Amarello Visita: Aromaria
Fotos de Tomás Biagi Carvalho
Os aromas são donos de uma fantasmagoria que sussurra segredos antigos e desperta os mais profundos desejos. Mas não pense naqueles fantasmas, pense naquela força maior que perpassa corpos para arrepiar toda e qualquer percepção. Não é à toa que entrar em uma perfumaria é estar em contato com os mistérios da história e da sexualidade humana. Desde os tempos mais remotos, os aromas têm sido aliados na busca pelo prazer e pela sedução, tecendo uma teia de sensações que envolvem os sentidos e a imaginação. Em uma manifestação quase corpórea, também há neles um inigualável poder de expressão própria, algo capaz de eriçar os pelos da nuca de qualquer um. Nessas ondas que circundam a aura, é inegável que existe uma lufada palpável de identidade e intimidade — daí a fantasmagoria.
Há milênios, os povos antigos descobriram os poderes mágicos dos aromas, utilizando-os em cerimônias religiosas, rituais de cura e, claro, encontros amorosos. Egípcios, gregos e romanos dedicavam oferendas aos deuses do perfume, acreditando que essas fragrâncias celestiais podiam atrair bênçãos divinas e despertar a paixão em corações mortais. A missão dos alquimistas e herboristas era extrair os segredos das plantas e transformá-los em elixires preciosos. Com a chegada da Idade Média, os perfumes assumiram o status de luxos extravagantes, reservados à nobreza e à alta sociedade. Na sedução aloucada das cortes, os mestres perfumistas trabalhavam para que os amantes trocassem presentes perfumados e se entregassem a jogos de amor e desejo.
Com o Renascimento, porém, o interesse pela ciência e pela filosofia despertou uma nova era, com alquimistas e herboristas se dedicando a estudar as propriedades medicinais das plantas e a arte da destilação. E, depois, no século XVIII, a perfumaria viveu uma revolução com o surgimento da indústria do perfume: Grã-Bretanha, França e Itália se tornaram os principais centros de produção e comércio de perfumes, exportando fragrâncias exóticas para todo o mundo. No século XX, tornou-se uma indústria global, com fragrâncias icônicas que marcaram épocas e definiram tendências.
Por mais que cada era tenha sua própria linguagem olfativa, que reflete os valores, as emoções e os desejos de sua época, o fator sedução parece sempre estar presente.
Eis, então, que chegamos ao século XXI e, nesta nossa era, temos algo que nem os renascentistas tinham: um oásis da perfumaria botânica chamado Aromaria. Fundada por Maria Cintra, ela honra as tradições antigas enquanto abraça a inovação e a criatividade. É a celebração da natureza, da arte e da sensualidade que faltava aos palácios de outrora. Com ingredientes cuidadosamente selecionados e técnicas ancestrais de destilação, Maria cria fragrâncias que capturam a essência da natureza em sua forma mais pura e sublime (o que, por si só, já é um grande afrodisíaco).
Em um mundo cada vez mais dominado pela tecnologia e pela artificialidade, as expressões naturais de sensualidade e sexualidade são cada vez mais prementes. Imagine uma vida que cabe em uma respiração profunda. Ou, então, tente materializar uma vida sem o distanciamento das redes sociais, sem as barreiras da comunicação remota, sem a falsa proximidade da vida digital. Que alívio, não? Há certa liberdade em saber que, para sentir um aroma, é preciso estar perto.
E a Aromaria é isso, um convite à liberdade de se estar perto.
Na conversa a seguir, Maria Cintra, além de nos contar mais sobre sua Aromaria, nos ajuda a refletir sobre a interseção dos aromas e da sensualidade.
Como você entrou no mundo da perfumaria e o que a inspirou a começar com a Aromaria, com essa proposta mais natural?
Maria Cintra — Desde bebê, sempre tive um nariz curioso. Me encantavam os cheiros, mesmo antes de pronunciar minhas primeiras palavras. Cresci como uma criança observadora, atenta aos aromas que permeavam o mundo ao meu redor, fossem eles envolventes ou desagradáveis. Durante meu período de estudos em design de moda, percebi o excesso de objetos que nos cercam e ansiava por criar algo mais íntimo, algo que pudesse refletir nossa identidade de forma mais profunda e transformadora. Foi assim que surgiu a ideia da Aromaria, que inicialmente era uma marca de cosméticos naturais, mas foi na criação dos perfumes que encontrei minha verdadeira paixão. Foi nesse momento que a perfumaria entrou de forma definitiva na minha vida. Fomos acelerados pel’O Boticário e viramos uma empresa de perfumaria com atenção à perfumaria botânica.
Qual é a importância dos aromas em sua vida pessoal, e como isso influenciou sua jornada?
MC — Os aromas são verdadeiras portas de entrada para minhas sensações mais profundas. Cada uma das minhas memórias está impregnada de cheiros distintos — desde meu primeiro dia na escola até os pratos que mais aprecio, passando por lugares marcantes que visitei. Quando viajo, faço questão de levar comigo um perfume específico, buscando deixar uma lembrança marcante associada ao olfato. Essa espécie de biblioteca de aromas que construí ao longo dos anos se tornou uma ferramenta essencial em minha jornada como perfumista. Ela me auxilia a memorizar matérias-primas, a identificar uma essência em meio a outras e a visualizar como essas fragrâncias podem se combinar para criar o perfume que idealizei.
