Big Bang Fountain, de Olafur Eliasson.
#42ÁguaArteArtes Visuais

Poéticas em fluxo

Ao longo da história ocidental, a água foi muitas vezes representada tanto em alegorias ligadas ao simbolismo judaico-cristão, como nas imagens do batismo ou do dilúvio, por exemplo, quanto em sua integração com a paisagem e a natureza. Entretanto, o uso da água como material presente na obra artística torna-se mais frequente principalmente a partir da segunda metade do século XX. Muitos artistas passam a romper os suportes tradicionais da pintura e da escultura, buscando novas alternativas para a utilização da matéria na arte. Não mais condicionada e subjugada pela forma, a matéria passa a ter um significado mais presente, que é potencializado por operações conceituais.

Uma das primeiras vezes que a água aparece no cenário das grandes exposições internacionais de arte é no trabalho do artista japonês Sadamasa Motonaga, do grupo Gutai, apresentado em 1956 na Bienal de Veneza. Ao longo de uma alameda, o artista pendurou diversas folhas de plástico transparente com água e pigmentos coloridos, que foram presas às copas das árvores. O trabalho estava sujeito às alterações de luz e temperatura do ambiente externo e pendia para baixo pelo peso da água. O trabalho não se articulava através de elementos figurativos, mas sim a partir da experimentação da matéria líquida em conjunção com o plástico oriundo da produção industrial. 

Sadamasa Motonaga na Bienal de Veneza.

A observação dos processos físico-químicos da água aparece com força nos trabalhos da década de 1970 realizados pelo alemão Hans Haacke. No trabalho Kondensationswürfel (“Cubo de condensação”), Haacke acondiciona em uma caixa de acrílico transparente uma pequena quantidade de água, que, conforme a alteração da temperatura, ora se condensa nas paredes do cubo, ora escorre sobre elas. Já no trabalho Rheinwasseraufbereitungsanlage (“Estação de tratamento de água do Reno”), o artista problematizava questões ligadas à ecologia e à entropia. Nesse trabalho, Haacke coletava água poluída do Reno e, através de tratamento químico, conseguia clarificá-la e limpá-la, introduzindo-a num grande aquário onde nadavam peixes. Ao expor a água tratada ao lado da água poluída original, o artista resgata os significados da água como fonte de vida e como material representante da limpeza e da clareza cristalina. 

Um dos artistas que mais utilizou a água como material em seus trabalhos foi o alemão Klaus Rinke. Em várias obras dos anos 1970 e 1980, ele apresentava grandes tonéis devidamente etiquetados com água proveniente de diversos mares e rios. A reunião de água de lugares tão distantes parece conferir uma impressão de totalidade entre os povos e o ambiente que os cerca. O processo de coleta da água também era incorporado à significação do trabalho. Em alguns casos, o artista confeccionou grandes conchas para coletar a água dos rios e mares. Essas conchas eram expostas juntamente com fotos da coleta, ao lado dos tonéis com água. 

Klaus Rinke em “O fluxo dos tempos”.

O interesse fenomenológico pela água também se faz presente nas obras de artistas brasileiros que marcaram as décadas de 1960 e 1970, como Lygia Clark, Hélio Oiticica, Amélia Toledo, José Resende, entre outros. No final de sua carreira, Lygia Clark desenvolveu seus “Objetos Relacionais”, que consistiam em sacos plásticos com água, ar, areia, bolinhas de isopor e outros materiais que eram aplicados sobre o corpo das pessoas de forma a provocar sensações corporais que libertassem determinados conteúdos inconscientes impossíveis de ser verbalizados. A aplicação desses objetos teria um caráter terapêutico, e a água, assim como os outros materiais, agiria sobre a sexualidade e o inconsciente. A experiência sensorial também está presente no trabalho de Hélio Oiticica. Em um de seus “Penetráveis”, o espectador deve pisar na água, em pedras e em areia, vivenciando corporalmente o trabalho.

Em um trabalho sem título de 1983, José Resende apresenta um tubo de vidro cheio de mercúrio, vaselina líquida e água destilada, flutua dentro de outro tubo, de mesma forma, porém muito maior (da altura de uma pessoa), que contém também vaselina e água. Os líquidos, por suas densidades diferentes, não se misturam e existe entre eles uma nítida linha demarcatória. O tubo maior apresenta-se preso inclinado à parede através de fios plásticos, pendendo para a frente. A tensão a que o trabalho é submetido pela força da gravidade parece representar uma certa ameaça ao vidro e ao derramamento dos líquidos. A presença do ar e de diferentes líquidos transparentes criam um mundo de sutilezas, em que os limites dos materiais são demarcados por linhas de horizonte incertas, confundindo-nos a percepção.

No trabalho de Amélia Toledo, a água como tema e matéria aparece com bastante constância, e as paisagens naturais são parte fundamental de sua poética. O trabalho de Amélia é marcado pela escolha de materiais transparentes e pela criação de situações lúdicas a partir das energias materiais. Na série “Frutos do Mar”, realizada de 1974 a 1982, por exemplo, a artista coleciona conchas e outros materiais de origem marítima, inserindo-os juntamente a conchas confeccionadas em resina transparente e cristais em vidros com água, criando pequenos mundos líricos que fazem referência ao fundo do mar. Em alguns trabalhos, Amélia submergiu no mar peças em resina e vidro por longos períodos, até que eles fossem incorporando cracas e corais, sendo corroídos pelo ambiente marítimo. Em outras obras suas, o que se destaca é o aspecto lúdico, como em “Discos Táteis” e “Bolas Bolhas”, em que líquidos são acondicionados em peças de plástico, os quais podem ser manipulados e ter sua aparência modificada pelo observador.

