A delicada zona de interseção entre infância e arte pode ser entendida como lugar de uma potente experiência onde se aglutinam o jogo, o lúdico, a brincadeira, a dimensão nebulosa da fantasia. O infantil, tomado como uma pulsação que problematiza e dá novas nuances ao humano e à linguagem, se aproxima de propostas artísticas que marcaram o século XX e que continuam incidindo na produção contemporânea.
Desde Van Gogh, passando por Renoir e pelas garatujas de Cy Twombly, até as fotografias de imagens de museus com crianças, que mostram a dimensão da fresta, de um olhar movediço e que não se deixa capturar por obviedades – como nas belíssimas fotografias de Sabine Weiss ou Herb Slodounik – a temática da infância – não como um estado fixo, mas como corpo mutante que leva a uma interrogação constante sobre o visível e o invisível – é constantemente recolocada. Como sujeitos dessas mutações, as crianças transbordam sua própria identidade, criando uma zona de indefinições e de jogos que escapam ao controle adulto e abrem brechas a um espaço próprio.
E essa é a zona para onde arte e infância convergem. Se as vanguardas do século XX desfazem a visão idílica da infância; por outro lado, elas lhe são tributárias. Surrealismo, Dadaísmo e Futurismo, cada uma a seu modo, recuperaram algo da sensibilidade em construção da criança, quer para recriar valores, quer para atingir uma sensibilidade não coagida pela razão, ou, ainda, para acessar regiões de não sentido.
Aqui, podemos evocar as propostas do designer e artista italiano Bruno Munari, que, nos escritos “A arte como ofício”, propõe a abolição da ideia do artista como um deus que cria inutilmente e reinsere a vida junto da arte, a arte junto da vida. Munari revoluciona também a ideia de livro quando o encara como um objeto que precisa encarnar algo de uma escrita. Seus projetos infantis trazem a arte para o centro do exercício de leitura, com materiais, formatos, cortes especiais e acabamentos de sofisticação precisa e agregadora da capacidade infantil de imaginar e se encantar diante do mundo e das coisas.
A artista brasileira Lygia Clark também estabeleceu relações com o imaginário infantil e o jogo, provocando a participação do espectador em trabalhos que incitam a percepção das sensações por meio do contato de objetos com o corpo. Somos chamados ao encontro do infantil, por algo que se desloca e não está fixo nos objetos, que flui entre texturas, pesos e tamanhos distintos, estimulando a interação através de linhas vivas que se transformam em casulos ou por bichos que escapam da concepção tradicional de fazer arte e convidam ao lúdico em mil dobraduras e mundos que podem ser inventados com as mãos. Dos bichos, Lygia Clark passou para materiais mais táteis como isopor, tecidos, sacos com água e penas ou borrachas.
Outra artista que apresenta a ideia de infância como campo de experimentação da linguagem é Rivane Neuenschwander, também brasileira. O projeto “O nome do medo” reflete sua pesquisa e interesse na psicanálise e a tentativa de entender como o medo pode ser traduzido por meio de palavras, desenhos e objetos. Numa série de oficinas, foram criadas capas de vestir, a partir de desenhos feitos por crianças, com a dupla função de abrigar e afugentar o medo. As oficinas iniciaram com uma roda de conversa, acompanhada de uma projeção com referências da arte, como os parangolés de Hélio Oiticica, o manto de Arthur Bispo do Rosário, “O Divisor” de Lygia Pape ou a imagem de Joseph Beuys enfrentando um coiote numa performance de 1974, além de capas usadas em diversas culturas. A proposta da artista encontra ressonância na proposta de Giorgio Agamben, presente no livro “Infância e História”, em que o filósofo italiano pensa a infância não apenas como idade cronológica ou fisiologicamente definida e fechada, mas como uma forma de sensibilidade que atravessa a existência.
Na relação porosa entre infância e arte, as crianças são, então, leitores e participantes críticos que trazem a dimensão do humor e o flerte com o que escapa aos sentidos domesticados. A criança é tomada não como receptáculo dos saberes adultos, mas como agente ativo que propõe o inusitado e a possibilidade da vertigem
Ao abordar a infância, Walter Benjamin trata a criança como uma pessoa inserida na história e na cultura, da qual é também criadora. No ensaio “Brinquedo e Brincadeira”, Benjamin observa o interesse espontâneo que os pequenos têm pelos resíduos dos trabalhos manuais dos adultos, como a costura e a marcenaria.
