Biointeração Contra Colonialista: a renascença afro-pindorâmica que pertence às cosmunidades
“É preciso reflorestar o imaginário”
— Nêgo Bispo
Agô a Exú, para começar e para dar continuidade (meio) peço a bênção dos que estão acordados e aos que ainda dormem, nesta temporalidade física e na cosmológica, porque palavra é Axé e movimenta trajetórias temporais das guardiãs das memórias territorializadas. E começo novamente agradecendo à guiança da minha geração Avó.
Então, o ato primeiro é de apresentar as graças, sou Mona — ribeirinha, filha do coco-babaçu e do Rio Marataoã, pertenço ao território caatinga que conflui com a mata de cocais. E quando digo que sou filha da principal vegetação de minha cosmunidade Tabocas é porque me compõe e faz parte de quem sou e de minha trajetória, desde quando era guardada dentro de um cofo para minha Mãe Maria do Socorro conseguir catar e quebrar coco-babaçu e as galinhas não me carregar, até quando comecei a ir para a escola, que mesmo tendo que estudar pela manhã, antes ia me banhar no rio do meu quintal, meu Rio Marataoã. Rio esse que banha a cidade não só de água, mas que é a principal tecnologia de guarda de memória territorializada que temos, ou como diz Vôinho Nêgo Bispo, é o envolvimento que conecta todas as vidas no território.
Para essa confluência aqui com vocês, gostaria de compartilhar uma cosmossensação vivida, sentida e narrada, escrita ou inscrita em nossa dissertação Os Nêgo da Minervina e a rede do caruá: confluências da memória e a biointeração no Quilombo São João do Jatobazinho/Piauí. Digo nossa, pois não chego só, sou nós, e porque é uma pesquisa orgânica feita junto com Rosilda Maria da Conceição, autonomeada Dona Didi, que é matriarca do quilombo, mestra de ofício contra colonialista, artesã do caruá e guardiã das histórias e saberes de sua geração avó e do território, ela é quem nos guia nessa encruzilhada da memória com a biointeração que é expressa no trançado da rede de caruá, planta catingueira. É também como Vô Bispo, lavradora da terra e das palavras, e rezadeira, espanta qualquer cobra que apareça pelo seu caminho.
Dona Didi, guardiã das sabenças de sua Mãe Minervina, de Vó Marta e de sua Bisavó Rosa, trindade, compartilha a memória matriarcal quilombola-afro-pindorâmica e as sensações que confluenciam no território, a bem dizer a biointeração que Nêgo Bispo tanto fala, ou seja, é o envolvimento, a conexão das trajetórias, quilombolas e o caruá. Uma vez que a comunidade existe e re-existe no território graças ao envolvimento com a artesania do caruá, principal fonte de renda no território. O Quilombo São João do Jatobazinho, assim nomeado pela Fundação Palmares, se autonomeou de “As Minervinas”, nome da matriarca que trouxe ao mundo 17 crianças, uma tendo nascido já se encantando pelo mundo espiritual. Quando seus filhos ou filhas chegavam às comunidades vizinhas para um festejo, jogar bola ou visitar, eram de longe apelidados de “Nêgos da Minervina”, diziam assim “lá vêm os nego da Minervina” como forma de sinalizar aos presentes que eram quilombolas que carregavam a pele cor da noite e que não queriam se misturar com eles, sendo assim, houve uma forte relação de parentesco na formação do quilombo, primos próximos se casaram e ainda hoje existe um índice de cegueira e baixa visão na comunidade.
