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O canto do cisne

por André Tassinari

No dia 9 de novembro de 2016, algo impensável até pouco tempo antes aconteceu. Donald Trump foi eleito o 45º presidente dos Estados Unidos. Este 9/11 foi considerado por muitos a maior tragédia americana desde o 11/9, quinze anos antes. Choque. Como uma nação tão “desenvolvida” pôde ter escolhido como seu líder alguém com valores tão ultrapassados? Com uma campanha marcada por extremos de xenofobia, nacionalismo, racismo e misoginia? Para muita gente, a eleição de Trump simboliza que o mundo está andando para trás. Que há uma guinada conservadora vindo com força total. Ou que chegamos ao fundo do poço. Será mesmo? Será que o fenômeno Trump não pode ser visto como o canto do cisne de uma minoria da população americana que não quer se adaptar à realidade do século XXI?

A expressão “o canto do cisne” é uma metáfora que se refere geralmente à última tentativa de fazer algo grandioso por parte de uma pessoa antes de sua morte. Dizia uma antiga lenda que o cisne branco passava a vida emitindo barulhos sem graça e só quando percebia a morte chegando cantava algo digno de nota. Não terá sido a eleição de Trump uma última chance de fazer barulho — antes de morrer — de uma minoria xenófoba, nacionalista, racista e misógina?

Mas, espera um pouco, como assim minoria? Ele não foi eleito pela maioria da população americana? Bem, Trump teve 63 milhões de votos. Hillary teve 66 milhões, o mesmo que Obama em 2012. Mas Trump ganhou nos estados decisivos para o colégio eleitoral americano, por isso foi eleito. Só esse dado já mostra que ele não foi escolhido pela maioria. Mas dá para ir além. Os Estados Unidos têm uma população de 320 milhões de pessoas. Portanto, Trump recebeu apoio de 20% dos americanos. Vinte por cento!

Ou seja, apenas um em cada cinco americanos demonstrou apoio a Trump com seu voto, mas eles tinham muito mais motivação para ir às urnas do que os 90 milhões de eleitores que decidiram ficar em casa. E o que os motivou tanto? Medo. Insegurança. Desespero. Preconceito. Os eleitores de Trump se iludiram com a ideia do “Make America great again”. Xô, muçulmanos! Vade retro, mexicanos! Lugar de preto é na cadeia, não na presidência, e de mulher é na cozinha, não na Casa Branca.

Ó, Senhor, dai de volta a América para os americanos! Infelizmente, para os trumpistas, a humanidade só anda para frente, apesar dos solavancos pelo caminho.

Não, as mulheres não vão voltar para a cozinha. As mulheres não só estão presentes em massa em todas as universidades, mas agora estão exigindo ser tratadas com o respeito devido — homens que adotam o “grab them by the pussy” não passarão. Em 2016, uma mulher teve um total de votos para presidente maior do que qualquer candidato branco na história, só perdendo para Obama em 2008. Outra é presidente do FMI. São mulheres as CEOs de ícones empresariais como HP, IBM, Yahoo. O abuso contra mulheres no meio empresarial é cada vez menos aceito. A empresa-sensação Uber tem colhido sérios danos à sua imagem pelo modo como trata as mulheres nos seus quadros. Exemplos de abuso no Vale do Silício têm levado a uma contínua reflexão e a ações para minimizar esse tipo de violência. Roger Ailes, fundador da Fox News — a TV americana em grande parte responsável por difundir o pensamento retrógrado por trás da eleição de Trump — foi afastado da empresa após um escândalo de assédio sexual com uma apresentadora. Grandes estrelas da TV estão percebendo que não têm licença para abusar só porque são famosos — Bill Cosby está prestes a ser julgado e provavelmente condenado à prisão.

Outra coisa que faz o cisne cantar: o mundo dos negócios não está colaborando para que as coisas importantes da “América” estejam nas mãos de americanos (de bem). Das três maiores empresas americanas, Google e Microsoft são conduzidas por executivos imigrantes da Índia. E a maior delas, a Apple, tem um CEO assumidamente gay. Oh, Lord! Pior do que isso só mesmo outro ícone do capitalismo americano, a Pepsi, que é comandada por uma mulher indiana…

Falando em ícones, dois dos mais famosos prédios de Nova York, Chrysler Building e The Plaza, estão em mãos estrangeiras. O primeiro é de um fundo de Abu Dhabi. O segundo, que foi comprado por Donald Trump em 1988, já foi repassado por ele para investidores árabes e agora é propriedade de um grupo indiano. Shame on you, Trump, por não ter achado um comprador local! E o que dizer de marcas que são a quintessência do American way of life, como Budweiser, Burger King e Heinz? Estão todas nas mãos atrevidas de um grupo comandado por (argh) brasileiros… O mundo está mesmo de cabeça para baixo. Alguém nos acorde desse pesadelo de ter um negro que nem americano é como presidente? In Trump we Trust.

Mas, afinal, quem é que confia(va) no Trump para ser o leader of the free world? Nem os próprios líderes do partido republicano queriam sua candidatura — e esses mesmos políticos com um mínimo de bom-senso já estão fazendo fortes críticas a Trump nesse início de mandato. As principais cidades americanas, como Nova York, Chicago e San Francisco, estão desafiando as ações de Trump contra os imigrantes e reforçando seu papel de cidades-santuário onde os infiéis estão a salvo das garras da Inquisição Federal.

Quem botou fé e assinou embaixo dos planos sectários de Donald Trump foram as pessoas brancas, mais velhas, menos educadas, das cidades pequenas e áreas rurais dos EUA. E elas precisavam aproveitar essa chance. Era agora ou nunca. Já em 2020, com ou sem muro, a proporção de latinos entre os eleitores crescerá, os mais velhos morrerão, um novo contingente de jovens votará pela primeira vez. Trump dificilmente seria eleito com a população americana de 2020, e dificilmente será reeleito — se chegar até lá. O canto do cisne tem prazo de validade. Então é bom tuitar, digo, cantar bem alto, quanto mais ofensivo melhor.

Ao comentar os inúmeros absurdos ditos por Trump durante a campanha, o republicano de carteirinha Clint Eastwood minimizou seu conteúdo, dizendo algo como “quando eu cresci, falar essas coisas não era considerado racista”. Claro, Clint. Quando você cresceu, existiam escolas, banheiros e ônibus SEPARADOS para brancos e negros. O casamento entre pessoas de “raças” diferentes era PROIBIDO por lei. Se você não evoluiu, Clint, azar o seu. Isso não se chama ditadura do politicamente correto, como você pensa; isso se chama progresso. Olhando the big picture, como dizem por aí, nós estamos evoluindo como raça — a raça humana.