ArteArtes Visuais

Para todos os mares

A artista Gabriela Machado apresenta a sua mais recente exposição, na galeria Anita Schwartz, no Rio de Janeiro

Nesta exposição, tentei criar, na sala grande, que é onde os trabalhos podem ter uma escala pública pela própria dimensão do local, uma relação entre os trabalhos pequenos e os grandes. Criei uma narrativa entre essa composição em que os trabalhos pequenos caem num lugar de mesmo valor, apesar da dimensão diferente, das escalas diferentes. Pelas escalas distintas, tentei trabalhar justamente esse olhar do espectador: ele teria uma leitura da pintura grande através da projeção do seu próprio corpo, e dos pequenos, num tempo em que a percepção precisa ser mais aguçada, precisa de mais tempo para a observação e o entendimento. Ao colocar todos juntos, potencializei os trabalhos dentro do mesmo tempo de visão para o espectador. Consegui fazer isso através não só da pintura, mas também dos materiais que fui agregando à obra.

Percebi que, quando colocava os trabalhos grandes perto das pinturas pequeninhas, estas pediam uma luz e uma expansão. Comecei a criar esta exposição através de uns materiais de tecido de papel que se usa na época do Carnaval. Como eu sou muito ligada ao Carnaval, durante esse período eu vou para a rua e deixo o acontecimento aparecer na minha frente. Essa coisa de ir tocar sem saber direito onde, deixando as surpresas acontecerem. Tenho muito essa relação com meu próprio trabalho. Eu deixo o trabalho vir e me mostrar o que tem que ser. Deixo ele andar por ele mesmo.


Nesse universo do Carnaval, pude achar materiais que trouxessem um brilho e que pudessem acentuar e potencializar as pequenas pinturas. Então, criei molduras que têm essa cor cítrica, brilho, furta-cores, e resultam nessa mistura de olhar. São papéis brilhantes, que confundem o olhar, especialmente quando colocados juntos à uma pintura tradicional, a óleo, que normalmente tem paisagem e contém o peso da História.

A exposição Para todos os mares é dedicada aos mares, porque venho fazendo residências artísticas em países diferentes, mas sempre relacionada com o mar. Esses materiais se agregaram a essas pinturas formando um novo trabalho, um novo ateliê. Meu ateliê, que era de pintura, passou a ser um ateliê de costura e colagem, porque fiquei com as pinturas e todos esses materiais espalhados aqui dentro e pude criar uma disciplina de entender essa estamparia riquíssima que temos no Brasil durante o Carnaval. Trabalhar com a composição dessas estampas foi um jogo de fazer, de potencializar o plano pictórico bidimensional e entregar novas formas de olhar para as pinturas.

Nesta exposição, temos dois espaços: o grande, que seria a nave central da Galeria, com o pé direito alto, em que potencializei as pinturas grandes junto com as pequenas; e o segundo andar, onde apresento somente as pequenas. Construí uma narrativa, uma conversa entre elas, sem colocá-las de forma linear, na mesma altura do olho, mas deslocando-as para que se possa criar um novo olhar ao entrar na sala.

Minha próxima exposição será na galeria 3 + 1, em Lisboa. Lá, vou repetir o processo, levar algum material daqui, as molduras expandidas, e procurar material característico de lá, como tecidos e papéis. Ainda não sei no que irá resultar, mas quero criar essa conversa com os materiais que estarão disponíveis. Atualmente, me interesso muito em fazer os trabalhos nos lugares em que estou, porque me permite um entendimento daquele espaço, do que ele pode me dar. Minha pintura vem disso, do sentimento de estar em um lugar específico. Meu trabalho não vive de um projeto a priori, mas do momento. Esta exposição do Rio tem, em cada pintura, uma história, como se cada uma fosse um diário sobre a minha vida.

Meu trabalho se dá basicamente pela curiosidade das formas, e não pela cor. A cor acaba por cair no lugar que tem que cair. É um impulso pictórico, no qual eu começo fazer e, de repente, a pintura se dá a partir da consistência da tinta e da pincelada. Ela brota do fazer. 

O texto da exposição foi escrito pela poeta portuguesa Matilde Campillo. Conhecemos de perto a poética uma da outra, e ela sabe muito bem como é o Rio de Janeiro, suas ruas e seu cotidiano. Essas pequenas coisas que são da cidade e se tornam temas interessantes. O texto que ela fez ficou muito bonito, porque fala do estar na rua, desse estar aberto para a surpresa, que é você entrar no ônibus e, de repente, ver uma purpurina no chão, trazer essa purpurina para o seu olhar e incorporar no seu trabalho. 

Há um tempo, comecei a inserir a palavra dentro da minha pintura. Isso vem de O Livro do Cuco. Eu comecei a fazer esse trabalho porque tem um cuco no meu ateliê, e toda vez que ele toca, me predispus a escrever num caderno qualquer coisa que venha à cabeça. Pode ser a frase de uma música ou algo que seja fiel ao momento. Mas minhas pinturas começaram a ter escrita justamente porque um dia o cuco tocou e eu não tinha nada por perto para anotar, então escrevi na tela. Quando você chega na frente de uma pintura e ela tem uma frase escrita, você lê e, claro, percebe a pintura com essa frase na cabeça. Não tem como desassociar. A partir de então, a palavra passou ter importância central na minha poética.

