Estátua do oficial militar Robert E. Lee é removida de seu pedestal em Richmond, Virgínia (EUA)

Em uma das cenas iniciais do clássico O homem de mármore (1977), filme do polonês Andrzej Wajda, a jovem cineasta Agnieszka invade uma área restrita do Museu de Varsóvia. Lá, foram ocultadas pelo governo comunista estátuas de heróis passados do regime. Ela filma as formas robustas e colossais de um daqueles homens de mármore esquecidos num porão. Era a estátua de Mateusz Birkut, um operário enaltecido em prosa e verso pelo comunismo polonês nos anos 50 por suas qualidades de trabalho, até que, subitamente, seu nome desapareceu da arena pública — consequência de alguma inobservância à linha dura do Partido. Agnieszka pretende, com um documentário, recuperar a memória desse ex-herói proletário caído discretamente em desgraça. Sua filmagem da estátua abandonada serve para contrapor a grandeza de sua glória à dimensão de sua queda.

Estátuas abatidas: o tema evoca imagens recentes, que ganharam o mundo no ano I da pandemia. Na sequência do assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, em maio de 2020, eclodiu uma onda de contestações a monumentos em homenagem a figuras ligadas ao passado escravagista e colonial, que foram ou vandalizados por manifestantes ou retirados por autoridades, em regiões tão distantes quanto as Américas, a Europa, a África do Sul e a Ásia. Movimento semelhante ocorrera pouco antes na América Latina, durante o estallido social que sacudiu o Chile em 2019. Gravações impressionantes mostravam multidões enlaçando e derrubando, em festa, estátuas de Pedro de Valdivia, conquistador espanhol do século XVI que foi um dos algozes dos povos mapuche, ainda hoje marginalizados na moderna sociedade chilena.

Templo de Bel, na Jordânia

E, no entanto, os Valdivias e os Confederados americanos decapitados e arrastados pelo chão em triunfo por manifestantes diferem em tudo daquele homem de mármore adormecido que Agnieszka filma às escondidas num porão de museu na película de Wajda. No caso do herói proletário Mateusz Birkut, não se tratava de uma mudança política e cultural, mas do apagamento da memória de um indivíduo por um Estado totalitário também responsável pela sua construção como ídolo das massas, tendo em vista apenas seus próprios fins políticos. Por isso, ao longo do filme, Agnieszka luta constantemente contra as resistências da burocracia comunista para recuperar os registros orais e visuais, dispersos ou ciosamente ocultados, da ascensão e do declínio de Birkut, refazendo uma memória incômoda aos donos do poder na Polônia dos anos 1970.

Não é esse silencioso descarte o destino reservado no mais das vezes às estátuas dos ídolos de ontem durante as grandes mutações coletivas. Essas dão lugar frequentemente a destruições públicas e altissonantes. No contexto religioso, são famosos os iconoclasmos bizantino do século VIII e protestante no século XVI. Bem entendido, a demolição dos ícones não se limita ao cristianismo e é conhecida também no hinduísmo e no islamismo: acessos recentes e dramáticos de fúria iconoclástica atingiram os Budas de Bamiyan (no Afeganistão, em 2001, pelos talibãs) e as ruínas sírias de Palmira (em 2015, por ordem do Estado Islâmico). As grandes convulsões políticas também são cenário favorável a atos públicos de destruição. Foi assim com os reis e santos golpeados pelos partidários da Revolução Francesa no século XVIII, com as estátuas de Saddam Hussein depois da invasão americana de 2003 ou ainda com as efígies de Lênin desintegradas a marretadas pelos ucranianos nos protestos da Euromaidan, em 2014.

A conclusão é clara: tão importante quanto a transformação política ou cultural empreendida é marcar os corações e as mentes com imagens dos velhos símbolos do passado doravante reduzidos a pó. Daí que essas demolições assumem um caráter de rito coletivo catártico, quando não — e especialmente em nossas sociedades — espetacular. Trata-se de reforçar exatamente aquilo que os dirigentes comunistas no filme de Wajda queriam apagar: a memória. É como se não bastasse a estátua desaparecer. Sua conversão em ruína, à vista de todos, anuncia um novo tempo, e, por isso, esse gesto deve ser lembrado. A estátua alvejada é simbólica e memorável mesmo quando deixa de existir.

