Uma experiência coronária da filosofia africana: amor, futuro e ancestralidade
A filósofa Katiúscia Ribeiro é a editora convidada da edição Futuro Ancestral.
“A espiritualidade, a vida espiritual nos dá força para amar”
— bell hooks
Amar sempre permeou o sentido primeiro da nossa existência. Em uma sociedade alicerçada pelo desamor, amar passou a ser o antídoto primordial para a manutenção da vida e para a promoção de um futuro vivo. Em Vivendo de amor, a escritora ancestral bell hooks sinaliza que as violências coloniais impactaram diretamente os povos africanos na diáspora, fazendo uma contenção do amor, construindo um modelo de humanidade moldado no não amor, para que se violentas sem e assim pudessem ser dominados. A epígrafe acima da autora é contundente e diz muito sobre as questões apresentadas ao longo desta conversa escrita. Ao afirmar que a espiritualidade “dá força para amar”, me atrevo a dizer que a extensão dessa força nos ajuda a seguir, a viver, a recriar e a modelar o futuro.
Amar é um sentido vivo nas filosofias africanas, pois está ligado à maneira como essas filosofias estão vivas em nossas vidas, correndo em nosso sangue, seguindo os ritmos compassados do coração. Para entender essas duas dimensões, do amor e das filosofias africanas, que são inerentes uma à outra, é preciso sentir. Sentir o soar do som que vem do coração, esse elemento sensorial que nos conecta com nossa maneira de perceber a realidade presente. É preciso sentir as águas que banham nossos espíritos, a terra que fertiliza nossas histórias, é preciso mergulhar no todo e sentir-se parte dele. Nesse sentido, a filosofia se conecta simbioticamente com a ancestralidade, sendo um exercício que começa na alma e se expande. Assim, para essa filosofia, é preciso abandonar a ideia restritiva da cosmovisão e assumir integralmente a agência[1] africana e a “cosmossensação”, um fazer filosófico que a partir dos sentidos traz à tona a necessidade de resgatar e valorizar o conhecimento ancestral africano como uma fonte de sabedoria e inspiração para a construção de um futuro sustentável e humano.
A filosofia africana possui elementos para uma “reontologização”[2] a partir do paradigma centrado no poder das narrativas cosmológicas e em suas complementaridades. Compreender esse paradigma passa pelo reconhecimento de que a relação harmônica entre os elementos são da ordem de “uma relação científica, uma ciência inteira de integração e harmonização da existência material da Terra com a existência humana, garantindo a saúde a longo prazo de ambas” (NEUSI, 2019, p. 4).
Nessa orientação cosmológica, o Ser se relaciona no interior do universo de uma forma íntima, tendo uma concepção de ser humano em sua totalidade física, espiritual e metafísica. A compreensão de qualquer fenômeno deve passar pela totalidade, por um todo organizado de acordo com “os ciclos da vida e os ritmos circulares da natureza” (MONTEIRO-FERREIRA, 2014, p. 177), o universo em perfeita harmonia e cuja manutenção é o próprio sentido da existência. Além disso, a totalidade implicada na cosmogonia africana é uma totalidade espiritual, e isso significa que existir é viver como um ser espiritual. Há, portanto, uma relação intrínseca de espelhamento entre a ordenação cósmica e o ser humano em suas relações sociais, de modo que a realidade material é entendida como uma manifestação espiritual, uma relação ancestral.
A ancestralidade aparece, nas realidades africanas, como um agente de reconhecimento e construção da realidade a partir do seu caráter de conexão. Uma base que sedimenta os modos culturais, que forma indispensavelmente os sistemas de valores e é a espinha dorsal de todos os elementos: culturais, sociais, educacionais etc. Essa noção ancestral, compreendida filosoficamente desta forma, corporifica e configura quem somos enquanto unidade, por isso pensar o futuro a partir das filosofias africanas desde os tempos imemoriais pode ser um caminho possível para repensar as relações da humanidade.
Esta edição apresenta um percurso alicerçado nas filosofias africanas e em cada texto exibido será possível perceber isso. Esta curadoria se responsabilizou por apresentar outras e novas noções de realidade e propostas de mundo que rompem com os muros do absolutismo ocidental. O absoluto é essa verdade inquestionável, esse saber imposto e incontestável, uma razão irrefreável à qual se supõe que devemos nos submeter. Entretanto, cabe a nós, estudiosos, pensadores e sociedade como um todo desenvolver a capacidade de questionar esses sistemas de verdade e estruturas sólidas e intransigentes de saberes na busca por novos horizontes.
Assim, as filosofias africanas, a partir da herança ancestral, são fundamentadas na ideia de que a vida humana está intrinsecamente ligada à vida dos antepassados e nela há respostas, exemplos, modelos, estruturas, epistemologias e caminhos para pensar e construir o futuro. Os ancestrais são seres espirituais que continuam a influenciar e guiar a vida dos vivos, transmitindo conhecimentos, valores e princípios que são essenciais para a sobrevivência e o bem-estar da comunidade, eles são filósofos além do espaço-tempo. Essa percepção de mundo valoriza a conexão entre passado, presente e futuro, reconhecendo a importância de honrar e preservar a memória dos antepassados como forma de fortalecer a identidade cultural e promover a coesão social.
