Sobre sereias & águas
Em 2018, escrevi o artigo Sereias: do mito à realidade a convite de duas organizações asiáticas das quais a Acqua Mater é parceira desde 2017: o “ADEX”, ou Asian Dive Expo, baseado em Cingapura, e a Mermaid Federation International (MFI), uma escola profissional de sereias com sede em Hong Kong. Ambos desenvolvem atividades por toda a Ásia e incentivam o engajamento de seus públicos em múltiplas causas de conservação marinha.
O artigo, que foi capa da revista Scuba Diver, tem ampla referência às sereias asiáticas, porque foi publicada na Ásia e porque se encontram menos informações sobre elas do que sobre sereias do mundo ocidental.
Quando os editores da Amarello souberam desse artigo, convidaram-me para resumi-lo para esta publicação, somando referências ao universo das sereias no Brasil. Portanto, após esse primeiro texto, o leitor encontrará outro, Iara e Iemanjá: “Mães d’Água” do Brasil, que conta brevemente como elas nasceram e se consolidaram no imaginário popular brasileiro.
Ambos contêm pistas que ajudam os curiosos a mergulhar no labiríntico universo de encantados, entidades, espíritos, mitos, divindades, lendas ou superstições aquáticas que habitam nosso planeta. Notem como algumas histórias parecem se sobrepor. E é muito difícil, na maioria dos casos, indicar a origem exata de cada criatura aquática que aparece nas várias culturas do mundo. Ainda que haja arquétipos que se repitam, os seres que os incorporam são como máscaras ou personagens que vão se fundindo e se transformando de acordo com o contexto histórico, social e cultural que os acolhe ou gera. E somamos aqui as inúmeras interpretações pessoais de cada um que viu essas criaturas, ou delas ouviu falar, num telefone sem fio capaz de criar povos inteiros.
Nem todas as bibliotecas, cinemas ou museus do mundo conseguiriam abrigar todos esses seres. Nem a internet pode dar conta de tudo isso, porque nossa imaginação não se deixa aprisionar.
E você? Acredita em sereias?
Sereias: do mito à realidade
Por que, há tantos séculos, as sereias despertam imenso fascínio no ser humano, independentemente das tradições culturais às quais pertencem? Por que nos sentimos atraídos por essas criaturas aquáticas? Por que buscamos saber de onde elas vêm, quem são, o que querem de nós? Por que desejamos vê-las e, eventualmente, segui-las? Por que gostaríamos de nadar como elas lá no fundo do mar?
O chamado das águas
Não há mitologia ou religião no mundo que não conte histórias sobre a origem da vida na Terra. Na maioria das vezes, há referências ao “oceano primordial”, ambiente no qual nasceram as primeiras formas de vida, e à água, como apontam as simbologias que transbordam das mais variadas narrativas. Com isso, não é de se espantar que, entre as muitas figuras mitológicas ou provenientes de folclores e lendas, a sereia seja uma das que mais despertam curiosidade e atração. É como se ela pudesse nos levar de volta ao passado, colocando-nos em contato com nossas origens. Mesmo que de forma inconsciente, todos nós temos uma forte ligação com as águas. Afinal, nascemos na água: como espécie e como indivíduo – basta pensar nos meses em que ficamos mergulhados no útero aquoso do ventre de nossas mães.
Sim, todos nós já fomos sereias e tritões um dia!
Sirenas e Sereias
Sereias (Mermaids) e Sirenas (Sirens) não são a mesma criatura, embora muitos usem ambos os termos para indicar o mesmo ser.
A etimologia de Sirena (Siren) é incerta. Alguns estudiosos afirmam que a palavra vem do grego seirína, relacionada a seirá, que significa corda, atar, ligar. Daí o sentido de alguém que enlaça, que prende. No caso das sirenas, isso acontece por meio de seu canto mágico.