Amélia Toledo na Galeria Marcelo Guarnieri.

Nas últimas décadas, Laura Vinci vem realizando trabalhos contundentes, em que a água é incorporada em diferentes estados físicos. Na instalação “Mona Lisa”, Laura dispôs sobre o chão uma grande quantidade de bacias de vidro com água aquecida por resistências elétricas de cobre. A água sofre o processo de ebulição, criando uma certa névoa no espaço. A transparência do vapor, da água e do vidro das bacias une visualmente os três elementos, como se o vidro fosse lentamente se tornando imaterial, liquefazendo-se e evaporando pelo espaço. Em outros trabalhos, a artista utiliza o gelo, que envolve tubulações de metal com as quais constrói palavras fazendo uma espécie de poema espacial.

Artistas ligados à chamada Land Art, como Robert Smithson e Nancy Holt, também realizaram trabalhos de grandes dimensões em rios e lagos. O trabalho mais conhecido de Robert Smithson é a “Spiral Jet”, realizada no interior de um lago em Utah, nos EUA. Construindo uma grande espiral com terra e outros materiais no meio do lago, Smithson intervém poeticamente na natureza, proporcionando que o trabalho sofra uma interação entrópica com o ambiente que o cerca. Nancy Holt realizou em 1974 a intervenção Hydra’s Head, em que construiu seis pequenos reservatórios circulares ao longo das margens do rio Niagara, que ocupavam posições correspondentes à constelação Hydra.

Um dos artistas internacionais recentes que mais tem trabalhado com água e com as relações entre a arte, o sublime e a natureza é o dinamarquês Olafur Eliasson. Esse artista realiza instalações em que a natureza é recriada através de um aparato tecnológico artificial. Na exposição “The Mediated Motion”, realizada na Áustria, Eliasson preenche um dos ambientes de um museu de arquitetura modernista com água e plantas aquáticas, criando uma passarela por onde os espectadores devem transitar. Em outro ambiente, a sala é totalmente preenchida por uma névoa vaporosa, e o visitante é obrigado a atravessar o espaço pisando em uma ponte de madeira suspensa. Nesse e em outros trabalhos de Eliasson, observa-se um diálogo entre natureza e civilização, que coloca em atrito a beleza sublime dos elementos naturais com a sua desencantada reconstrução artificial no interior da arquitetura. Entre os trabalhos mais conhecidos de Olafur Eliasson, estão as intervenções que ele realiza com pigmento verde sobre diversos rios. O artista tinge rios dos Estados Unidos, Suécia, Alemanha e outros países com pigmentos não nocivos à natureza utilizados por cientistas para marcar as correntes marítimas. A estranha cor verde fosforescente destes rios, por um lado remete a uma exacerbação das belezas naturais, por outro lado surge aos olhos como extremamente artificial, alertando-nos para questões ambientais.

A artista Néle Azevedo também teve seu trabalho associado a questões ecológicas ao realizar instalações com pequenas esculturas de gelo que derretem no espaço urbano. Em seu projeto “Monumento Mínimo”, Néle interfere delicadamente sobre a cidade, trocando a rigidez e a imponência dos monumentos oficiais pela fluidez efêmera de seus pequenos homens de gelo, que derretem rapidamente frente aos olhos dos observadores, fazendo-nos pensar na efemeridade e no transcorrer da vida.

Corpo e morte são temas recorrentes no trabalho da artista mexicana Teresa Margolles. Como funcionária do instituto médico legal na cidade do México, Margolles tem acesso à água com que se lavam cadáveres, material que utiliza para a realização de suas instalações. Em uma exposição na Alemanha, Margolles ocupa todo o museu com trabalhos relacionados à água. Na primeira sala o espectador encontra um espaço totalmente vazio e vê apenas belas bolhas de sabão produzidas por uma máquina. As bolhas sobrevoam levemente o espaço, às vezes estourando sobre o corpo dos passantes. Apenas ao final o visitante é informado que aquelas bolhas foram produzidas com a água com que se lavaram cadáveres. Em outro ambiente o ar é tomado pelo vapor produzido com a mesma água. O visitante pode também sentar-se inadvertidamente sobre bancos de cimento em cuja confecção a água dos cadáveres foi misturada. A exposição também inclui um vídeo no qual se vê a lavagem dos corpos realizadas no instituto médico legal.

A mesma estratégia de lavagem é utilizada pela artista brasileira Síssi Fonseca, porém em um contexto totalmente diferente. Desde 2003 a artista vem realizando uma série de lavagens em diferentes locais, nas quais utiliza seu próprio corpo como se fosse um pano de chão para lavar os espaços expositivos. Por meio de uma aprofundada pesquisa gestual a artista interage com objetos, com o público e com a arquitetura dos locais, utilizando vários baldes com água. Ao esfregar-se intensamente no chão e nas paredes, Síssi Fonseca limpa as sujeiras reais e metafóricas de galerias, centros culturais e outras instituições artísticas. Suas ações fazem alusões poéticas ao tradicional trabalho cotidiano feminino e ao trabalho de faxineiros e empregadas domésticas – todos estes trabalhos desvalorizados pela sociedade. A água ganha aqui um caráter de purificação e renovação espiritual.

Em todos estes trabalhos, a fluidez, a flutuação, o escorrimento, a forma informe e outras características e processos fenomenológicos da água tornam-se focos de interesse para os artistas, que encontram na matéria líquida um meio de expressão de questões ecológicas, espirituais, sociais, políticas ou puramente formais. Como uma fonte inesgotável de inspiração, a água segue irrigando a criação artística em conteúdos poéticos, potentes e fluidos.