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Como nasce uma tragédia? A crise Yanomami e a relação do Brasil com os indígenas

Entre o começo de 2019 e o final de 2022, nessa quadrilogia inacreditavelmente tenebrosa dentro da narrativa brasileira, perseguir os povos originários virou prática comum, um proeminente braço saído de um atarantado projeto de país. Sob as rédeas do governo de Jair Bolsonaro, as maiores atrocidades pró-garimpo se faziam presentes nos noticiários. Com as mentes das autoridades fixadas no mercado e no acúmulo, tomou-se como mera casualidade de guerra a morte gradual de quem aqui estava bem antes de qualquer autoridade administrativa. Mesmo tendo em vista que o Brasil, desde sua colonização, não dá o devido valor aos princípios e aos direitos dos povos indígenas e tradicionais, nunca antes se viu uma política tão abertamente etnocida. Com os números, fica fácil enxergar: durante os quatro anos de mandato, pelo menos 570 crianças Yanomamis morreram de causas evitáveis, o que representa um aumento de 29% em relação aos 4 anos anteriores.

Foto: Alan Azevedo/ISA

É claro que essa necropolítica de Bolsonaro não é nada recente. Ela vem de antes, da época em que o desconhecido Jair era um parlamentar que tartamudeava (certas coisas não mudam) argumentações genocidas, roubadas de ideias reacionárias norte-americanas, desde já babando ovo para o que o país-símbolo do imperialismo tem de pior. Os registros de um pronunciamento seu na Câmara dos Deputados, no final dos anos noventa, chegam a ser aterradores (ao menos o que sobraram deles). Aquele homem, que proferia absurdos — “Os EUA foram bem-sucedidos em dizimar a população indígena” e por isso não sofrem problemas ambientais como os que vivemos na Amazônia —, chegou à presidência da república. O homem que, na mesma ocasião, disse que a população originária dos Estados Unidos “vivem de royalty de cassino” e que deveriam servir de exemplo a nós, aquele homem foi nosso chefe de estado por 4 anos.

A atual tragédia humanitária dos Yanomami, que vivem em centenas de aldeias localizadas na Floresta Amazônica, na fronteira entre Venezuela e Brasil, estava anunciada. E aqui não é necessário se socorrer de uma força de expressão. Em 2019, a UNICEF e parceiros apresentaram dados sobre desnutrição de crianças yanomamis e realizaram ainda um seminário com lideranças indígenas, representantes do poder público e pesquisadores para discutir fatores que levam a esse cenário e alternativas para revertê-lo. Depois disso, os chamados não cessaram, indo das crises desencadeadas pela desassistência em meio ao contexto da Covid-19 e aos suplícios do xamã Davi Kopenawa.

Assim como foi com a lamentável morte do Índio do Buraco, em agosto do ano passado, se os poderes não medem esforços para fazer com que suas pautas valham e deem resultados a custo do extermínio, nem mesmo a maior reserva indígena do Brasil consegue passar incólume. A História fala por si só.

DESCASO HISTÓRICO

Foto: Agência Brasil | Reprodução

Que não se doure a pílula: os povos indígenas sofrem há mais de 500 anos. Desde a chegada dos colonizadores portugueses, tiveram seus direitos surrupiados e, sem qualquer pudor, foram sistematicamente negligenciados. Resgatar essa história mergulhada em tanto sangue e crueldade é imprescindível para entendermos e enfrentarmos o que está acontecendo hoje.

Principalmente entre 1540 a 1570, no começo da colonização, os povos originários não escaparam da mentalidade escravocrata, padecendo nas lavouras e nas mãos dos senhores de engenho. O árduo corte e o transporte do pau-madeira caíam impiedosamente sobre suas costas e, como pagamento, os colonizadores ainda praticavam o escambo, trocando esse trabalho por mercadorias de pouco valor. Por mais incrível que pareça — o triste é constatar que, talvez, isso nem chegue a surpreender tanto —, a mão de obra indígena também era utilizada em larga escala em combates para conter escravos africanos fugidos.

