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Políticas públicas: como são (ou deveriam ser) feitas

Ao término dos primeiros 100 dias do novo governo Lula, completados no último 10 de abril, é natural que se faça um levantamento mais detalhado do que foi e do que não foi feito ao longo desse período. É, afinal, um marco temporal significativo, em especial por se tratar de uma transição aprofundada do Brasil-catástrofe que aconteceu de janeiro de 2019 a dezembro de 2022. Entre as inúmeras mudanças que se fazem necessárias, dentro do tanto que se esperava mudar, um aspecto em particular arrepiava o cabelo de muita nuca por aí: para mandar uma mensagem clara e categórica à população brasileira, e ao restante do mundo, era urgente que o campo das políticas públicas passasse por um processo ardente de renovação. Isso, felizmente, se confirmou no trimestre que passou e vê-se no horizonte um punhado bem servido de propostas — em sua maioria, relançamentos de programas desmontados — que visam o combate à fome, a preservação do meio-ambiente, a luta contra o racismo e mais um mar de outras finalidades político-sociais. 

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A despeito do hiato recente, no século XXI o Brasil segue a tendência progressista ocorrida na América Latina. Como conta Suzana Maria Loureiro Silveira1, advogada popular e mestra em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, desde o fim dos anos 1990 os países do continente vêm, no geral, valorizando a gestão democrática — de Hugo Chávez, na Venezuela, até Fernando Lugo, no Paraguai —, universalizando condições de vida mais adequadas àqueles situados em vulnerabilidades socioeconômicas causadas por problemáticas históricas. 

“Desde seu primeiro mandato como Presidente, Lula tem buscado construir uma agenda política voltada ao reconhecimento das desigualdades sociais e históricas. No mesmo sentido, tem buscado alinhamento internacional sobretudo com países vizinhos. Esse movimento também ocorreu nos anos 2000 com a chamada ‘Onda Progressista’ ouOnda Rosa’ que representou uma base de sólidas articulações entre Estados latino-americanos por ocasião de vitórias presidenciais na virada do milênio. Em termos de integração houve um sentido de identidade para formulações de políticas voltadas à realidade regional. Esse recorte histórico não está alheio às políticas institucionais tomadas em cada país.”

As políticas públicas, então, dão as caras para promover o fortalecimento da participação social e a garantia de não retrocesso. O programa relançado que mais ganhou destaque nos noticiários brasileiros foi o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), uma iniciativa que garante compra de produção de pequenos produtores e oferece para pessoas em situação de insegurança alimentar. A mensagem por trás do programa e de toda a sua planejada repercussão? O combate à fome volta a ser uma das prioridades do governo. 

Evidentemente, uma política pública não se faz tão somente de boas intenções e posicionamento humanista. De tais discursos, a gaveta de projetos descontinuados ou ineficazes está cheia. Políticas públicas nada mais são do que ações governamentais para assegurar os direitos previstos na Constituição Federal, além de, com uma construção macro que se faz a cada programa, estabelecer uma linha geral de como fazer valer os valores que deveriam tocar a sociedade e servir, assim, de ferramenta para implementar mudanças progressivas. É por meio dessas políticas que o governo aborda algumas questões como a equidade de gêneros, estabelece diretrizes nacionais e providencia recursos necessários para alcançar tanto objetivos específicos quanto amplamente definidos. Se bem planejadas, podem fazer toda a diferença tanto para o presente quanto para o futuro. Com a ajuda de pesquisas científicas, por exemplo, as políticas públicas podem levar o Brasil a se tornar referência em energia limpa.

Como elas são feitas no Brasil?