Na mitologia grega, as Sirenas eram três ninfas servidoras de Perséfone, que foi raptada por Hades. Deméter transformou-as em seres alados, metade mulher e metade pássaro, para que pudessem localizar sua filha mais facilmente. Como não a encontraram, Deméter não retirou o feitiço. Elas acabaram habitando a Ilha de Antemoessa e atraindo, com seu canto sedutor, os marinheiros que por lá passavam, fazendo-os naufragar e morrer. Por isso, diz-se que espalhavam morte e destruição. São figuras da mitologia grega que não devem ser confundidas com as Hárpias, devido à semelhança física entre as duas, como aconteceu na época helenístico-romana. As Sirenas são citadas na Odisséia, de Homero, e no mito de Jasão e os Argonautas, mas não são descritas fisicamente nessas obras. Parece que o público da época as conhecia por meio de outras narrativas míticas, onde eram descritas como seres metade mulher e metade pássaro, como surgem em certas obras de arte vasculares.
Na arte grega antiga, eram representadas como pássaros, inclusive pelo lindo canto. Tinham grandes cabeças femininas, penas, pés e pernas com escamas de aves. Depois, viraram figuras femininas com pernas de pássaros, com ou sem asas, tocando vários instrumentos musicais, como as harpas. Em alguns casos, eram representadas com barba, como seres masculinos.
A palavra Sereia deriva do grego seiren. Mermaid vem do inglês antigo mere (sea) + maid (jovem mulher). São lendárias criaturas aquáticas que aparecem, desde a antiguidade, em diferentes tradições folclóricas e mitológicas do mundo, normalmente representadas como seres metade mulher e metade peixe. Podem ser confundidas com as Nereidas da mitologia grega, ninfas ou divindades aquáticas que também podem ter o corpo metade mulher e metade peixe, além de cavalgar golfinhos. Por isso, alguns estudiosos afirmam que foram elas que deram origem às sereias.
Hoje, quando se fala em sereia, pensamos logo numa mulher bonita, de cabelos longos, seios fartos e comportamento sensual. A cauda de peixe – ou de um cetáceo – finaliza a imagem sedutora dessa criatura que convidaria os humanos a atravessarem o espelho d’água e a deixarem-se levar por seu lindo e doce canto.
Como a história não se desenha de forma matemática, em algum momento, na literatura, ambas as figuras se fundiram na mesma criatura. E foi essa fusão que permitiu que suas histórias, com suas inúmeras variantes, durassem ao longo dos séculos. Ainda hoje, Sirenas e Sereias são confundidas ao seduzirem marinheiros com seu canto. Mas enquanto a Sirena é uma criatura alada vista como traiçoeira e perigosa, a Sereia é um ser aquático atraente e encantador, embora também possa provocar mortes.
Atargatis: a primeira sereia
A mitologia e a cultura mesopotâmica estão cheias de seres antropomórficos, representados em relevos, histórias e moedas. São os primeiros registros de criaturas que tinham características humanas e de peixes, como o deus da água sumério Enki, que passou a ser conhecido como Ea na Babilônia e que, mais tarde, foi chamado de Oannes pelos gregos. Era um ser humano anfíbio retratado das mais diversas maneiras.
No entanto, a figura que mais nos interessa é Atagartis, a Deusa Sereia. Sua figura anfíbia parece surgir por volta de 1000 a.C. e possui diferentes representações: peixe da cintura para baixo e mulher da cintura para cima; corpo de peixe com cabeça de mulher; corpo de mulher com a cauda de peixe. Deusa protetora e da fertilidade, possuía diferentes santuários em sua homenagem, construídos com piscinas repletas de carpas, peixe considerado sagrado.
Para alguns, Atargatis é a continuação de outras deusas da Idade do Bronze, como Atirat, Anat, e Attart, conhecida pelos fenícios como Ashtart.