O BRILHO SEGUNDO GABRIELA MACHADO

Por Matilde Campillo

Já é Março, e a cidade ainda está toda cheia de purpurina. Um de nós entra no ónibus e lá está ela, cintilante, marcando o lugar de uma mulher que há um mês se sentou ali fantasiada. Ou caminhamos um pouco na calçada, e na nossa frente alguém deixa ficar para trás uma pegada de brilho. Encostamos um ombro ao poste elétrico, esperando o sinal abrir, e quando finalmente chega a nossa vez de avançar na estrada, notamos uma mancha colorida que nos ficou na camisa. Estas coisas, já sabemos, ainda hão de acontecer por muitos meses. O Carnaval deixa um rastro fluorescente na cidade, difícil de apagar. E se existem aqueles que se esforçam por esfregar o fulgor colorido até que desbote, existem outros que fazem por ele permanecer. Gabriela Machado é desse grupo: através do seu trabalho, ela faz por recordar que o brilho ainda é a marca forte desta cidade.

O Carnaval é a grande festa pública. Traz para a rua o circo, a canção, a máscara e a liberdade. Durante dias a fio, mulheres e homens desfilam em comunhão, oferecendo a cada passo banal o ritmo da dança. Até na hora de pedir um café o folião agita um pouco o pé, ou a cabeça, quem sabe até só os olhinhos. Dentro da máscara – mesmo que a máscara nalguns dias seja só um risco amarelo no rosto – alguma coisa visceral e livre se sacode sem parar. Não importa se aquele que veste a fantasia é alto ou baixo, gordo ou magro, se tem o cabelo escuro ou claro, nem sequer importa a língua que fala ou o lugar de onde vem: dentro do círculo carnavalesco que ocupa a cidade durante um par de semanas, cada um é aquilo que deseja ser. E do centro de si brota, girando, uma bola de fogo. Cada uma das pinturas de Gabriela expostas nas paredes desta sala traz para a tela esse clarão. Repare: tal como acontece com as pessoas que passeiam pela cidade inteira nos dias da folia, há nesta exposição trabalhos de corpo maior e trabalhos de corpo menor. Algumas telas parecem ocupar o nosso olho inteiro, outras se alojam com aparente cuidado num canto mínimo de nossa retina. Mas, como sucede com todas as coisas vivas que brilham, de nenhuma delas conseguimos afastar o olhar. E olhando-as, seja lá em que mês for, regressa ao nosso corpo aquele agitar de pé ou de cabeça, um que nos recorda de nosso ritmo natural. Nada disso é por acaso.

Quem conhece a Gabriela sabe que o seu é um trabalho feito em cima da verdade, e um para o qual ela transporta a própria vida. O pandeiro que ela toca reverbera na pintura. O mar que ela atravessa, seja nadando ou equilibrada sobre a prancha, salpica de água salgada os pigmentos. E do asfalto das cidades sobre as quais ela caminha sobra sempre alguma pedra de gravilha que se mistura na penugem de seu pincel. A esse aparente trabalho do acaso alia-se ainda a constante busca de Gabriela pelos materiais certos que, como não poderia deixar de ser, são muitas vezes os mais vulgares. A vida é vulgar, e é por isso que ela brilha tanto. Então a artista vagueia pelos mercados à procura dos papéis mais fluorescentes, mais sonoros, muitas vezes até melodiosos, e embrulha neles a pintura. Consegue assim fazer com cada um dos seus trabalhos um reflexo muito puro daquilo que é mais humano: envolvendo o tesouro, está quase sempre o banal. Veja-se, por exemplo, aquela pinturinha com um mar estrondoso e sereno ao centro – delineando-o, um papel de todas as cores grita a alegria. Veja-se um outro jarro de flores, quieto e abandonado sobre um fundo amarelo – em volta dele, a cor laranja toda viva. Ou uma concha, cheia de movimento e ao mesmo tempo suspensa – emoldurando-a estão dois tipos de papéis brilhantes, e eles cantam o Carnaval na beira do mar. Há ainda aquela montanha noturna, uma de minhas preferidas, pintada dentro de uma forma oval e aparentemente fechada – a envolvê-la estão dezenas de salpicos de tinta rosa-choque. A chuva de cor que embrulha a paisagem está ali para lembrar-nos que ao fim da noite escura está sempre um fogo de artifício, mesmo que silencioso. E que a solidão não é, não pode ser, o constante sinónimo da melancolia.

No Carnaval, para além da música que toca nas ruas noite e dia, e para além dos fatos coloridos que esvoaçam por todos os lados, há cartazes sendo levantados a toda hora. Os foliões seguem o bloco, e carregam nas mãos as frases curtas, que na maioria das vezes incitam à alegria. Frases do tipo “Vem com a Gente”, “A Rua é Nossa”, ou até “Casa Comigo” avançam na cidade desfiando palavras pela rua. É a linguagem se expandindo, e dançando com os corpos. Gabriela Machado, nas suas pinturas, transporta esse mesmo movimento verbal para a tela. E, da mesma forma, faz com que ele avance. São sussurros, às vezes. Aparentes gritos, outras vezes. Chegam até a ser apenas inquietações, porque mesmo alguém que dança se inquieta de vez em quando. Numa pintura muito serena, feita de um sol ao centro, a frase aquele que sabe o que é meu surge ali como um afago no tempo. Numa outra, de um azul celestial, aparece de repente isto: foi ontem que eu vi. Quem observa, vê também. Não ontem, quando o Carnaval ainda estava nas ruas, mas hoje, em qualquer hoje do ano. Que, se suceder num dia em que você se depare frente a frente com uma pintura de Gabriela Machado, cai num dia de Carnaval de qualquer jeito. Feito de brilho e de canção, feito do rasto cintilante que atravessa as coisas a toda a hora.