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Eu tenho medo de chuva: desastre natural ou racismo ambiental?

por Pâmela Carvalho

Benjamin Chavis durante um protesto de 1983 contra o despejo de lixo tóxico. Foto de Ricky Stilley.

Eu tinha uns doze anos. Estava passando uma novela de que eu gostava muito, não me esqueço. Estávamos eu, meu irmão e minha irmã – ela, três anos mais velha que eu e ele, com uns cinco anos de idade. Nossos pais estavam retornando do trabalho.

Começou a chover. A chuva começou fininha. Mas depois engrossou. Chuva, vento, raios. Elementos da natureza em seu estado puro. Era muita água que caía do céu. E essa água começou a não escorrer pelos bueiros da Rua Silva Vale. Rapidamente a rua onde eu morava virou um rio. Um rio sem margens. E a água foi tomando todos os espaços. Entre eles, o quintal da minha casa. E depois, a casa por inteiro. 

Quando a água começou a entrar simultaneamente pelo banheiro e pela sala, eu e minha irmã começamos uma maratona de recolher a água com baldes. Foram muitos baldes. Mas não havia baldes que dessem conta da força da água que invadia todos os cômodos. Então decidimos parar de lutar contra a natureza. Concentramo-nos em retirar alimentos, documentos e itens domésticos das partes baixas da casa, colocando-os nos lugares mais altos. Eram três crianças dentro de casa e dentro da água. Em um dado momento, eu e minha irmã percebemos que, como a água estava subindo muito, nosso irmão mais novo estava correndo o risco de, em algum momento, ficar submerso. Ali percebemos que, mesmo estando dentro de nossa casa, corríamos risco. Entregamos nosso irmão para nossa avó, que morava no mesmo terreno, em uma casa mais alta. E retornamos para tentar salvar mais algumas coisas. Nossos pais ficaram presos dentro do ônibus uma vez que a cidade do Rio de Janeiro entrou em estado de calamidade. Muitas horas depois, eles chegaram. Passamos a madrugada e os dias seguintes lavando os cômodos, jogando parte de nossos brinquedos, comidas, itens pessoais e afetos no lixo. E tentando calcular o estrago.

Este episódio me marcou. Ele ocupa um espaço especial nas gavetas de minha memória. Antes dele, eu já tinha passado por algumas experiências desafiadoras com relação à água. Mas essa me colocou de frente para a possibilidade concreta de perder muita coisa. Inclusive a vida de pessoas muito queridas. Depois disso me tornei uma adolescente e posteriormente uma adulta que tem muito medo de chuva. Onde quer que eu esteja, se vejo o tempo nublar, me arrepio de medo. Automaticamente as gavetas de minha memória se abrem e saem delas aquela criança dentro da água vendo seus brinquedos boiando e tentando se acalmar pensando “o jornal diz que isso é um desastre natural”.

Já adulta, morando em uma casa no terceiro andar, tive a sensação de segurança com relação à chuva, pelo menos quando eu estivesse em minha residência. Porém, num dia de tempestade, a água começou a entrar pela telha da cozinha. Entre pegar baldes, potes e panos de chão, a criança de doze anos pulou novamente da gaveta da memória, com todo o seu medo de chuva. Novamente para acalmá-la pensei “Isso é um desastre natural.”

Cresci. Comecei a observar que, enquanto a água invadia a minha casa pelo quintal ou pelo teto, outras pessoas continuavam tendo seus lares secos e bem cuidados. Percebi também que, enquanto morros, encostas e favelas desmoronavam em épocas de chuva, as áreas consideradas nobres da minha cidade em sua grande parte mantinham-se intactas mesmo após os temporais. Percebi que não era todo mundo que tinha medo de chuva. Percebi que talvez os desastres naturais não sejam tão naturais assim.

As perspectivas eurocêntricas de mundo e sociedade separaram homem de natureza colocando o primeiro como superior. Ele deveria dominar a natureza e colocá-la a seu serviço. Isso cria uma série de convulsões socioambientais que trazem severas consequências.

Observando esse quadro em contexto global, o ativista pelos direitos civis das populações negras nos Estados Unidos, Benjamin Chavis, lança mão do termo “racismo ambiental” em 1981, num contexto de observação das relações entre áreas de despejo de resíduos tóxicos com locais majoritariamente ocupados por pessoas negras estadunidenses. 

Em 1993, é publicado o livro “Confronting environmental racism: voices from the grassroots” (“Confrontando o racismo ambiental: vozes do movimento de base”), organizado por Robert D. Bullard, intelectual afroamericano que cunhou o termo justiça ambiental. No livro, Chavis define racismo ambiental como:

“Discriminação racial na elaboração das políticas ambientais, aplicação e regulação de leis, o ataque deliberado às comunidades de cor por meio de instalações de resíduos tóxicos, a sanção oficial de venenos e poluentes cuja presença causa risco de vida para nossas comunidades e a história da exclusão de pessoas de cor da liderança dos movimentos ecologistas.”

De modo global, podemos estranhar algumas questões que são colocadas como norma. Os países do norte do globo terrestre, historicamente tecem relações desiguais com os países do hemisfério sul. Exploração de mão de obra, despejo de resíduos tóxicos, exploração desmedida de recursos naturais, falta de paridade nos espaços de tomada de decisão são algumas das questões que pautam as relações ambientais no âmbito global entre países do norte e do sul. Isto não é natural. É fruto de uma lógica colonial baseada em racismo, desigualdade e escravidão, que se reproduz até o tempo presente.