Atargatis (ou Ataratheh) é um nome aramaico pronunciado de várias maneiras. Primeiro, foi cultuada no norte da Síria, depois, em todo o país e na Mesopotâmia setentrional. Ganhou notoriedade na Grécia, onde chegou no final do século IV a.C. e foi chamada de Derketo ou Derceto. Os comerciantes sírios, que carregavam suas estatuetas para trazer sorte, acabaram por popularizá-la. Tornou-se importante em todo o Império Romano, passando a ser conhecida como a Deusa Síria, inclusive no Egito.
Com o tempo, certas divindades de cultos e mitologias independentes se fundiram. Atargatis foi confundida com outras deusas, como Afrodite. Foi então chamada de Deusa da Natureza e da Fertilidade, assumindo os aspectos da proteção que a água exercita.
Sereias após o século IV
Figuras de “sereias” iam aparecendo em obras de arte do mundo todo com diferentes características.
No Ocidente, a figura anfíbia ganha força contra a figura alada grega, consequência da substituição das crenças pagãs pelo Cristianismo, que enxerga essas criaturas sedutoras como perigosas e amorais, comparando-as até a prostitutas. Se fossem criaturas aladas, estariam muito perto de Deus. Então perdem suas asas, saem do paraíso celeste e são lançadas às águas, ganhando sua cauda de peixe.
Mas continuamos a ver figuras híbridas que misturam Sirenas e Sereias:
A partir do século XVI, as sereias passam a ser representadas segurando um pente e um espelho, indicando sua natureza vaidosa e sedutora. O espelho era considerado um objeto mágico atribuído a uma mulher impura, pois era útil para que contemplassem a face da morte, ou para adorar o diabo.
Mas é após o século XIX que a figura da sereia volta com força total, principalmente após a publicação do conto A Pequena Sereia, de Hans Christian Andersen, em 1837. Em 1891, Oscar Wilde publica livro O Pescador e sua Alma, sobre um pescador que se apaixona pela sereia que pescou.
Em 1947, o Weeki Wachee Springs Park, da Flórida, EUA, faz seu primeiro show de sereias: um balé sincronizado apresentado num teatro submerso. Após 1950, chegam turistas do mundo todo para ver suas sereias, que também fazem fotografias e filmagens subaquáticas. Em 1960, as japonesas vão lá para aprenderem a ser sereias. Os shows são um sucesso até hoje.
Mas é em 1984 que as sereias ganham força na cultura de massa internacional com o lançamento do filme Splash: uma sereia em minha vida. Em 1989, a Walt Disney lança o filme A Pequena Sereia, baseado no conto de Andersen. A partir daí, surgem outros livros e filmes sobre elas, no Ocidente e no Oriente. Escolas e shows de sereia crescem particularmente em todo o continente asiático, onde chamam atenção para o lixo nos mares.
Sereias na Ásia
Figuras aquáticas também aparecem em mitologias e lendas asiáticas: algumas vezes, representadas como as sereias ocidentais, outras, como seres monstruosos e assustadores.
Japão
O Japão possui um ser híbrido metade humano e metade peixe chamado Ningyo, com dedos longos, garras afiadas, escamas douradas, cabeças deformadas, chifres e dentes grandes. Sua aparência é demoníaca, e não sedutora. Suas lágrimas transformam-se em pérolas e sua carne, quando consumida, traz a juventude eterna a quem a ingeriu. Também pode cantar lindamente.
Esses seres inspiraram a confecção de esqueletos e criaturas mumificadas que pareciam restos mortais de sereias de verdade, pois não se notavam as junções entre as partes. Essas “sereias japonesas” eram apresentadas em “circos dos horrores” (freak shows) do século XIX, principalmente nos EUA e na Inglaterra. O público, já habituado com a “noiva sereia” do conto de Andersen, ficava horrorizado ao ver uma criatura cuja parte inferior do corpo era de um peixe e a parte superior tinha a cabeça e o torso de um macaco.