O processo de elaboração de uma política pública é sempre complexo e multifacetado — dois adjetivos que, apesar de enclichezados, seguem sendo palavras-chaves para a compreensão do panorama brasileiro. De acordo com Suzana,

No Brasil, para que haja um mínimo de legitimidade das ações estatais, reveste-se no discurso das políticas públicas a necessidade da criação de instrumentos pelos quais serão promovidas as prestações que induzam ao ‘trajeto’ previsto pelo programa ou meta, previamente prescritos, sujeitos, inclusive, à intervenção de órgãos de controle (legalidade, constitucionalidade e orçamentário) como é o caso do Poder Judiciário e tribunais de contas. Pragmaticamente, as políticas públicas enquanto essas ações estatais funcionariam como um meio. Nesse contexto, as políticas públicas atuam como instrumentos necessários à efetivação de direitos fundamentais, refletindo-se em uma ação do Poder Público tendente à realização gradativa de programas ou metas definido em norma jurídica, sob a qual pode recair controle jurisdicional quanto à eficiência relativa entre os meios utilizados e os fins ou resultados, produto da atuação estatal. Assim, toma-se como uma peregrinação em que é inerente percorrer um caminho, compreendido, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, como imprescindível à prestação estatal, isto é, é essencial que haja a definição de uma política pública dentro de uma previsão orçamentária (votada e aprovada) e a execução do programa social aos moldes de sua definição. 

Presentes no Brasil, podemos pensar em 4 tipos de políticas públicas: a política pública distributiva, construída com o orçamento público contemplando ações que fornecem serviços para a população (ou parte dela) por meio do Estado; as políticas públicas redistributivas visam reduzir a disparidade social (um bom exemplo atual é a isenção do imposto de renda, que, a partir do ano que vem, aumenta a sua régua e passa a ser aplicada a quem recebe até R$2.640); as políticas públicas regulatórias estão diretamente relacionadas com as leis, criando, aprimorando ou fiscalizando o cumprimento de leis que asseguram direitos e o bem da sociedade; já as políticas públicas constitutivas têm como objetivo estabelecer as responsabilidades das esferas de poder, distribuindo e determinando se a responsabilidade sobre algo é do governo municipal, estadual ou federal. 

Na primeira etapa para a elaboração de uma política pública, identifica-se problemas e desafios que precisam ser abordados. Esses problemas podem surgir de diversas fontes, incluindo demandas da sociedade civil, diagnósticos técnicos e avaliações de resultados de políticas existentes. Como a educação é pouco, ou quase nada, democratizada, um ProUni (conhecido também como Programa Universidade Para Todos) se faz necessário para ampliar o acesso ao ensino público. Como a violência contra mulher atinge números cada vez maiores, uma Lei Maria da Penha precisa existir.

Com base na identificação dos problemas, as propostas são desenvolvidas por meio de consulta, negociação e articulação com diferentes atores sociais e institucionais. Essas propostas podem ser elaboradas por grupos de trabalho, comissões ou ministérios especializados. Depois que são formuladas, elas precisam ser implementadas por meio de ações concretas. Isso geralmente envolve a alocação de recursos financeiros, humanos e materiais, a definição de marcos regulatórios e a criação de instituições e mecanismos de gestão. Por fim, as políticas públicas precisam ser monitoradas e avaliadas para avaliar sua eficácia e efetividade. Isso envolve a coleta de dados, a análise de resultados e a revisão das políticas existentes para garantir que elas estejam alcançando seus objetivos.

Mas há alguns problemas na simplificação de processos que muitas vezes ocorre por aqui. O que fazer se, digamos, uma política pública não vingar? Não é difícil de acontecer, principalmente em um país gigantesco como o Brasil, que naturalmente impõe um sem-fim de obstáculos na implementação de qualquer medida ou programa. Como diz o economista Marcos Lisboa, inovações fracassadas do setor privado duram pouco no mercado, já as estatais perduram. Isso, por si só, levanta uma outra questão: o que é o sucesso ou o fracasso de um projeto? É comum que isso não seja definido de antemão, o que dificulta a tomada de decisões lá na frente, diante dos resultados. A política pública no Brasil por vezes não embasa suas ações em evidências disponíveis.

Mas, então, como deveriam ser feitas?

No mundo ideal, as políticas públicas deveriam ser feitas com base em princípios de transparência, participação, fiscalização e efetividade. Ou seja, as políticas públicas deveriam ser desenvolvidas em um processo aberto e participativo, com o envolvimento ativo de diferentes atores sociais e institucionais. Deveriam, também, ser avaliadas regularmente, e de maneira efetiva, para garantir que estão atingindo seus objetivos e contribuindo de fato para o bem-estar da população.