A escravidão indígena foi combatida pela igreja, mas os padres jesuítas, com a missão de catequizar os índios, acabaram contribuindo para uma mudança de hábitos forçada. O diretório de Marquês de Pombal, do século XVIII, visava uma inclusão feita à europeia, passando uma régua própria e fazendo julgamentos: o aldeamento do território indígena sob supervisão de um diretor; uma escola em que era proibido o uso de outro idioma que não o português; sobrenomes obrigatoriamente portugueses; nudez, habitações coletivas e línguas próprias, tudo terminantemente proibido, com direito à punição de morte. No contexto, pode-se considerar que ajudaram — pero no mucho.

Nos séculos seguintes, a exploração e o massacre não deixaram de dar as caras, e seguiram dizimando os povos originários, como conta David Ribeiro, historiador e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP).

“Costumo dizer que o Brasil deu sequência ao genocídio iniciado pelos colonizadores portugueses no século XVI, agindo depois de sua independência da mesma forma colonial de antes, submetendo populações inteiras a uma espécie de homogeneização cultural e social. Ainda que a Constituição de 1934 passasse a tratar dos direitos indígenas, a cidadania destes só veio em 1988 — e destaco como mais importante da atual Constituição o direito à diferença e ao território em sua plenitude.

O governo anti-indígenas de Bolsonaro atualizou em bases ainda mais agressivas a política de destruição promovida durante a última ditadura (1964-1985), pois muitos são os pontos de convergência. Um deles é o recurso constante a ideologias como a chamada integração: ‘cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós’ — como se para serem considerados humanos devessem se comportar da mesma forma que a sociedade não-indígena. Outro é a questão do ‘desenvolvimento’ da Amazônia depender da sua exploração mineral em detrimento do complexo e sensível equilíbrio socioambiental da região, continuamente agredido quando figuras dos povos indígenas e de seus parceiros nacionais e estrangeiros são ameaçados das mais diversas maneiras. Uma leitura dos textos presentes no relatório da CNV [Comissão Nacional da Verdade] exemplifica muito bem o que estou falando.”

DESCASO DOS ÚLTIMOS ANOS

Garimpo na região do Apiaú na Terra Indígena Yanomami

A crise sanitária atual resulta da combinação fatal da invasão garimpeira, desprezo do Governo Federal e casos de corrupção, com desvio de recursos da saúde indígena. A invasão garimpeira causa a contaminação dos rios e degradação da floresta, o que reflete na saúde dos Yanomami, principalmente crianças, que enfrentam a desnutrição por conta do escasseamento dos alimentos.

O relatório Yanomami Sob Ataque, publicado em abril de 2022 pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye’kwana, com assessoria técnica do Instituto Socioambiental, faz um balanço da extração ilegal de ouro e outros minérios da região. O texto aponta, categoricamente: “Sabe-se que o problema do garimpo ilegal não é uma novidade na TIY [Terra Indígena Yanomami]. Entretanto, sua escala e intensidade cresceram de maneira impressionante nos últimos cinco anos. Dados do MapBiomas indicam que a partir de 2016 a curva de destruição do garimpo assumiu uma trajetória ascendente e, desde então, tem acumulado taxas cada vez maiores. Nos cálculos da plataforma, de 2016 a 2020 o garimpo na TIY cresceu nada menos que 3.350%.”

A atual Ministra da Saúde, Nísia Trindade, também não mede palavras para falar sobre a essência anti-indígena que tanto pautou as ações do ex-presidente e seus aliados: “O abandono dos Yanomamis era uma política do governo Bolsonaro”. Especificamente sobre a crise vigente, ela diz: “É um quadro muito grave, que vai exigir uma ação interministerial. A fome é a ponta de um iceberg, um terrível indicador, mas a causa não é a fome, e sim o garimpo ilegal, que desestruturou as formas de vida, contaminando os rios e propiciando condições para o aumento dos casos de malária através de escavações onde a água se acumula.”