Índia
Lá encontramos Matsya, o avatar de Vishnu da mitologia hindu, que pode ser visto saindo da boca de um peixe ou ser descrito como metade homem e metade peixe. Não é uma criatura anfíbia como as semidivindades Naga ou Nagini, seres antropomórficos metade homem e metade serpente (ou metade dragão) que representam o “espírito da água”. Os Naga costumam ser descritos como demônios, e as Nagini como figuras sensuais, associadas à água, à fertilidade e à proteção, como as sereias ocidentais.
China
As sereias são mencionadas em algumas obras chinesas, como no Shan Hai Jing, uma compilação de geografia e mitologia chinesas do século IV a.C., que menciona vários tipos de sereia. Podiam ter quatro pés e emitir um som semelhante ao de um bebê chorando, ou ressuscitar após a morte. Um livro escrito na Dinastia Ming (1368–1644), Sou Shen Ji, refere-se a sereias que eram excelentes artesãs que confeccionavam tecidos que nunca se molhavam. Sereias hermafroditas com pele negra, cabelos amarelos, olhos humanos, asas vermelhas e mãos e pés palmados são mencionadas no Hai Cuo Tu, livro escrito pelo biólogo Nie Huang da dinastia Qing (1644-1911). Podiam ser representadas como figuras solitárias e trágicas que sofriam ao se sacrificarem por amor. Suas lágrimas também se transformavam em pérolas.
Malásia
As sereias da Malásia, ou “Senhoras do Mar”, são chamadas de Duyung, de onde deriva a palavra dugongo, os mamíferos marinhos da ordem Sirenia que vivem na região do Indo-Pacífico. Há desenhos de dugongos gravados na Caverna Gua Tambum que provavelmente foram feitos entre 2.000 e 5.000 anos atrás. Há quem diga que inspiraram contos de marinheiros sobre sereias e sirenas, devido à sua importância cultural e às características físicas que têm em comum.
Indonésia
As sereias indonésias são chamadas de putri duyung (putri: princesa). Muitos indonésios acreditam numa lenda que fala do poder de cura das lágrimas das sereias. Por isso, criaram o milagroso “óleo de sereia”, feito com lágrimas de dugongo coletadas em condições ritualísticas que, supostamente, ajuda as pessoas a se apaixonarem. Tanto a mitologia malasiana quanto à indonésia afirmam que “suas sereias” têm origem na deusa assíria Atagartis, que deixou a Síria chorando após sofrer por amor. Os indonésios afirmam que ela nadou até o país deles, os malaios acreditam que ela tenha nadado até o seu.
Tailândia
Podemos encontrar Suvannamaccha, a “Sereia Dourada”, na versão tailandesa do Ramayana – peça famosa na literatura indiana. Filha do rei dos demônios Tosakanth, ou Ravana, essa “princesa-sereia” se apaixona por Hanuman, um dos personagens centrais do épico. É provável que seu personagem tenha inspirado o poeta Sunthorn Phu, que criou outra “Sereia Dourada” para seu livro Phra Aphai Mani, muito popular no país desde o século XIX. É uma figura muito popular do folclore tailandês, tanto que se encontram estátuas de sereias douradas sobre casas, lojas e até em praias da região.
Filipinas
Dependendo do contexto e do lugar, as sereias filipinas são chamadas de magindara, sirena ou engkanto (do espanhol “sirena” e “encanto”). São aparições sobrenaturais ou espíritos ambientais míticos que podem aparecer sob a forma humana. Os Engkanto são um dos Bantay Tubig, os guardiões míticos da água, semelhantes às belas sereias ocidentais, embora descritos como cruéis com os humanos. Há também os assustadores siyokoy, com fendas branquiais, pele e pernas escamosas, e pés palmados como se fossem a cauda de um peixe.
Sereias Vivas & Meio Ambiente
Inspiradas nos mitos e lendas das sereias e estimuladas pelo crescimento do mercado, muitas artistas e mergulhadoras se tornam “sereias profissionais”, participando de fotos e filmagens e se apresentando em shows subaquáticos realizados em aquários, piscinas e cassinos.
