ArteMúsica

Já escutou?

Faz algum tempo que a estrutura da indústria fonográfica foi abalada profundamente pelo surgimento do streaming e pela revolução das mídias propagáveis. Vivemos, nos últimos 10 anos, um processo radicalmente diferente do que foi, por exemplo, o salto do vinil para a fita cassete e CD.

No plano executivo, as gravadoras se contorceram para encontrar um jeito de ressignificar sua importância e de entender novos fluxos de capital, os quais foram realocados pela falsa premissa da monetização independente sobre a qual se construíram as plataformas digitais. 

Em comportamento de consumo, as redes sociais se estabeleceram como uma das principais formas de comercialização de música e são fundamentais para o entendimento do mercado hoje. Isso se dá, principalmente, pelo aperfeiçoamento dos algoritmos usados para criar recomendações de música personalizadas e altamente precisas para os usuários. Essa análise de dados borra a linha entre a música que se descobre naturalmente e a música que foi estrategicamente escolhida para você.

Se esse fenômeno é bom ou ruim para os artistas (ruim), para a indústria e para os consumidores é uma discussão à parte. Nesse momento, o que mais importa para mim é que esses são fatos e que é necessário, enquanto coletivo, estabelecermos filtros para navegarmos por essa nova estrutura comunicacional.

Escrevo isso para tentar entender melhor a sensação de pensamento fragmentado que venho sentindo; de não conseguir acompanhar tudo o que acontece entre os diferentes nichos da música. 

É raro me conectar de verdade com a obra de algum artista, justamente por esse bombardeamento constante de informação. Tem muito mais música no prato do que é possível digerir e, às vezes, caio numa nostalgia profunda, em busca daquele sentimento lindo da adolescência que é se apaixonar pela obra de alguém.

Tudo isso pra dizer que, aqui nesse espaço, mensalmente, trarei alguns dos lançamentos nacionais e internacionais que me cativaram por qualquer que fosse o motivo. O compromisso com a escrita é uma forma de me manter atento e de formar um diálogo interessante com quem lê essa coluna.

A ideia não é trazer uma crítica dos trabalhos apresentados e, sim, sugerir uma razão pela qual você poderia ouvi-los, de acordo com a minha própria percepção musical. 

Dito isso, vamos ao que importa:

Indicações

MARO – “saudade, saudade” (Live in Avinyó)

Existe algo de revolucionário na simplicidade.

A primeira vez que ouvi essa faixa, fiquei em transe. Prestei atenção total ao que MARO cantava – e como ela cantava. Talvez porque o meu padrão de consumo está pautado principalmente na tecnologia; em novas sonoridades, timbres, batidas, sintetizadores e samples.

Em um momento onde a produção musical dispõe de tantas ferramentas para criar, é raro observamos uma decisão artística tão contrastante como a de despir os arranjos, ignorar os recursos por um momento e reafirmar o que, por muitas vezes, pode ser facilmente esquecido: 

A composição é rainha.

“Saudade Saudade” é a submissão oficial da cantora, produtora e multi-instrumentista portuguesa MARO para o Eurovision Song Contest, competição internacional de canções organizada anualmente entre os países europeus. A jovem, de 27 anos, possui um pezinho firme no Brasil e é colaboradora frequente de artistas nacionais como Anavitória, Rubel e Tó Brandileone.

O lançamento do trabalho completo consistiu em três versões da mesma composição: a primeira, indicada aqui, é uma rendição ao vivo composta por quarteto de violão e coro de voz, enquanto a segunda é um registro informal do ensaio em Avinyó. A última é uma versão de estúdio, já mais completa, com outra roupagem de arranjo e mixagem, o que traz uma intenção diferente das outras. 

Todas são acompanhadas de vídeo e podem ser conferidas no youtube: (versão acústica), (ensaio), (estúdio)

“Resta uma só palavra”

Sinto que no exercício da profissão de produtor musical, a tendência é sempre achar que ainda há algo faltando. É comum ouvir por aí que uma faixa só é finalizada quando se desiste, e o excesso de informação, em todas as frentes de consumo, naturalmente se reflete na hora de fazer música. 

Esse vídeo trouxe um respiro necessário para essa sensação, como acordar de um estado de inércia e vício de pensamento que vinha se instalando devagarinho na minha mente nos últimos anos. Foi como um retorno romântico às primeiras experiências musicais que tive na vida, relembrando que talvez o mais importante dentro de um fonograma é, de fato, a composição. A parte lírica comunica e nos atravessa, independentemente dos elementos que a circundam. 

Isso fica muito evidente aqui: o fato de ser uma rendição ao vivo, contemplada por um arranjo orgânico, quase nu, dessa canção, abre espaço para as melodias de voz e realça muito bem a letra. 

O quarteto de violões comunica com destreza a melancolia lírica: (0:02-0:20)

As linhas de cordas mantêm o mesmo ritmo entre si, mas tocando notas diferentes que se desencontram e se entrelaçam em uma dança sutil. Isso cria movimento e dá novas intenções para uma harmonia aparentemente simples.