Nesse mesmo mundo ideal, a promoção da equidade e da justiça social deve ser o objetivo-mor, mas sempre com a adoção de políticas baseadas em evidências e a busca pela eficácia na implementação. As políticas públicas devem ser desenvolvidas de maneira estruturada e consistente, levando em consideração as necessidades da sociedade e as condições políticas, econômicas e sociais do país, incluindo possíveis barreiras. 

Há diversos elementos limitadores da ação, elementos jurídicos que atuam de modo a justificar as limitações de outras ordens (econômica, política etc.). As leis e planos orçamentários determinam a formulação e o alcance das políticas públicas. As alternâncias políticas e de projetos de governos impõem à população incertezas, uma vez que é suficiente que se altere a posição de um governante com relação a outro para que o cenário de formulações públicas em seu caráter progressista e mais social seja alterado. A universalização de garantias sociais tomada enquanto política de Estado representaria maior garantia aos grupos sociais subalternizados.

No entanto, a todo momento estamos trabalhando em nossa narrativa no âmbito do dever ser. No espaço amistoso e confortável do Direito, o de suas ficções e abstrações. Temos tantos e vários direitos reconhecidos, ratificados, internalizados, positivados, contudo sem muita garantia. Ironicamente, direitos que apesar de fundamentais parecem não ser encarados como tão fundamentais assim. Basta lermos o artigo 7º, 6º e 5º da Constituição.” , nos lembra Suzana.

Com isso em mente, o caminho básico deveria ser mais ou menos o seguinte:

Identificação do problema sempre em primeiro lugar. Pode parecer uma obviedade, é válido apontar que essa identificação sempre deve ser baseada em pesquisas e isso quer dizer que nada adianta se essas pesquisas só buscarem evidências que dizem respeito aos fins específicos daquele projeto e fechem os olhos para boa parte da população. 

Definição de objetivos: como saber se foi ou não foi bem-sucedida? A partir da identificação do problema, é indispensável definir os objetivos que a política pública deve alcançar. Esses objetivos devem ser claros, mensuráveis e, claro, realistas.

Elaboração de alternativas. Com os objetivos definidos, é hora de desenvolver alternativas para atingi-los, considerando o corpo de elementos que constituem nosso sistema jurídico. Essas alternativas podem incluir diferentes estratégias, programas, ações e investimentos.

Análise de custo-benefício. Antes de escolher a alternativa mais adequada, para fins de viabilidade é importante realizar uma análise de custo-benefício. Isso significa avaliar os custos e os benefícios das diferentes opções e escolher aquela que oferece a melhor relação custo-benefício.

A implementação da política talvez seja o ponto mais complicado. Pensar fora do papel, mas, ao mesmo tempo, fazer isso com o pé no chão para visualizar as viabilidades do Brasil real. Depois de escolhida a alternativa mais adequada, é hora de implementar a política pública. Isso pode envolver a criação de leis, regulamentos, programas e outras ações.

Monitoramento e avaliação: por fim, é importante monitorar e avaliar os resultados da política pública. Isso permite que os responsáveis possam identificar o que está funcionando bem e o que precisa ser ajustado ou modificado para que a política possa ser ainda mais efetiva e longeva.

Nada disso é necessariamente linear, tudo pode ser adaptado de acordo com o contexto e a natureza da política pública em questão. A participação e o diálogo com a sociedade civil e os grupos afetados pela política são fundamentais para garantir que ela seja efetiva e atenda às necessidades da população.

Devemos ser otimistas?

Quando comparamos o Brasil com outros países, temos ao nosso favor uma Constituição progressista que garante direitos sociais e trabalhistas, além de políticas públicas importantes que têm contribuído para a redução da pobreza e da desigualdade; por outro lado, o Brasil também enfrenta desafios significativos, como a corrupção, que afeta a efetividade e a transparência das políticas públicas, e a desorganização política, que implementa medidas de maneira descoordenada e sem uma avaliação adequada de resultados, o que pode levar ao desperdício de recursos e a um cenário de ineficiência.