Em diversos “Festivais do Oceano”, como os do ADEX, participam de competições e mesas-redondas, tornam-se “Embaixadoras do Mar” e se engajam em ações voltadas à Conservação e à Sustentabilidade do Oceano. O mermaiding, ou o sereísmo, cresce internacionalmente, como profissão e como hobby, sendo praticado, inclusive, por crianças.
Iara & Iemanjá: as “mães d’água”do Brasil
O imaginário popular de nosso país é povoado de sereias, sobretudo como as conhecemos no Ocidente a partir da Idade Média. O universo das religiões afro-brasileiras também abriga uma grande variedade delas, mas aqui focaremos nas duas mais conhecidas: Iara, que em tupi significa “senhora das águas”, e Iemanjá, que em yorubá é “a mãe cujos filhos são peixes”.
Não existe uma explicação única sobre como apareceram por aqui, embora os estudiosos associem Iara a mitos de origem europeia e Iemanjá a mitologias de raiz africana.
Segundo Câmara Cascudo, em seu livro Geografia dos Mitos Brasileiros, antes da colonização portuguesa não havia aqui nenhuma lenda que remetesse a uma sereia ou algo parecido. E, apesar de cronistas e viajantes terem documentado, após o século XVII, diversos mitos indígenas que indicavam as “mães de todas as coisas”, uma figura como a “Mãe d’Água” – como a conhecemos hoje – só surgiu no século XVII.
Alguns dos seres que integravam o ciclo dos mitos da água indígenas eram: o Boto, que se transforma em homem ao sair da água para atrair e engravidar mulheres; a Boiuna, uma cobra preta gigantesca que vive no fundo de rios e mangues, mas pode adquirir outras formas; o Ipupiara, um monstro marinho, inimigo de índios e pescadores, que vira embarcações, afoga e mata, mas que também era representado como um homem-peixe na mitologia dos tupis que habitavam o litoral brasileiro. Há muitas variantes para cada uma dessas figuras. Diz-se, inclusive, que a Boiuna e o Ipupiara às vezes se fundem um com o outro.
Iara
Ele também acreditava que, ao adentrar a floresta amazônica, os portugueses teriam amalgamado essas criaturas da cultura indígena brasileira, sobretudo o Ipupiara, às “sereias” de seu imaginário, uma mistura das criaturas aladas gregas com as “mouras encantadas”: espíritos ou entidades fantásticas dos folclores português e galego, representadas por jovens e lindas donzelas sedutoras que apareciam cantando e penteando seus longos cabelos junto a nascentes, fontes, rios, poços ou cavernas, enquanto guardavam tesouros escondidos ou passagens para o interior da terra – o que teria favorecido o nascimento da Iara.
Há também outra versão: ela pode resultar da fusão das mesmas “sereias portuguesas” com a Boiuna, que às vezes era representada por uma mulher bonita que seduzia pescadores e ribeirinhos atraindo-os para o fundo das águas, umas vezes totalmente nua, outras, tendo metade do seu corpo na forma de um boto, ou até mesmo de um sapo.
Iara é mais conhecida na região norte do Brasil. Reza a lenda que era uma guerreira, filha de um pajé, que teria sido lançada por ele entre o Rio Negro e o Solimões após matar seus irmãos, que antes a tentaram matar. Salva pelos peixes, foi transformada em sereia numa noite de lua cheia.
Considerando a transmissão oral das muitas lendas e superstições indígenas, cada uma ganha muitas versões. Mas, curiosamente, as lendas da Iara não se diferenciam muito entre si.
E foi assim que sereias europeias, que antes habitavam os mares, passam a ocupar fundos e beiras de rios amazônicos.
Iemanjá
Embora seja amplamente conhecida em nosso país como a “Rainha do Mar”, Iemanjá começa a ser cultuada na África, entre Nigéria e Benin, como deidade da água doce. Ainda que fosse filha de Olokun, Rei do Oceano, não era vista como deusa do mar, e muito menos como sereia!