Sobre o processo de criação desses “perfumes vivos” da Aromaria, como selecionar os ingredientes para suas fragrâncias e quais critérios são mais importantes nesse processo? O que vem antes, a combinação perfeita ou questões de sustentabilidade?
MC: Os perfumes da Aromaria têm vida própria, pois suas moléculas se revelam e se entrelaçam ao longo do uso. Para criar um perfume, é necessário construir uma pirâmide olfativa. As notas de topo, como as cítricas e aromáticas, são as mais voláteis. As do meio persistem por mais tempo, conferindo identidade ao perfume, com nuances florais e algumas folhas. E as notas de base ancoram o perfume, prolongando sua duração, com elementos como resinas e madeiras.
Primeiro, surgem as preocupações com a sustentabilidade. Todas as matérias-primas que utilizo passam pela avaliação do IFRA [International Fragrance Association], e sempre examino minuciosamente o processo de produção delas. Nem sempre a opção por ingredientes naturais é sustentável, pois pode acarretar problemas ambientais. Na Aromaria, valorizamos tanto as comunidades envolvidas na produção quanto os biomas afetados. Com essa ampla variedade de matérias-primas, vêm as combinações. Algumas ideias podem surgir espontaneamente, enquanto outras se revelam após várias tentativas. Às vezes, um perfume nasce de um acidente, quando misturo diferentes ingredientes. Tem perfume que vem de uma saudade, de um lugar que eu visitei, de uma história que eu ouvi.
De que jeito você acredita que os aromas podem despertar emoções e memórias em uma pessoa?
MC: Os cheiros são processados pelo nosso sistema límbico, responsável pelas emoções e pelas memórias. Ao contrário dos outros sentidos, eles não passam pelo córtex cerebral, que é a parte racional do cérebro. Para se ter uma ideia da potência do olfato, conseguimos nos lembrar de 35% do que cheiramos, enquanto só lembramos de 1% do que tocamos e 5% do que vimos.
E você acredita que é possível associar os aromas à sensualidade e ao erotismo?
MC: Com certeza! Estamos falando do nosso sentido mais instintivo. Nos perfumamos como um ritual para nós que se estende ao outro. O ser humano cria seus artifícios de acasalamento, e o perfume é o mais importante deles.
Há uma relação entre os aromas e a intimidade pessoal? Seja com nós mesmos ou com as pessoas com as quais nos relacionamos.
MC: Se perfumar é como abrir a porta para o íntimo, né? Cada pele possui sua singularidade, e quando o perfume se entrelaça, cria uma nuance que é exclusivamente nossa. Reconhecemos afinidades através do aroma, percebendo se aquela pessoa é compatível conosco ou não. É por isso que temos a expressão “isso não me cheira bem”.
Certos aromas podem mesmo ter um efeito afrodisíaco nas pessoas?
MC: Sim! O cacau, por exemplo, tem uma substância chamada teobromina, que eleva um pouco a pressão arterial, é um estimulante natural. Existem aromas tão afrodisíacos que já foram proibidos, como a tuberosa, nossa angélica. Seu floral narcótico fez moças solteiras serem impedidas de caminhar pelos campos de tuberosa durante o Renascimento italiano.
Então os aromas podem ser usados para aumentar a sensualidade e a conexão em um relacionamento?
MC: Existe algo mais poderoso do que o aroma da pessoa amada? Acredito que o simples gesto de sentir o cheiro de quem amamos já fortalece nossa conexão de maneira única. Além disso, momentos como uma massagem com óleos perfumados ou banhos aromáticos também são excelentes maneiras de enriquecer essa ligação especial.
Sempre me perguntei o que atrai mais as pessoas em um perfume —aquele aroma faz com que elas se sintam elas mesmas ou as distancia de quem elas são? Como você enxerga o papel dos aromas na expressão de nossa identidade pessoal? E na nossa sexualidade também.
MC: A escolha de um perfume revela muito bem o nosso ânimo ou o que queremos ser. Os cítricos, por exemplo, são solares, falam de alegria e leveza. Já os gourmand são sensuais e opulentos. Você pode brincar com nuances de personalidade e também com as temperaturas. Em um dia ensolarado, um banho de uma colônia aromática ou cítrica; em um dia frio, algumas gotas de um amadeirado ou gourmand. Há aromas que combinam com sexo. Por que gostamos tanto de flores? As flores carregam seus órgãos sexuais. Em um perfume, colocamos alguns cheiros animalescos, até escatológicos, que lembram o mais íntimo humano. É um jogo de atração.
Um perfume pode ser uma forma de explorar, ou até expressar, fantasias eróticas?
MC: Com certeza. Onde você passa um perfume diz muito sobre onde você quer ser cheirado.
Como você vê o futuro da perfumaria botânica no contexto da crescente conscientização sobre sustentabilidade e bem-estar pessoal?
MC: Eu vejo como uma descoberta que só vai crescer. Acho que as flores de amanhã nascerão mais perfumadas, parafraseando Manoel de Barros. Essa frase me inspira para explicar a importância e a potência da perfumaria botânica como uma forma de cultivar as plantas da Terra e garantir nossa sobrevivência. É um jeito de cuidar não só de si, mas do todo.
E, no meio disso, qual é o amanhã para a Aromaria?
MC: O amanhã é crescer nossa produção respeitando os limites da natureza e valorizando nossos parceiros que fazem a extração e que cuidam das etapas finais dos nossos produtos, da feitura até a venda. Queremos mostrar o poder da perfumaria brasileira ao mundo, mostrar que o cheiro das plantas faz floresta dentro de nós.