Com a psicanálise, aconteceu a desnaturalização dos discursos sobre a linguagem e sobre a infância. Para Freud, deve haver sempre uma crítica aguda ao imaginário social que impõe uma noção universal e generalizada sobre as crianças, que as tornam depositárias de todas as angústias dos adultos que as tomam como objetos de satisfação narcísica.
A função da arte e da literatura ditas infantis coloca a questão “como uma sociedade sonha sua infância” e pontua o “lugar que um adulto assume em relação a uma criança” ou à criança que o habita. Em última instância, é sempre do infantil que se trata. Ele está, na vida adulta, naquilo que Freud nomeou como o “umbigo do sonho”, e no que foi denominado por Jacques Lacan como “fantasma fundamental”: o que da experiência infantil persiste como marca no sujeito, ou seja, o que permanece como matriz pelo resto da vida, por toda a vida.
Nesse sentido, a potência de trabalhos como o de Rivane Neuenschwander encetam um importante debate sobre as marcas simbólicas que as crianças recebem dos adultos. A temática do medo no trabalho dessa artista é sempre atravessada pela dimensão social e pela maneira como cada um pode encontrar seu próprio estilo ou, ao menos, viver a própria história de modo singular. As capas são escrituras derivadas do desenhar, rasgar, colar, manchar: gestos que fazem surgir a enunciação velada, função mediadora do fantasma, uma apropriação da criança de seu mal-estar no mundo, transformando-o e refundando o jogo de presença/ausência do objeto.
Se há uma função na arte, esta pode ser a de provocar furos na ilusão da existência da criança universal, trazendo para o centro do debate as soluções provisórias que todos precisamos criar diante do abismo ameaçador inaugural.
Para adensar a temática, a exposição “Marepe: estranhamente comum” (até 28/10/2019 na Estação Pinacoteca, São Paulo): num gesto ético e político, Marepe (nascido na cidade de Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano) reivindica algo próximo daquilo que Benjamin propõe, ao tratar com aguda sensibilidade a temática do cotidiano da pequena cidade do interior baiano. As crianças são centrais no trabalho de Marepe, que toca o intangível da existência numa atitude tão singela quanto intelectual. Em “Periquitos”, temos uma televisão gigante, em que as cores remetem a um elemento de plástico usado nas televisões preto e branco antigas. O que se vê, através da enorme tela televisiva, são imagens repetidas da infância do próprio artista, vestido de periquito para um desfile de 7 de setembro. Marepe altera o tamanho de filtros de água; apresenta um grande caminhão de madeira, desestabilizando a convenção do tamanho dos brinquedos; extrai o sumo da nuvem nas imagens de “Doce céu de Santo Antônio”, trabalho em que o artista, de maneira mágica, segura um pedaço de algodão doce contra o azul do céu. Em “Camas de vento”, feito com camas dobráveis, o artista coloca asas de pássaros – Marepe usa a infância como ponto fulcral de sua obra: na infância sertaneja, o próprio artista dormia em camas parecidas. Com “camas ao vento” ele evoca a imaginação e a fantasia e, com as mãos, segura o inefável e a experiência do mistério.
A arte permite que o mistério dos primeiros tempos nunca se dissipe. Eis porque a história não pode ser o progresso contínuo da humanidade falante, ao longo de um tempo linear: em sua essência, ela é intervalo, descontinuidade. Aquele que tem a infância como pátria e origem deve prosseguir no seu caminho em direção à infância e na infância, como na belíssima fotografia “As filhas do pescador” de Sergio Larrain: numa aldeia à beira-mar do litoral chileno, duas meninas maltrapilhas brincam, penduradas de cabeça para baixo, em traves de madeira que lá estavam para secar redes de pesca. Capturadas na efemeridade da brincadeira infantil, as meninas atualizam ao infinito o próprio lugar acrobático da existência, a ideia subversiva da brincadeira como dom e dádiva da vida, como bem lembrado por Cecília Meireles: a infância é um “reino que começamos a desconhecer desde que o começamos a abandonar”.
A infância como chamamento é a pátria transcendental da história.
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, ensaísta, crítica de arte e autora do livro “Névoa e assobio”. Fez história da arte na Faap e mestrado em estudos contemporâneos das artes na Universidade Federal Fluminense.