Podemos nos perguntar, então, de que grandes mudanças os catárticos iconoclasmos de 2019 e de 2020, midiatizados ao extremo em milhões de câmeras de celular e nas plataformas digitais de todo o mundo, seriam representativos.

Trata-se de transformações que são profundas e, provavelmente, sem retorno. O modelo que opõe univocamente o Ocidente e o resto se mostra obsoleto frente a uma realidade mais e mais porosa. Não é que as hierarquias entre as democracias liberais afluentes e regimes distintos (de democracias disfuncionais a autocracias), com níveis de desenvolvimento econômico e humano menos brilhantes, tenham desaparecido. A situação nova é mais sutil: com o fim dos impérios coloniais europeus dos séculos XIX e XX, aqueles que eram o resto do mundo — árabes, indianos, africanos, latinos — estão mais e mais presentes no próprio Ocidente, nos centros das antigas metrópoles, em suas grandes instituições, em suas capitais.

Nessa nova configuração, mais saliente nas metrópoles cosmopolitas habitadas pelas classes superdiplomadas, não surpreende que as estátuas de figuras ligadas ao passado colonial sejam alvo de protestos de toda ordem, inclusive de vandalismo. Os cidadãos citadinos dessas grandes democracias pós-coloniais devem sentir diferentemente do que o fizeram as gerações anteriores, mais homogêneas etnicamente, as homenagens a Cecil Rhodes ou a Leopoldo II. Afinal, foram eles os opressores das comunidades outrora colonizadas das quais vieram populações que estão concretamente ao redor do cidadão citadino contemporâneo, como seu colega de faculdade indiano, seu vizinho senegalês ou argelino, quem sabe mesmo aquele ou aquela com quem se casou e teve filhos. A agressão pública dessas estátuas, em momentos de crise, seria uma forma de assinalar que algo mudou duravelmente na comunidade regional ou nacional.

Não seria diferente em países das Américas. Seu estatuto de antigas colônias, sua construção como nações a partir de uma situação de submissão política, social e racial, e em seguida sua conversão em nações democráticas (imperfeitamente?) includentes de minorias outrora inferiorizadas — todos esses fatores trazem à questão das estátuas inflexões ainda mais dramáticas, por se tratar de um combate a traços constitutivos de sua própria formação histórica. Seria por isso, quem sabe, que esses movimentos de 2019 e 2020 tenham aparecido tão cedo no Chile e nos Estados Unidos?

A questão que se coloca é saber se a derrubada é a única resposta que democracias às voltas com minorias étnicas outrora marginalizadas podem dar à existência de estátuas associadas ao passado colonial. Certamente, não é possível nem desejável seu apagamento em surdina, como o que ocorre em O homem de mármore — a memória da opressão passada é precisamente o que se quer preservar, como arma para sua superação. Não seria conveniente conservar fisicamente essas estátuas, permitindo-se, ao mesmo tempo, jogar com seu sentido?

Isso equivaleria a convertê-las de monumento em monumento histórico. Desse modo, elas perderiam seu caráter de homenagem coletiva ao suposto grande homem do passado, construtor da glória nacional às custas dos antepassados daqueles que hoje devem ser integrados à nação, em igualdade com as populações etnicamente dominantes. Poderiam ser sujeitas a intervenções de caráter artístico ou pedagógico com o objetivo de informar, de educar, de examinar, de deslocar o sentido do monumento da celebração à contextualização e à crítica.

Sabemos que a preocupação patrimonial é ampla o suficiente para abarcar, como herança comum da humanidade, não só palácios, parques e igrejas, mas também prédios e estátuas feitos com sangue e com lágrimas. A Casa do Terror, em Budapeste; o campo de Auschwitz, na Polônia; ou o sítio arqueológico do Cais do Valongo, onde desembarcavam africanos escravizados no Rio de Janeiro, são exemplares importantes dessa modalidade dolorosa do patrimônio, podendo servir a rememorar não só os oprimidos, mas também os opressores e os mecanismos da opressão.

Os Budas de Bamiyan, no Afeganistão