Quando falamos de Brasil, as relações não são muito diferentes. Concentração de poder e de renda, falta de escuta com a natureza, exploração da vida e mão de obra de populações negras, indígenas, faveladas, ribeirinhas e periferizadas marcam políticas de injustiça e racismo ambiental. Quando a ganância e o racismo se chocam com os limites de uma natureza explorada até sua última gota, emerge o termo “desastre natural” para justificar tragédias anunciadas como as de Mariana e Brumadinho. 

No livro “Os Indígenas e as Justiças no Mundo Ibero-Americano (Sécs. XIV – XIX)”, o intelectual Ailton Krenak contribui com o artigo “O insustentável abraço do progresso ou era uma vez uma floresta no Rio Doce” (2019) e expõe de forma aprofundada as relações de desigualdade ambiental:

“Para maior segurança, ainda difundiram, por todos os meios, que esta região era ocupada pelos bravos e arredios Botocudos, descritos como temíveis canibais. Assim foi justificada a guerra que moveu a Coroa portuguesa contra os povos que formavam a nação dos Botocudos, guerra justa decretada por D. João VI quando chegou com a corte para se estabelecer no Rio de Janeiro em 1808. A vida destes povos nunca mais foi a mesma com a implantação de quartéis nos afluentes do dos rios Doce, São Mateus e Jequitinhonha, formando aldeamentos e postos de controle da movimentação dos índios, que mesmo nas matas eram perseguidos e arregimentados para o trabalho forçado nas novas colônias que avançavam sobre a região.”

A disseminação de ideias racistas sobre populações nativas e negras se perpetua nos dias atuais, sendo utilizada para justificar expropriação de terras e genocídio. Quando olhamos para os números das já citadas tragédias brasileiras percebemos que em 2015, 84,5% das vítimas do rompimento da barragem em Mariana (MG) eram negras. Além das mortes imediatas, a empresa Samarco ainda foi responsável por poluir os rios com rejeitos da mineração e intoxicar peixes e diversos animais do ecossistema com lama tóxica. O povo indígena Krenak da região, bem como a população ribeirinha sentem os impactos do desastre até hoje.

Em 2019, na ocasião do rompimento da Barragem de Brumadinho (MG) 58,8% dos 259 mortos e 70,3% dos 11 desaparecidos também eram pessoas não brancas. A ação, de responsabilidade da Vale, até hoje impacta a população local, em especial o povo Pataxó. A injustiça ambiental nos retira formas de subsistência e nos deixa marcas que resistem ao tempo. Um aspecto fulcral do racismo ambiental é a prevalência do lucro em detrimento da vida. Em especial, de vidas não brancas.

Os episódios narrados por mim no início deste texto ocorreram em casas situadas em favelas, ou bairros periferizados. A casa da Rua Silva Vale (Cavalcanti, Rio de Janeiro) fica às margens de um rio, que foi transformado em valão. Construiu-se uma linha de trem nas margens, aterrou-se grande parte e acreditou-se que o poder público não precisaria fazer um acompanhamento contínuo do fluxo de águas, esgotos e desenvolvimento populacional do território. Rio é vida. Água é vida. E vidas precisam ser cuidadas. A água que entrava na minha casa era a água da chuva, mas era também a água do rio que foi forçado a caber em um lugar que não comportava sua imensidão. Como cantam as rappers Tasha e Tracie, “água não se dobra, ela desliza.”

O relato da água que entra pelo teto também é fruto da falta de investimento em saneamento e moradia digna para moradores e moradoras de favela. O censo de 2010 mostra que das 616.814 casas em favelas do Rio de Janeiro, 78% estariam ligadas à rede geral de esgoto ou águas pluviais; 91% à rede geral de distribuição de água e 96% aos serviços de limpeza. Porém, além de termos um hiato de dados por conta dos boicotes à pesquisa nos últimos anos no Brasil, a realidade mostra que esses dados robustos não condizem totalmente com a realidade das favelas e periferias. O fluxo de esgoto não consiste em apenas “dar a descarga” e se livrar dos dejetos, por mais que essa seja a compreensão do senso comum e que se reflete no censo. O fluxo de água e de esgoto vai muito além disso, e o que vemos nas favelas é que muitas residências ainda não têm acesso a uma rede completa de esgoto, uma vez que esse é muitas vezes despejado em locais inadequados, como valas, rios, fossas, lagos ou mar. O racismo ambiental cria uma esfera de desinformação e pouca acessibilidade aos mecanismos de poder e incidência, ao redor de pessoas não brancas e empobrecidas.

Rio, apelidado de Valão no Parque União (Conjunto de Favelas da Maré – Rio de Janeiro). Acervo pessoal.
Rio, apelidado de Valão no Parque União (Conjunto de Favelas da Maré – Rio de Janeiro). Acervo pessoal.

Por fim, a meu ver, um dos aspectos mais cruéis do racismo ambiental: a sensação de morte ao ter contato com um elemento que, em sua essência, simboliza a vida – a água. Algumas correntes teóricas acreditam que os primeiros sinais de vida em nosso planeta surgiram na água. Enquanto seres humanos, desenvolvemo-nos no período de gestação dentro do ventre da mãe, imersos em água. Mesmo fora do ventre, mais de 70% do corpo humano se mantém sendo água. Em diversas religiões, a água representa o nascimento do indivíduo dentro daquele grupo e cosmogonia. Desde os primeiros vestígios de história da humanidade, água é sinônimo de vida. Que um dia possamos superar as barreiras físicas e subjetivas construídas pelo racismo cultural, reconectar-nos de forma honesta com a natureza e que, em nossas gavetas da memória, possamos perder o medo da chuva.