“No espaço da pintura, Maxwell compreende que pode manipular as marcas e símbolos que moldam as vidas e ditam os comportamentos”
Pardo é papel: Maxwell Alexandre
O nome de Maxwell Alexandre apareceu quase instantaneamente no campo das artes. Em apenas 4 anos, o artista saiu do anonimato para a fama internacional. Literalmente, da Rocinha, a maior e mais populosa favela brasileira, onde nasceu e vive, para um dos museus de arte contemporânea mais prestigiados do mundo, o Palais de Tokyo, em Paris, onde tinha exposição marcada para junho de 2020 (adiada para outubro de 2021 devido à pandemia de Covid-19).
Narrada assim, sua história ganha ares de conto de fadas. Mas a verdade é que, por mais breve que seja, sua ascensão é marcada por determinação e, talvez mais importante do que isso, pelo entendimento lúcido sobre como funciona o circuito das artes. Lugar que, como ele mesmo aponta, é um espaço de privilégios, movido por uma lógica branca e elitista. Não por acaso, sua obra, contundente, fala sobre a cultura da sua comunidade, predominantemente preta e pobre.
Formado em Design pela PUC-Rio, onde foi aluno bolsista, foi lá que teve seu primeiro contato com a arte contemporânea, através das aulas com o artista Eduardo Berliner. Esse encontro foi decisivo para que compreendesse que era este o caminho que perseguia. A partir desse momento, começou a estudar a lógica do campo da arte e entendeu que era preciso operar de forma estratégica. De cara, compreendeu que se intitular “artista” trazia mais prestígio do que “designer”, além de alargar as possibilidades do seu futuro profissional.
Foi em 2017, no evento Carpintaria para Todos, promovido pela galeria Fortes D’Aloia e Gabriel, no Rio de Janeiro, a primeira vez que Maxwell pendurou uma obra sua na parede de uma galeria tradicional do sistema das artes. Nesse dia, as portas estavam abertas a todos que aspiravam um espaço no circuito (e mercado) das artes. Bastava chegar com um trabalho que não ultrapassasse as dimensões da porta de entrada. Maxwell apresentou a obra Tão saudável quanto um carinho (2017) – parte da série Reprovados, que “surgiu para tratar de questões mais ácidas da vivência preta, como o conflito da comunidade com a polícia, a dizimação e encarceramento da população negra, a falência do sistema público de educação”, conforme escreve.
Do evento na Fortes D’Aloia e Gabriel, Maxwell passou a ser artista representado pela galeria A Gentil Carioca, que o levou para a consagrada feira Art Basel. Apadrinhado, partiu para uma residência na Delfina Foundation, em Londres, e outra em Lyon, que resultou na sua primeira individual fora do país, Pardo é papel, no Museu de Arte Contemporânea de Lyon. No retorno ao Brasil, a mostra itinerou por importantes instituições nacionais, como o Museu de Arte do Rio de Janeiro e a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. Nesse percurso, fez também sua primeira exposição solo no Reino Unido, na galeria David Zwirner, de Londres.
Se o primeiro trabalho apresentado ao circuito trazia uma visão mais dura e pesada da periferia – e, é necessário apontar, extremamente realista –, expondo tudo aquilo que fica perversamente velado pelos donos do poder, a série Pardo é papel traz um pouco mais de humor. Nela, a figura do homem preto aparece em meio aos símbolos e marcas que representam o status de poder e de bonança dentro da favela. Danone, Toddynho, Adidas, correntes de ouro, jatinhos, carros conversíveis se misturam ao brasão da polícia, aos uniformes escolares da rede pública de ensino, à laje, à piscina de plástico da marca Capri (cujo desenho padrão se espalha como pano de fundo de muitas das obras), às viaturas de polícia, às armas. É possível identificar representantes da luta social, bem como ícones da cultura popular. Marielle Franco marca presença. E os pretos ascendendo às camadas de poder, também.