Olha como em nossa vida realmente não existem coincidências, pois quando fui guiada a ir para o Quilombo São João do Jatobazinho, e chegando lá entendi que ali era As Minervinas, passei a sempre pensar nessa autonomeação. Daí que por esses dias, estava olhando pela janela vendo se o tempo estava bonito de chuva, e me veio à mente um sopro palavreado dizendo assim “teu umbigo, jatobá. Jatobazinho.”, e uma chave virou nesse momento. Pois algo que sempre soube e minha Mãe sempre falou é que meu umbigo tinha sido enterrado embaixo de um pé de jatobá, e não é que eu nunca havia feito essa conexão. É, quando é missão a flecha é certeira, pois também, em uma das viagens para a caatinga, passei na casa de minha Vó Odilia, para ficar uns dias, e conversar é algo que minha família gosta muito, pouco não. Nisso, estou falando com Vovó sobre a pesquisa, sobre a rede e como faz a rede, e ela para e olha para mim e fala “eu também sei fazer rede, nós tínhamos um tear lá em casa”, quase caí da rede nesse momento, olha a confluência aí.
É, pois é, é muita gente mesmo dentro d’agente, e não falo só dos nomeados humanos. Já que a nossa corpa é território, ela se ajunta, mas não se mistura, cabe o físico, o espiritual e os encantados e se duvidar até nossa Mãe a gente já carrega, como Aline Motta fala que carrega em sua escrita performática A água é uma máquina do tempo. Bom, como tudo o que é nosso é girando, é impossível que o nosso pensamento também não seja circular, pelo menos o meu é assim, vou, volto, vem um turbilhão de conversas que querem se amostrar, sabe como é, sou neta afetiva de Nêgo Bispo, meu orientador, e a proposta aqui é confluenciar.
Esse compartilhamento só é possível após o reencontro, já que não acredito em encontros, entre duas afro-pindorâmicas, Dona Didi e nós no verão intenso da caatinga, num riacho entre enormes lajeiros, onde acontece uma das etapas da confluência com o caruá, que é uma planta da caatinga, que não pode ser semeada, plantada somente pelos passarinhos e pela senhora ventania. Só pode ser colhida na época da seca, quando chove menos no semiárido, pois na época da cheia, das chuvaradas no sertão, ela solta uma toxina. Nesse momento me lembro de Dona Didi, quando ela fala sobre a grande seca de 1932 (que inspirou obras como Vidas Secas, de Graciliano Ramos), que foi graças à macambira, considerada como planta venenosa, e o saber de seus mais velhos que sabiam como confluenciar com ela, que sabiam que cozinhando ela em cerca de cinco águas daria para usá-la como alimento. Lembra também o Seu Claúdio, Mestre de defesas contra colonialistas do Quilombo — Território Lagoas, o segundo maior em extensão de Pindorama, sendo o primeiro o Território Kalunga, conectados pelo bioma.
Em uma de nossas confluências, na Lagoa das Emas, em frente à sua, quando o sol esfriou, me disse que quando se lembra de seu Pai, recorda que ele repetia que ele não poderia esquecer o seu Bisavô, que era um “Patavó”, disse que nunca entendia o que significava o nome, mas que quando ele começou a se movimentar pela luta contra a mineração no território conheceu o povo Pataxó, e que nesse momento ele entendeu o que seu Pai falava e que hoje repete no território, para que não se esqueçam dos indígenas do lugar e de que também descendem dos “Patavó”. Ou quando ele fala sobre os saberes de seus mais velhos, que lhe ensinaram o que deveria ou não comer no território, esse é o envolvimento responsável por conectar todos os viventes pertencentes e não moradores, pois a pertença é o autoconhecimento, que é a sabedoria, do que também conhecemos por “saber entrar e saber sair”, saber quando está bonito de chuva ou quando os vizinhos peixes estão aumentando sua família, ou quando as águas vão dar peixe ou quando ela naquele dia vai estar de resguardo. Pensar nessa perspectiva me lembra meu Avô Chibanca, pindorâmico, que já se encantou, pescador que fez muito compartilhamento de peixes por farinha, ou de cofo por rede de pesca, repassou esse ofício a seu filho, meu Tio Mandioca, que inclusive em uma madrugada de pesca foi avisado pelo Rio Marataoã que o Vovô tinha se encantado.