Diante de tudo isso, a Polícia Federal abriu um inquérito no último dia 26 para apurar os graves indícios de crime de genocídio contra os Yanomami em Roraima. É a primeira vez que um órgão federal do Brasil investiga a histórica crise humanitária contra o povo Yanomami como crime de genocídio. O Código Penal estabelece pena de até 30 anos para os acusados. O Supremo Tribunal Federal afirmou haver indícios de que o governo Jair Bolsonaro descumpriu determinações da Corte e enviou informações adulteradas sobre a situação da população indígena Yanomami. 

As investigações serão conduzidas pela Procuradoria-Geral da República (PGR), Ministério Público Militar, Ministério da Justiça e Segurança Pública e Polícia Federal. Segundo o despacho do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, os órgãos devem apurar “a possível participação de autoridades do governo Jair Bolsonaro na prática, em tese, dos crimes de genocídio, desobediência, quebra de segredo de justiça, e de delitos ambientais relacionados à vida, à saúde e à segurança de diversas comunidades indígenas.”

O objetivo, portanto, é investigar a participação ou a omissão de ex-integrantes do governo federal e os envolvidos em toda a cadeia do garimpo ilegal, incluindo proprietários de equipamentos, garimpeiros, barqueiros, operadores de máquinas e até o piloto do avião que transporta envolvidos e produtos. Especialistas afirmam que, para enquadrar os responsáveis por tal crime, é necessária a comprovação de dolo e não apenas de negligência. O Brasil possui uma lei sobre o genocídio desde 1956, aprovada ainda no governo de Juscelino Kubistchek, que reconhece não apenas a ação direta, mas também a incitação. A lei brasileira, então, também pune aqueles que estimulam “direta e publicamente alguém a cometer qualquer dos crimes” relacionados ao genocídio. 

De acordo com um artigo escrito pelo renomado jurista Lenio Luiz Streck — citado, inclusive, por Gilmar Mendes, ministro e antigo presidente do STF —, a responsabilização penal pelo genocídio Yanomami é válida. 

“Todos conhecemos a lei do genocídio (Lei 2.889/56, com suas alterações) e o Estatuto de Roma, que empregam a expressão ‘intenção’ em sentido genérico. As palavras possuem sentido de acordo com o contexto.” 

“Essa expressão — intenção — tem que ser adequada aos conceitos de dolo do Código Penal, que servem de holding para todas as leis especiais. (…) O dolo direto pode comportar duas espécies: dolo direto de primeiro grau, quando o sujeito atua e dirige sua vontade no sentido do alcançar um objetivo final, e dolo direto de segundo grau, quando o agente atua e dirige sua vontade para realizar um fato que constitui uma circunstância necessária à produção do objetivo final.”

“Depois, porém, da introdução da teoria da imputação objetiva no direito penal, alimentada pelo fundamento do aumento do risco, como proposto por Roxin, alterou-se um pouco a definição do dolo direto de segundo grau, para comportar a atuação do agente, que dirige sua vontade para realizar um fato que encerra uma condição de risco que irá conduzir, com certeza, ao alcance do resultado final.”

“Onde se enquadra, então, a intenção de que trata a lei do genocídio? No assim denominado dolo direto de segundo grau. Isto é, Bolsonaro — e seus coautores — ao permitirem o garimpo, ao deixar de mandar socorro, ao incentivar a invasão e degradação das condições ambientais, dirigiram sua vontade no sentido de realizar condições de risco que certamente levariam o grupo à extinção.”

Ou seja, a quadrilogia inacreditavelmente tenebrosa da narrativa brasileira está longe de acabar, ainda que soe como algo que já ouvimos antes. Torçamos para que os próximos capítulos sejam de justiça e reparação.

No livro A queda do céu: Palavras de um xamã Yanomami, o pajé Yanomami Davi Kopenawa diz “Os brancos não sonham tão longe como nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos.” Fica cada vez mais claro o quanto, na verdade, o ex-presidente, que classificou a denúncia sobre a crise Yanomami como tão somente uma “farsa da esquerda”, estava de olhos bem abertos. O teatro do absurdo protagonizado por ele não dá descanso a ninguém e parece longe de fechar cortina. 

Que possamos, quem sabe um dia, dormir e acordar nos sonhos extensos dos Yanomamis.