Na incerteza do futuro, temos uma base sólida e muito bem estruturada no passado das filosofias africanas, ressaltando a importância de reconhecer e valorizar a diversidade cultural africana, entendendo que elas possuem um vasto repertório de saberes e práticas que podem contribuir para a resolução dos desafios contemporâneos.
Uma das principais contribuições para a construção de um futuro mais justo e igualitário está na valorização da comunidade e do coletivo. Ao contrário da visão individualista predominante na sociedade ocidental, que visa a noção de TER, temos nesse saber a noção do SER, enfatizando a importância do cuidado mútuo, da solidariedade e da cooperação como princípios fundamentais para nos conectar de volta à natureza e não mais tratá-la como o diferente. Mais do que a convivência harmoniosa entre os seres humanos e a natureza, é preciso reconectar a humanidade à natureza, nos colocar como parte dela.
No Brasil podemos tomar como exemplo a Filosofia Quilombista, apresentada por Abdias Nascimento, ou o pensamento contracolonial baseado nos saberes quilombolas do Mestre Nêgo Bispo, ambos presentes nesta edição. Essa perspectiva coletiva é essencial para enfrentar os desafios globais, como as desigualdades sociais, a degradação ambiental e a violência estrutural. Temos nos quilombos brasileiros um exemplo vivo, como reforça a Dra. em Filosofias Africanas Lorena Silva Oliveira: “O conceito quilombismo tornou-se uma ideia-força para o povo negro brasileiro, pois esses territórios são a maior referência de agência política, manutenção e valoração à vida, à ancestralidade e à liberdade”.
Outro aspecto relevante é a valorização da espiritualidade e da conexão com a natureza. Para os povos africanos, a natureza é vista como um ser vivo e sagrado, com o qual os seres humanos, mesmo sendo parte dela, devem estabelecer uma relação de respeito, cuidado e harmonia. Essa visão holística da vida é fundamental para repensar a forma como nos relacionamos com a terra e seus múltiplos ecossistemas. A urgência da sustentabilidade, no marco temporal do ocidente, não é uma questão nova aos povos africanos e originários, por isso podemos nos espelhar nesses povos, que em suas espiritualidades entendem a natureza como fonte, origem da vida.
Um dos aspectos mais importantes das casas de Àṣẹ no Brasil é a não dicotomia entre Ser/Universo, Humano/Natureza, relações de mutualidade que interligam todos os seres vivos, recompõem e promovem uma rede de colaboração entre todos. É no todo harmônico e equilibrado que ações de mulheres e homens, que concebem a natureza como elo de sabedoria, conhecimento e vida, transformam o presente e modelam o futuro. Esse conceito vivo do cosmos, presente nos terreiros de candomblé, é uma herança ancestral que compreende o universo como algo em sua totalidade quando está integrado também pelo espiritual.
Ancestralizar o futuro implica, portanto, em reconhecer a importância do passado na construção do presente e do futuro, valorizando a diversidade cultural africana, promovendo a solidariedade e o cuidado mútuo, estabelecendo uma relação de respeito e harmonia com a natureza e questionando os padrões de pensamento eurocêntricos. Essa abordagem pode ser uma fonte de inspiração e orientação para enfrentar os desafios contemporâneos e construir uma sociedade mais justa, igualitária e sustentável. Por isso, cada texto desta linda edição é um convite de um vir a ser!
Uma das formas de colocar em prática as filosofias africanas da ancestralidade é por meio da valorização e promoção da cultura africana. Isso envolve o reconhecimento da importância das tradições, rituais, danças, músicas e línguas africanas como expressões culturais valiosas que devem ser preservadas e celebradas. Além disso, é fundamental garantir a inclusão e a participação ativa das comunidades africanas na construção das políticas públicas e na tomada de decisões que afetam suas vidas.
Outro aspecto importante é a educação, também em destaque nesta edição. É necessário incluir nos currículos escolares o estudo das filosofias africanas da ancestralidade, para que as gerações futuras possam conhecer e valorizar as riquezas dos conhecimentos ancestrais africanos. Além disso, é fundamental promover a diversidade cultural nas escolas, garantindo a representatividade e o respeito às diferentes culturas e tradições, como sinaliza o mestre João Paulo Ignacio nesta edição em um potente texto que nos convida a uma travessia de saber, educar e ancestralizar.