Inicialmente, as divindades iorubás eram figuras abstratas, reconhecidas por meio de máscaras, danças e objetos que levavam consigo. Só depois se tornam figuras antropomórficas, representadas através dos sacerdotes que elas possuíam.
Seu culto cresce, e ela passa a ser celebrada como “Grande Mãe Ancestral” em diversas cidades yorubás. Símbolo de fertilidade e da água, torna-se referência para temas de gravidez ou ligados ao trabalho nas lavouras que beiram os rios.
Chega ao Brasil através da diáspora africana, que favorece a fusão de saberes e tradições de povos distantes naquele continente. Mitologias ligadas aos orixás são recriadas, inclusive devido à transmissão oral das histórias. Iemanjá passa a ser, primeiro, uma deusa de todas as águas, depois, protetora de quem trabalha com o mar ou vive perto dele.
Entre 1920 e 1924, pescadores baianos da Praia do Rio Vermelho, de Salvador, oferecem perfume e flores à “Mãe d’Água”, pedindo mais peixe em suas redes. Uma oferenda pontual se torna um verdadeiro ritual do candomblé que entra para o calendário festivo da cidade, ocupando o lugar da antiga celebração católica de Sant’Ana. Antes, devido à sua relação com a água doce, era cultuada num manancial da cidade chamado Dique do Tororó, onde acreditavam que ela residisse. Quem também nos confirma isso é Jorge Amado, em seu romance Mar Morto, publicado em 1936.
A forma de sereia parece ter vindo mais ou menos junto da figura da mulher branca que sai das águas do mar vestindo uma túnica azul. Isso se deve ao sincretismo das sereias europeias, indígenas e africanas, assim como à mistura de diversas tradições, lendas e mitos que forjaram a figura que temos hoje em nosso imaginário comum.
Em sua dissertação Deusa, Sereia, Rainha do Mar: representações artísticas de Iemanjá, Suzana Salomão nos conta que um mito de bantos angoleses, posteriormente incorporado pelos iorubanos, faz referência a sereias de mares, rios e lagos. Ela também diz que, segundo Cascudo, “essas entidades locais podem ter sido aculturadas com o mito das sereias mediterrâneas e essa aculturação pode ter sido trazida com os africanos durante a diáspora e contribuído para a associação da imagem de Iemanjá com a imagem da sereia”.
Iara e Iemanjá
Já sabemos que íamos misturando elementos de mitologias, criando novos seres imaginários, fundindo antigos ou favorecendo reencontros entre eles nas espirais do tempo e do espaço. E dentro de nossa própria cultura, na mistura de águas doces e salgadas, Iara às vezes se encontra e se confunde com Iemanjá, principalmente quando as duas são vistas sob a tradicional forma da sereia. Mas, enquanto Iara se admira vendo o próprio reflexo no espelho das águas, Iemanjá se envaidece mirando um espelho que segura nas mãos. Estão inexoravelmente ligadas aos mistérios inacessíveis das águas profundas.
As culturas e os personagens que as habitam são como as águas: deslocam-se, fundem-se, adaptam-se; contornam os obstáculos para não deixar de fluir. Nascem, morrem e renascem. Ganham novos rostos e novos corpos, assumem novas naturezas segundo o contexto em que ressurgem, de acordo com as figuras e as paisagens com os quais se relacionam. Mantêm-se vivos ao se reciclarem, ao reencarnarem em novas geografias e ao ocuparem novos e distantes calendários. Precisam do movimento para continuar a existir.
Entre ninfas, ondinas, náiades, nereides, limnátides, oceânidas e uma vastidão global de sereias e outros seres aquáticos, Iara e Iemanjá nos são próximas: falam nossa língua, maternam e protegem nosso povo, nossos mares e nossos rios. Podem nos inspirar e nos guiar pelas mãos rumo à misteriosa e vasta imensidão das Águas de todas as nossas origens.