o ponto
quando era pequeno, conversava com um ponto localizado dentro de sua cabeça. era um ponto final. desses que se faz com grafite no papel. lembra especificamente de um momento em que essa conversa aconteceu. um momento que poderia ser muitos, condensados num só local: a última curva da estrada sinuosa que levava à sua casa. conversava com seu ponto ali, onde passava todos os dias, sentado no banco de trás do carro, o trânsito engarrafado, a rua era estreita e o sinal demorado. o ponto era como um amigo. já adulto, contou essa história para uma senhora espalhafatosa na aula de dança. ela lhe disse que com ela também havia se passado algo parecido, mas, no lugar do ponto, ela tinha um rubi no meio do peito. cada um com a figura que merece, pensou; o ponto de grafite parecia combinar mais com sua personalidade franciscana. passados outros anos, ele contou a mesma história a uma amiga. ela lhe perguntou: “você percebeu que esse ponto é o seu supereu? é um ponto final. como esses que os pais dizem para os filhos: ‘não, e ponto final!’, tipo ‘papo encerrado’”. ele lembrou também que os apresentadores de televisão têm “um ponto”, que é a voz do diretor entrando em sua cabeça. fez sentido para ele a observação da amiga. contudo, nunca havia pensado no seu ponto como uma autoridade, muito menos do tipo que diz “não”. ao contrário, conversava sem censuras com o ponto sobre tudo. mas, sim, parecia mesmo ser o supereu freudiano, só que sem subir o tom. era um ponto gentil. o menino negociava com ele sobre o que se podia ou não fazer. o ponto sinalizava: “isso não pode”. o menino respondia: “mas por que não, se não fará mal a ninguém?”. “talvez vá pegar mal pra você”, argumentava o ponto. “mas deixarei de fazer o que tenho vontade de fazer, mesmo que não faça mal a ninguém, porque vai pegar mal?” entre ele e o ponto, muita diplomacia. já adulto, entendeu que podia, mesmo quando proibidas, fazer as coisas a seu modo. não alardeava, porém, a transgressão. inclusive, queria mesmo que não houvesse, nesses casos, proibição alguma. não entendia a frase “proibido é mais gostoso”. queria mesmo era restaurar o jardim após a queda: o reino; o tempo da inocência — desimpedida, erótica, fluida. sem o estigma do mal.
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o ato recolocava o ponto. sua perversão era mansa. a vivia com lassidão. como uma criança, invertia os sinais. o bem do mal: o pomo. ficou lúcido como um louco. amoral. soberano de seu reino, tornou-se um monstro. era pequeno e grande. procurou seus iguais e os encontrou. aqui e ali gozou com eles. não parou, entretanto, de conversar consigo. não havia mais ponto. pontos marcavam o pulso de seu corpo, ritmo que só estancará quando desaparecer de todo. ressonará ainda a lufada de ar quente, gritada, como cristo na cruz, que não guardou ar dentro de si quando morreu. assim, morreu muitas vezes, urrando. o mesmo estrondo de quando irrompeu nu do abismo pré-natal. invertia os sinais. não sabia mais o que era dor e o que era prazer. tudo revirava dentro dele. mas, ainda que não conseguisse falar das coisas como sempre as havia entendido, estava são. ia se tornando, aos olhos dos outros, um adorável, dócil idiota. enterrava os pés no chão. se perdia as palavras não significavam mais nada. som, matéria, cordas vibrando cabeça boca adentro. corria o risco de desaparecer e reaparecer 3,5 bilhões de anos antes naquele líquido sem céu, peixe minúsculo balançando o rabinho na brancura espessa. sem linha do oriente. onde tinham ido parar o homem e seu ponto?
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viu uma bela mulher no monte. senhora, sentada debaixo da copa larga de uma árvore milenar. do alto, ela olhava longe a paisagem. tomada por uma saciedade sexual, não como a de depois do sexo, mas como a de certa vez, quando penetrou a mulher que amava com movimentos mínimos e sentiu sua buceta morna e molhada pulsando e comprimindo seu pau, inchado de sangue, tremendo, na iminência do gozo que não vinha. o claro instante do prazer. não havia repouso, só o cristal do êxtase como máscara em sua cara farta. foi também nesse momento — imagina-se — que ele se tornou a mulher monumental que antônio sobral viu cantando canções de amor no palco daquela espelunca em botafogo. segundo me disse, vestia vermelho resplandecente.
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hoje, quando acordei, não consegui me levantar. meu corpo pesava 700 quilos em queda livre quando se chocou com a terra. atraído pro seu centro, pela primeira vez carreguei o peso dele. meu tronco é grande. é preciso muita força pra levantá-lo. as pernas doem. quero logo parar. com a bochecha colada no chão, a cabeça é minha parte mais pesada. erguê-la pelo pescoço é muito sem jeito. diferente do apoio das panturrilhas e dos calcanhares, que fazem alavanca pro corpo. além disso, a cabeça lateja dentro, variando o peso no ar — multiplicado pela aceleração da gravidade —, dificultando a manobra. assim, é difícil mantê-la erguida e firme. mas aos poucos os músculos vão ficando fortes e se mover se torna leve, muito leve. tenho a sensação de que estou voando. só eu. mas sinto que a qualquer momento posso cair e ter de recomeçar tudo de novo, uma dor dos séculos. aconteceu comigo uma vez. no meio do caminho, eu caí. de novo, me levantei. minhas asas eram pequenas, batiam ligeiras e afobadas pra ninguém me comer. asas de anjo, anjo caído, que sabe pousar no corpo macio do homem, da mulher — mais leves que o ar.