A minha liberdade chora acima de você ou entre nós (2017-2022).
#48EróticaArtes Visuais

Lia D. Castro: A cumplicidade refletida

Há um homem deitado no sofá, de costas para o espectador. Há outro homem deitado no sofá — ou seria o mesmo?— sobre o colo de uma mulher, cujas roupas são feitas de pintura e esparadrapos. A mesma cena íntima se repete algumas vezes, num interior geométrico feito de azuis e verdes. Ela lê um livro. Às vezes ele também lê. Há um abajur. Dentro de algumas pinturas, outras pinturas, como um caleidoscópio.

Alexander, da série Axs Nossxs Filhxs (2021).

Por meio da repetição — de gestos, cenas, personagens e cores —, a artista Lia D Castro deixa evidente a dimensão reflexiva das pinturas e dos encontros que elas representam, tanto no sentido de espelhamento quanto no de contemplação e pensamento. Em uma delas, há a citação de bell hooks: “O amor é uma combinação de cuidado, compromisso, conhecimento, responsabilidade, respeito e confiança”, que acompanha as bordas da parede. Talvez todos os trabalhos de Castro estejam ancorados no amor. Não o amor burguês, que muitas vezes se confunde com exploração de gênero, mas aquele definido por hooks em Tudo sobre o amor, que é também “um espaço de despertar crítico e de dor” que é ativo, colaborativo e cúmplice — no processo da pintura ou da fotografia, nos encontros e nas trocas sociais, afetivas, financeiras, criativas e criadoras.

da série Seus filhos também praticam (2021).
A Travessia do Rubicão (sem data)

Além de artista, Castro é também intelectual, educadora e trabalhadora sexual, entre muitas outras coisas. Os retratos são de seus amantes e clientes, com os quais estabelece uma relação de intimidade e compromisso. Leem juntos. E ela nos convida a adentrar as cenas, como se fôssemos cúmplices daquele momento tranquilo, que em nada lembra o estigma social que recai sobre corpos e corpas dissidentes e sobre trabalhadores/as sexuais.

A Travessia do Rubicão (sem data)
A Travessia do Rubicão (2022).
Davi da série Axs Nossxs Filhxs (2021).

Talvez as obras sejam o inverso de uma sociedade estruturada por hierarquias sociais, raciais, territoriais e de gênero, ou representem o desejo de desmantelar esse “contrato” profundamente violento. É como se restituíssem a humanidade de sujeitos socialmente indesejáveis, repelidos, invisibilizados e mortos. Nas obras de Castro, vemos pessoas atravessadas por histórias e afetos, gente que gosta de descansar, de perder-se em pensamentos e devaneios, de estar perto de objetos bonitos, amigos, amores.

Dito de outra forma, as obras de Lia D Castro são um convite à criação de existências e histórias íntimas, à partilha de um lugar de afeto com as pessoas representadas, à empatia de também sentir vontade de desfrutar um momento de descanso, pausa e preguiça. Talvez elas funcionem como um espelho: nos implicando naquelas histórias como testemunhas de uma série de relações que a sociedade insiste em silenciar. Já não há inocência; as obras nos ensinaram sobre o amor.

da série Axs Nossxs Filhxs (2023).

— Os trechos acima fazem parte do texto originalmente escrito para a exposição da artista na Galeria Jaqueline Martins, entre fevereiro e março de 2023.