Pertencer ao território é ter conexão cosmológica, como quando Beatriz Nascimento fala que o quilombo é território espiritual e existencial (1975). Nisso retorno à circularidade da lembrança, pois gostaria que refletissem sobre como a existência do caruá na caatinga possibilita a existência das Minervinas, do Quilombo São João do Jatobazinho.
Como fazer a guarda da memória pela biointeração?
Bom, após a colheita do caruá, ele terá os espinhos de suas folhas raspados, e terá que ficar de molho no riacho por três dias, e quando retirado da água será torcido e batido com um pedaço de jucá, uma planta bem forte da caatinga, usada para feitura de cercas e até usada como ferramenta de autodefesa. A última etapa para deixar a fibra no ponto para a artesania é estirar a fibra da folha do caruá em uns tocos para ficar por cerca de três dias no sol. Após essas etapas a fibra é trabalhada para a artesania da rede. Para que a rede esteja pronta, demora cerca de quinze dias, nisso o trabalho é coletivo, não tem como fazer sozinho, e enquanto os dedos trabalham para encantar a fibra em uma rede, a melhor rede do sertão, Dona Didi fica por perto contando as histórias, suas e de sua Mãe, e de sua Vó e de sua Bisavó, e quem ouviu, ouve de novo, quem não ouviu, ouve, e nesse envolvimento, nessa biointeração é performada a guarda da memória na artesania da rede, ou melhor, da colheita que semeia envolvimento com o território.
As Mestras e Mestres de defesas contra colonialistas afro-pindorâmicos, como Dona Didi, Mestre Claudio, Mestre Krenak, Mestre Kopenawa e Mestre Nêgo Bispo, entre outros lavradores das palavras-sementes nos convidam a reflorestar nossos imaginários.
Nêgo Bispo nos sinaliza que o ataque às comunidades tradicionais e povos originários é um ataque que mira os modos de vida, o envolvimento com os viventes, a confluência que acontece entre rios, gente humana, gente bichos, gente plantas. Quando nos apresenta suas ideias sobre envolvimento e desenvolvimento, nos aponta que enquanto um tem a ver com o “ser” o outro é alinhado ao “ter”. Ainda segundo ele,
Enquanto a sociedade se faz com os iguais, a comunidade se faz com os diversos. Nós somos os diversais, os cosmológicos, os naturais, os orgânicos. Não somos humanistas, os humanistas são as pessoas que transformam a natureza em dinheiro, em carro do ano. Todos somos cosmos, menos os humanos. Eu não sou humano, eu sou quilombola. Sou lavrador, pescador, sou um ente do cosmos. Os humanos são eurocristãos monoteístas. Eles têm medo do cosmos. A cosmofobia é a grande doença da humanidade. (Antônio Bispo dos Santos, 2023).
O imaginário construído e principalmente reforçado cotidianamente sobre a caatinga, cerrado, sertão, sobre o nordeste, sobre os povos, é uma imagem de pobreza, de falta e ausência. Nem sequer pisaram o ser-tão sagrado e já o nomeiam, isso nos confirma como a guerra das narrativas é presente, afinal é através dela que se justifica a necessidade do desenvolvimento, semelhante ao que justifica a nossa ida para a escola “para ser alguém na vida”.
O desenvolvimento é colonialista, é a promoção da desconexão, como nos diz Nêgo Bispo, desconexão com o território, desconexão com os demais viventes do lugar existencial e espiritual. É um discurso que tem como foco a destruição de seres, de mundos em prol da existência de um só mundo, o do monoteísta, monista e linear. Já o envolvimento, o pertencimento, é conexão, é legado, é ancestralidade, possibilidade de coexistências de vidas pluralistas, politeístas e circulares, né, Vô.
Notas:
1. Biointeração”, “contra colonialismo” e “afro-pindorâmica” são termos cunhados por Antônio Bispo dos Santos no livro Colonização, Quilombos: modos e significações.