Ao pintar corpos pretos sobre o papel pardo, afirma o ato estético também como político. Pardo é a designação utilizada em documentos oficiais, como certidões de nascimento, e pelo Censo do IBGE, por exemplo. Entretanto, hoje em dia, a comunidade preta entende que tal denominação está ligada a um processo de clareamento, e negação, da sua verdadeira cor. O crescimento das discussões e a tomada de consciência da população preta passa também pela construção de uma autoestima que aceita e enaltece suas características e que passa a enxergar, nesse tipo de termo, uma conotação pejorativa.
O personagem de cabelo descolorido que aparece nas pinturas é seu autorretrato. No espaço da pintura, Maxwell compreende que pode manipular as marcas e símbolos que moldam as vidas e ditam os comportamentos. Ao deslocar essa realidade para o plano pictórico, dando-lhes um novo tempo e espaço, seus trabalhos possibilitam o questionamento não apenas dos valores sociais, mas do lugar do preto em nossa sociedade, que por tantos anos negou sua existência. Os títulos de algumas de suas obras fazem essa conexão de forma direta: O mundo é nosso, Se eu fosse vocês olhava pra mim de novo, Até Deus inveja o homem preto, etc.
O grande formato de suas pinturas também tem a ver com isso. “Achei pertinente assumir esse formato de pintura monumental, para intensificar o diálogo entre a quantidade de papel articulada e o número de corpos pretos em posições contemporâneas de poder”, escreve em texto publicado no catálogo da exposição Pardo é papel. Para quem teve a oportunidade de ver tais obras ao vivo, fica evidente o contraste criado pela monumentalidade das obras e a fragilidade do material, que acaba tendo rasgos e remendas aparentes, algo que foi pensado propositalmente pelo artista.
Maxwell é membro d’A Noiva, ou a Igreja do Reino da Arte, que reúne artistas de várias áreas e onde acontecem encontros, exposições, trocas de ideia, além de rituais próprios das igrejas, como batismo, peregrinações e festas. É também a partir desse templo, como ele se refere, que tenta levar a arte contemporânea para dentro da comunidade onde vive, na Rocinha. Ali, ele propõe o autoconhecimento e a salvação pela arte. É mais um caminho que traça para aproximar a favela do sistema excludente da arte contemporânea. Em um post em sua conta do Instagram, publicado em 27 de dezembro de 2019, ele escreve sobre um culto de batismo realizado na Igreja: “A Igreja se instalou aqui na favela muito para fazer valer de fato as máximas idealizadas e romantizadas pelo circuito: a Arte democrática, a Arte para salvação do mundo. Isso nunca foi uma verdade aqui, porque a Arte como objeto de valor especulativo e principalmente distinção social tem sido um programa implementado para que os crias daqui não se sintam à vontade de chegar perto, consumir ou entender. Se é que precisa entender, neh (sic)?”
A relação que mantém com a música, como pessoa e em sua produção artística, também faz parte dessa estratégia. Suas maiores referências e pares de trabalho são cantores de rap, sobretudo da geração atual, como Baco Exu do Blues, Djonga e Bk’. O rap é uma inspiração direta para sua pintura e também uma escolha perspicaz de como aproximar a sua comunidade do campo das artes visuais.
Poucas pessoas têm a coragem de falar sobre o sistema das artes com a franqueza que o faz Maxwell Alexandre. Para ele, nascido na periferia – um lugar aonde a arte não chega porque não há tempo a perder com algo que alimente o espírito e não mate a fome depois de um dia de trabalho –, o entendimento da arte como um lugar de privilégio e de acúmulo de capital simbólico e econômico é claro. Ciente de tudo isso, e uma vez dentro do sistema, seu trabalho vai na direção de provocar e desestabilizar esse cenário. Sua obra aparece em um momento em que a luta contra o racismo tem tomado força e somado vozes. Sua trajetória, sua obra e sua posição jogam essa luz no centro do campo da arte, ao mesmo tempo que apontam, também, para a necessária reflexão sobre a estrutura social como um todo. É preciso olhar atentamente cada pincelada, que, mais do que tinta e domínio técnico (e este está, sim, presente), sinalizam que os pretos não vão mais ficar calados. E nem poderiam. A nós, brancos, cabe, mais do que contemplar, refletir.