O gato da insônia e a saudade dos sonhos
Para meu professor
Wagner Cafagni Borja,
com gratidão
À noite, todos os gatos são pardos. E a fera que nos visita na escuridão da madrugada é perigosa, insiste em nos rodear. O gato da insônia afia suas garras numa bandeja de prata, onde moram nossos maiores medos. A fome do felino, na escuridão, é tamanha que ele devora nosso corpo, cansado, moído. E quanto mais tentamos fugir, mais longa se torna a noite. Na madrugada, nosso desamparo mia na imensidão noturna. De dia, o bichano é manso, domável; os medos diminuem de tamanho quando o sol teima em raiar, as memórias esfriam, sem qualquer vestígio de terror.
Lembro como se fosse hoje. Celebrávamos o fim do colegial, às vésperas do vestibular, nos despedíamos daquele local que era uma segunda casa, a escola. O horizonte dos sonhos da vida adulta acenava com a promessa de que nossos desejos seriam realizados, já que estávamos crescidos. Meu professor de história (que outra matéria poderia ser, afinal?) propôs, em sala de aula, uma discussão sobre o capítulo da peste da insônia narrada em Cem anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez. Meu coração despertou para a literatura com esse livro, e nunca mais adormeceu. A narrativa da enfermidade que acomete Macondo, local onde se desenrola a história dos Buendía, tem elementos essenciais para pensarmos sobre o risco de nos afastarmos da vida onírica.
O capítulo começa com a chegada da pequena Rebeca. Logo após ser adotada pela família, ela é encontrada acordada, numa madrugada, na sala, sentada numa cadeira, chupando o dedo com os olhos fluorescentes “como os de um gato na escuridão”. Ela é quem traz o bacilo da insônia ao povoado. Uma enfermidade contagiosa, que condena os doentes a permanecerem num constante estado de vigília.
Num primeiro momento, o patriarca da família Buendía, José Arcadio, diz: “se não dormirmos, melhor, assim nos rende mais a vida”. Por isso, no começo, os habitantes da cidade não se incomodam, pelo contrário, acham que a vigília os tornaria mais produtivos. Começam então a trabalhar sem cessar. A partir daí, passam a viver num constante estado desperto, numa “alucinada lucidez”. Os dias e as noites seguem numa inesgotável produção, mas logo os habitantes se entediam e passam a conversar durante a madrugada, procurando algum esgotamento. Aqueles que sentem saudades dos sonhos propõem uma brincadeira oral sem fim: a história do galo Capão. O jogo consiste em perguntar se os ouvintes haviam pedido pela história do galo Capão, e àqueles que diziam que não era questionado se queriam ouvir a história do galo Capão, e àqueles que diziam que sim, era questionado porque queriam ouvir a história do galo Capão. E assim a brincadeira segue, num ciclo infindável.
Com o passar do tempo, os dias no vilarejo tornam-se uma constante repetição, e tudo passa a ser vivido sem pausa ou pouso. Uma vez que os doentes se acostumam ao estado de vigília, estão condenados ao avanço da enfermidade: o esquecimento. Aos poucos, os nomes de objetos vão perdendo o significado, e, além da insônia, o povo começa a sofrer evasões de memória. Com o decorrer do tempo, etiquetas são colocadas nos objetos para que seus nomes sejam lembrados, assim como suas funções. E o mesmo se dá com os animais, as pessoas e as casas. É preciso colar uma etiqueta na vaca: esta é a vaca, produz leite. E no leite: este é o leite, mistura-se com açúcar e café… E assim por diante. Buscam a preservação da memória. A cartomante, que lia nas cartas o futuro, passa a ler o passado, pois, sem que os habitantes possam sonhar, não há a possibilidade de futuro. Macondo fica condenada à peste do esquecimento.
Resumir a escrita soberana do autor me parece uma heresia. Reescrevo as linhas acima com certo constrangimento. Mas a alegoria nos serve como metáfora e nos ajuda a refletir sobre a importância de sonhar para o nosso aparelho psíquico.
Sonhar e agir
Freud já dizia que nada acontece antes de ser sonhado e que são os sonhos a fonte da imaginação, a via régia do inconsciente. Uma espécie de portal que nos revela algo de nós mesmos que ignoramos. Segundo o neurocientista Sidarta Ribeiro, o sonho é essencial para o ser humano desenvolver a habilidade de fazer planos. A capacidade de imaginar na vigília e executar as coisas tem a ver com o processo onírico, pois as mesmas regiões cerebrais são ativadas.