O impulsionamento de um conjunto de condições materiais de existência (categoria podemos inserir os direitos fundamentais positivados na Constituição de Federal de 1988) às necessidades do capitalismo se dá independentemente da base ideológica do governo ou da plataforma política do momento em que as decisões são tomadas, que posteriormente decorre na definição de agenda, implementação de políticas públicas, pois a forma do Estado representa a forma social desta determinação histórica e não de outra. As políticas públicas experimentam variações com base nas vocações político-ideológicas no grupo que ocupa as mais altas cúpulas. Não se trata apenas de seu funcionamento, mas da essência da política pública que se almeja em um determinado recorte histórico. 

A eficácia das políticas públicas de um país é algo complexo de se avaliar e depende de diversos fatores, como o contexto político, social e econômico do país em questão. Um país frequentemente citado como exemplo de eficácia das políticas públicas é a Noruega. Mas como comparar a Noruega ao Brasil? 

Enquanto um é um país latino-americano emergente de 8.516 milhões de km², o outro é um país nórdico consideravelmente menor que a Bahia, cujo IDH é o segundo melhor do mundo. De maneira geral, a Noruega é conhecida por suas políticas públicas progressistas e bem-sucedidas, com um sistema de bem-estar social abrangente, que oferece saúde, educação e assistência social universais e de alta qualidade; políticas ambientais rigorosas, que visam reduzir as emissões de gases do efeito estufa e promover a transição para uma economia de baixo carbono; investimentos significativos em pesquisa e desenvolvimento, que têm ajudado a impulsionar a inovação e o crescimento econômico; políticas de igualdade de gênero, que têm levado a uma maior participação feminina no mercado de trabalho e em posições de liderança. Talvez isso pareça um verdadeiro oásis quando posto ao lado do país que ocupa somente a 87ª posição no ranking de desenvolvimento. Porém, lembremos das diferenças.

Para analisar criticamente qualquer assunto sobre a realidade do Brasil e da América Latina, devemos considerar alguns determinantes históricos que ainda continuam a produzir efeitos na forma pelas quais as condições de vida de diversos grupos sociais são construídas. Tais determinantes decorrem de eventos históricos como colonização, que implicou na condição de periferia suportada na região, por exemplo. De certa forma, toda problemática que envolve a temática de escolhas, decisões e elaboração de mecanismos que operem em um mínimo de alteração na realidade social de pessoas historicamente excluídas possuem um denominador comum: a especificidade histórica do direito no capitalismo. 

Em outras palavras, as demandas são diferentes, as realidades são diversas. A adoção por relativização de problemas sociais se realiza sob duas racionalidades distintas, em momentos históricos e conjunturais que não se confundem, ou deveriam ser confundidos. O que dá certo para um específico problema em uma localidade, não deve ser utilizado como modelo à outra.

Ainda que a comparação não seja o caminho indicado, a taxa brasileira de desenvolvimento humano relativamente baixa indica que há espaço para melhorias em áreas como saúde, educação e segurança pública. Não é de hoje que o país tem potencial para avançar e melhorar suas políticas públicas. À semelhança das próprias políticas públicas, tão limitadas pelo contexto jurídico-institucional, sendo muitas vezes incapazes de promover as mudanças pretendidas, perdura a sensação de que o Brasil é o Brasil que consegue ser e não o que deveria ser. Um país do futuro demasiadamente preso às agruras tanto do passado quanto do presente. 

No entanto, um certo otimismo pode subsistir sob tudo isso. Não chegaremos ao IDH da Noruega tão cedo, é verdade, mas estamos mais perto disso em 2023 do que estávamos nos quatro anos que vieram antes. Agora, finaliza Suzana, é tempo para que nós, sobreviventes de uma gestão de extermínio, organizemo-nos politicamente e pautemos as nossas lutas e bandeiras. A saída é pelo povo.

O mundo, e os muitos mundos que cabem no Brasil, precisam que a eterna promessa vire realidade.


1Suzana Maria Loureiro Silveira é Mestra e Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PPGD/PUCC). Doutoranda em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (PROLAM/USP). Integrante do Grupo de Pesquisa Crítica do Direito e Subjetividade Jurídica (USP). E-mail: [email protected]