A promoção da justiça social também é um elemento central nas filosofias africanas da ancestralidade, encontrados em Maat[3], a figura de uma deusa negra, com um dos seus joelhos no chão, os braços abertos e uma pena de avestruz em sua cabeça, como coroa. Mas essa é apenas uma imagem alegórica que não define a complexidade de Maat[4], que, de princípio tão complexo e integrativo, não é possível traduzir em uma só palavra, mas sim em três: verdade, justiça e harmonia. Assim, na ancestralidade encontramos um modelo ético de uma justiça integrativa. Isso implica dizer que em combater as desigualdades sociais, econômicas e raciais, garantindo o acesso igualitário a recursos e oportunidades para todos os membros da sociedade. Além disso, é necessário enfrentar as estruturas de poder e os sistemas de opressão que perpetuam a marginalização e a discriminação das comunidades africanas e afrodescendentes.
Por fim, é importante ressaltar que pensar um futuro a partir das filosofias africanas da ancestralidade não significa ignorar ou rejeitar os avanços da ciência e da tecnologia ocidentais. Pelo contrário, trata-se de integrar diferentes formas de conhecimento, a partir de um paradigma pluriversal, reconhecendo a validade e a complementaridade de diferentes perspectivas. É necessário buscar um diálogo intercultural e interdisciplinar, que permita a troca de saberes e a construção conjunta de soluções para os desafios contemporâneos.
Em suma, pensar um futuro na ancestralidade é reconhecer a importância do passado na construção do presente e do futuro, valorizando a diversidade cultural africana, promovendo a solidariedade e o cuidado mútuo, estabelecendo uma relação de respeito e harmonia com a natureza e questionando os padrões de pensamento eurocêntricos. Essa abordagem pode ser uma fonte de inspiração e orientação para enfrentar os desafios contemporâneos e construir uma sociedade mais justa, igualitária e sustentável.
Ancestralidade, enquanto princípio filosófico, é de ordem coronária sair do campo da materialidade racional e pensar com o coração, sentir com o coração e analisar a vida pulsante, que possibilita se reconhecer e continuar um legado que nasce a todo tempo e se mantém vivo no pulsar de nossa existência materializada em diversas ações e oralituras. Assim, aceite o convite com que a Revista Amarello lhe presenteia neste momento para refletir nossos rumos e sentidos de viver. Porque como sinalizei em outro texto há algum tempo: “Pensar a ancestralidade não está em compreender qual o sentido da vida, a partir de texto complexo e termos difíceis, está em viver em movimento com a vida, este eterno vir a ser, é uma roda, sem fim, porque o futuro é ancestral”.
Notas:
[1] A agência é a capacidade de dispor dos recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço da liberdade humana (…) estou fundamentalmente comprometido com a noção de que os africanos devem ser vistos como agentes em termos econômicos, culturais, políticos e sociais. O que se pode analisar
em qualquer discurso intelectual é se os africanos são agentes fortes ou fracos, mas não deve haver dúvida de que essa agência existe. Quando ela não existe, temos a condição da marginalidade — e sua pior forma é ser marginal na própria história (…) Os africanos têm sido negados no sistema
de dominação racial branco. Não se trata apenas de marginalização, mas de obliteração de sua presença, seu significado, suas atividades e sua imagem. É uma realidade negada, a destruição da personalidade espiritual e material da pessoa africana (ASANTE, 2008, p. 94). –
[2] Conceito apresentado pelo Me. e Teólogo Jayro Pereira, propondo uma reformulação no sentido de Ser a partir dos saberes ancorados nos saberes africanos.
[3] Maat é reconhecida como Ntr (Neteru), força simbólica feminina que organiza os princípios de justiça, retidão, equilíbrio, harmonia e reciprocidade; divindade suprema que governa a realidade e, para além da realidade, força motriz que organiza o universo. Suas 42 provisões são a base do Shetaut Neter, ciência espiritual da África antiga alicerçada nas leis físicas e naturais, responsável pela manutenção das ordens cósmica e social. Maat é filha de Rá, e estava ao seu lado no barco celeste quando emergiu das águas matriciais ao lado das demais neterus, sendo também conhecida como “o olho de Rá”. (Ribeiro, Katiúscia. Tese de doutorado. UFRJ 2022).
[4] A deusa Maat, usando uma alta pena de avestruz em sua cabeça como seu símbolo, era chamada de filha de Rá, ou o olho de Rá. Ela também era conhecida como dama dos céus, rainha da terra, senhora do submundo e amante de todos os deuses. Cenas rituais retratam reis egípcios apresentando uma estatueta de Maat aos deuses como um dom supremo. (OBENGA,2017, p. 24)
Bibliografia:
ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: Notas sobre uma posição disciplinar. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin. (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009a, p. 93-110.
HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
MONTEIRO, Ana Maria. Da Ontologia à Antropologia de Mata: A Dimensão Metafísica e Ética da Alma. 2014. Gaudium Sciendi, Número 6, 2014
NEUSI, Kimani. “Humanity and the Environment in Afrika: Environmentalism before
the Environmentalists” in M. Muchie, P. Lukhele-Olorunju and O. Akpor (eds.) The African Union Ten Years After: Solving African
OBENGA, Théophile. Egypt: Ancient History of African Philosophy. In: WIREDU, Kwasi (Org.). A Companion to African Philosophy. Massachusetts: Blackwell Publishing, 2004. p. 31-49.