínio, o indivíduo sofre. Conclusão: essa luta constante gera uma tensão muito forte. De um lado, uma exigência de satisfação; de outro, as leis, a moral, as minhas escolhas.
O desejo nasce num lugar poderoso, uma instância psíquica inconsciente que recebe o nome de Id e vive em pé de guerra com um outro lado, responsável pela censura – que recebe o nome de Superego, igualmente forte, responsável por representar internamente a moral, as leis vigentes e os valores familiares.
A civilização funciona como uma tentativa de dominar os desejos, de freá-los. Sejam os sexuais ou os agressivos, a sociedade de alguma forma tenta manter certa ordem, a fim de que a humanidade se preserve de seus próprios instintos. Sabemos que a violência do homem é inerente, tornando-o facilmente presa. Por mais falha que seja a sociedade, o ser humano precisa dela para se organizar relativamente. Essa repressão seria uma tentativa de controle.
Mas existe um lugar onde meu desejo encontra uma possibilidade de existir: os sonhos. Quando sonhamos, estamos com a censura baixa, e certas coisas podem aparecer. Mesmo assim, algumas são censuradas por nós mesmos – juntando uma série de elementos que fazem uma espécie de quebra cabeça simbólico, somando vivências e experiências singulares e individuais. Ou seja, certas coisas aparecem de forma disfarçada. Por isso, dicionário de sonhos não deve ser levado muito a sério. Para cada um, um símbolo que aparece num sonho tem um significado específico, que só pode ser decifrado pelo próprio sujeito sonhador. O sonho é o território da realização do desejo. Mesmo que apareça de maneira torta, ele conta sobre um sentimento que acordado pode ser muito ameaçador.
É como se, dormindo, nosso desejo acordasse no sonho em que apresentasse de uma forma mascarada. Isto é, a fantasia é um dos veículos onde o desejo se apresenta. Lá, tudo pode acontecer. E o ato de sonhar e fantasiar nos possibilita uma tolerância maior da realidade. Não é raro sabermos de pessoas que suportaram uma condição muito difícil utilizando a imaginação. Anne Frank é um exemplo. O filme A vida é bela, outro. Precisamos do sonho para dar voz ao nosso desejo, e assim resgatar a força de lutar para viver.