A voz areada e ridiculamente afinada da cantora portuguesa é um dos traços mais marcantes de toda a sua obra. Ainda que acompanhada por outras oito cantoras, é extremamente fácil distinguir o timbre doce de MARO entre a massa uníssona que se apresenta no refrão. (1:15 – 1:27).

Destaque para a modulação harmônica que acontece na ponte: (1:48 – 2:10)

A passagem acima é delicadíssima, onde a mudança de acordes abre uma perspectiva mais solar para uma canção aparentemente triste. Isso ocorre exatamente quando a letra para de falar sobre a perda e dá espaço à esperança, ao pedido por sinais.

Saudade é a palavra restante e a única que poderia comportar tanto a nostalgia de um amor perdido quanto a perspectiva de seguir em frente. 

Para conhecer um pouco melhor o trabalho de MARO, recomendo, também, aos corações partidos: 

It’s OK” (2018)

Acho muito bonito como MARO consegue ser virtuosa e apresentar arranjos extremamente inteligentes fazendo uso de muito pouco. No álbum, a faixa Happily Never After, por exemplo, usa de um tempo de 7/4 (nada comum na música pop) de uma maneira muito sutil, que apenas quem possui o conhecimento técnico vai identificar. 

Importante também ressaltar que quase todas as músicas possuem alguma passagem modal: existe um campo harmônico por onde a melodia principal navega mas, em dado momento, a paisagem se transforma por entre novos acordes, trazendo mais cor e ressignificando tudo que se apresenta por cima.

Um exemplo disso é a ponte de Still Feel It All (2:19 – 2:38), um dos trechos mais lindos do disco, na minha opinião.

Fazer uso de substituição de acordes desse jeito elegante e musical é de um nível de genialidade ímpar. A sacada não está apenas no uso desses recursos, mas em como a música se mantém pop, acessível, melancólica e, ainda assim, simples. 

Apesar do encanto pelos arranjos despidos, MARO já se consolidou com uma das musicistas mais versáteis dos últimos anos, Seja pelo seu trabalho solo, pelas colaborações com NASAYA ou como cantora de apoio, violonista e tecladista na banda do prodígio inglês Jacob Collier. 

Ouça:

Midnight Purple (2018)

It’s OK (2018)

MARO VOL 1

Estreia

Jovem Dionísio – “Acorda Pedrinho” (Álbum) (2022)

Jovem Dionísio cria com leveza, transitando entre sonho e memória. 

Jovem Dionísio conseguiu se desvencilhar com louvor da armadilha do “one hit wonder”, e são poucos os músicos que conseguiram emplacar um hit de sucesso e ainda manter um nível consistente de trabalho no pós-fama.

O quinteto curitibano estourou em 2020 com o single Pontos de Exclamação, e poderia ter ficado por isso mesmo. Mas a banda aproveitou com inteligência o momento de exposição e se organizou para fidelizar os fãs recém-chegados dentro do universo sonoro do grupo.

Em pequenas doses de singles interessantes – sempre acompanhados de um trabalho visual impecável – a banda foi experimentando, aperfeiçoando e entendendo a própria identidade. 

Foram passos curtos e planejados, que resultaram no excelente Acorda Pedrinho, disco que é muito coerente com os trabalhos anteriores, ao mesmo tempo que aponta para frente. Ainda que muito pop, a banda passeia por várias ideias e explora estruturas musicais nada convencionais.

A mescla de influências gringas e sonoridade brasileiras, letras debochadas e melodias grudentas trabalham em conjunto para criar uma atmosfera característica, que é ao mesmo tempo moderna e nostálgica. Talvez pelas letras leves que remetem às brincadeiras daquele círculo muito próximo de amizade, ou pela forma lúdica com que as músicas narram contos de amor.

Por meio de uma produção singela, arranjos minimalistas e vocais morosos, Jovem Dionísio cria com leveza, transitando entre sonho e memória. 

Destaques: Ai de mim e Cê me viu ontem 

Radar

Karla – Prisma (EP) (2022)

Bem trabalhado nas texturas eletrônicas, guitarras e harmonias de voz, “Prisma” é um projeto delicadíssimo da artista tocantinense Karla. Bebendo influências do gospel e do folk, a cantora divide, compreende e repassa suas dores ao ouvinte, quase como em uma conversa íntima. O disco tem uma produção muito interessante, que usa a seu favor toda potência vocal que Karla tem a oferecer. Para quem gosta de música triste (eu), é um prato cheio.

Destaques: Cada Pedaço, Fuga, Estação.

BIAB – Pedra do Sal  | A COLORS SHOW (2022)

Na minha opinião, uma das melhores performances dentre a última leva de brasileiros apresentados na plataforma Colors. Com muito domínio de palco, o timbre quente da carioca é projetado sem esforço algum e as melodias dançam junto e em volta do beat, brincando com as possibilidades rítmicas de cada palavra. É nítido que o canto pertence naturalmente à identidade da carioca BIAB. Vale demais assistir.

***

Fala que eu te escuto: Estou sempre em busca de sonoridades novas, e todo mês reviso e ouço com muito carinho todo o material enviado. Aguardo sua sugestão, e se possível, uma justificativa breve do motivo da escolha.

[email protected]Spotify

***
Saiba mais sobre o Escuta
Instagram Youtube IAOSP