Na terra dos sonhos, somos livres e realizamos desejos — muitas vezes, inconfessáveis para nós mesmos. Suportamos a realidade porque sonhamos. Quantas vezes o enlutado sente alívio ao sonhar com a pessoa que perdeu?
É no livro A interpretação dos sonhos que Freud descreve o sonho como a realização de um desejo. Porém, nem todo desejo pode ser explícito, e muitas vezes ele se apresenta com certo disfarce.
A censura está baixa quando sonhamos, e temos, assim, um terreno fértil para sentimentos ocultos e fantasias. Mesmo assim, alguns são censurados por nós mesmos — e, para se revelarem, juntam uma série de elementos que criam uma espécie de quebra-cabeça simbólico pessoal, somando vivências e experiências singulares e individuais, com significado único. Em resumo, certas coisas se dão em nossa mente de forma disfarçada ao adormecermos. É como se, dormindo, nossos desejos acordassem no sonho, apresentando-se de forma mascarada. Tal mecanismo é denominado condensação.
Uma amiga, após encontrar o ex-namorado, acorda assustada: havia sonhado com uma múmia que saía do sarcófago, toda empoeirada, e a perseguia. Ao acordar, levou o sonho para a análise e se deu conta: seu inconsciente revelava-lhe o impacto daquele encontro. A múmia que a perseguia era esse sentimento do passado que, pelo sonho, ela percebeu ainda estar vivo dentro dela.
Mas, para cada pessoa, os símbolos que aparecem num sonho têm um significado específico, que só pode ser decifrado pelo próprio sonhador. Mesmo que apareça de maneira torta, dá notícias de algo que, acordado, pode ser muito ameaçador. Por isso, o dicionário de sonhos não deve ser levado muito a sério. Como dito por Freud: o sonho pertence ao sonhador.
Eventos ocorridos durante o dia e que dão formas construtivas aos sonhos são chamados restos mnêmicos. É como se o inconsciente “pescasse” elementos na realidade para trabalhar durante o sonho. Logo, haveria um pensar inconsciente durante o estado de vigília que vai selecionando elementos do dia, levando materiais para a vida onírica.
Existem também os sonhos de repetições traumáticas — uma tentativa do nosso aparelho psíquico de dar conta de um trauma. A pessoa sonha o evento diversas vezes, em busca de elaborar aquilo que foi excessivo. Como se, ao dormir, tentasse acomodar algo extremamente incômodo, revivendo a cena madrugada adentro. Tal ideia é sustentada por Ferenczi — o sonho seria uma tentativa de reparação do trauma.
O psicanalista Thomas Ogden associa a capacidade de sonhar ao crescimento e ao aprendizado com as experiências. A literatura é um lugar de sonho, assim como a arte, que nos tira de um estado zumbi e nos acorda para outros mundos quando a realidade mais parece uma terra árida.
Sonhar acordado também é extremamente importante. Poder fantasiar nos possibilita uma tolerância maior à realidade. A fantasia é um dos veículos pelo qual o desejo pode se apresentar, sem ter que brigar com nosso lado responsável pela censura. É um terreno no qual tudo pode acontecer.
O sonho captura a fluidez do tempo
Há algo precioso no sonho: podemos voltar a ser crianças, encontrar pessoas perdidas, visitar casas que há muito abandonamos. No sonho, temos a percepção da atemporalidade do inconsciente e transitamos na fluidez desse tempo.
Quando perdi minha mãe, sonhei que a colocava boiando numa cachoeira. Dava-lhe um beijo na testa, abria os braços e a entregava para a água. Ela estava de branco, como se estivesse sendo batizada. Quando acordei, entendi. Uma mãe de santo havia me dito certa vez que eu era filha de Oxossi, filha da água doce. Minha mãe agora tinha sido devolvida para a mãe natureza e estava mergulhada dentro de mim para sempre.
Nós nunca vivemos essa memória, mas ela habita em mim, como qualquer experiência que eu tenha vivido na vigília. Foi o final feliz que eu inventei para ela na noite em que foi velada. Um presente que meu inconsciente ofereceu ao meu coração órfão.
O sonho é o antídoto para a peste da insônia, mas também para a peste da saudade, pois através dele podemos reencontrar pessoas perdidas, abraçar-lhes forte e inventar mais uma memória para viver junto. O sonho talvez seja a máquina de memória que José Arcadio Buendía tanto quis fabricar em Cem anos de solidão. Tomara que, nesta noite, meu inconsciente me ofereça um passeio de mãos dadas com ela.