Brasa, série fotográfica de Gleeson Paulino, gentilmente cedida para a edição O Homem: Amarello 15 anos. Todos os direitos reservados.
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Os povos indígenas: a educação indígena como saída para as crises atuais

Os povos indígenas habitam o território brasileiro há milhares de anos e, ao longo desse tempo, desenvolveram uma vasta gama de conhecimentos e tecnologias. Eles realizaram técnicas para fazer cerâmicas, processar e manipular alimentos, esculpir madeira e cultivar plantas, além de desenvolverem as artes de cuidados de saúde e métodos de tratamentos e cura de doenças.

“É importante abordar a questão dos modelos de conhecimento, especialmente o modelo europeu, que historicamente, sob o rótulo da ciência, tem tratado os conhecimentos indígenas como simples objetos de estudo e recursos a serem protegidos.”

Atualmente, de acordo com os dados do Censo Demográfico de 2022, divulgados pelo IBGE, a população indígena no Brasil chegou a 1.737.000 pessoas, o que representa cerca de 0,83% da população total do país.

Embora esses números possam parecer pequenos em termos proporcionais, eles carregam uma importância imensurável para o patrimônio cultural, pois representam uma diversidade cultural imensa, com mais de 305 etnias e mais de 274 línguas diferentes. Sua presença enriquece o patrimônio cultural brasileiro, preservando tradições, línguas, histórias, expressões artísticas, músicas e costumes.

O contato dos povos indígenas com os colonizadores europeus foi marcado por um processo de extrema violência e opressão, resultando em profundas transformações sociais, culturais e demográficas. Desde a chegada, o encontro de dois mundos até então desconhecidos gerou um choque violento, não apenas no sentido físico, mas também na desestruturação das instituições indígenas e nos sistemas de conhecimentos.

Uma das manifestações mais evidentes da violência foi a brutalidade física exercida pelos colonizadores. Os europeus, movidos por interesses econômicos e pela busca de riquezas, recorreram a métodos agressivos para dominar e explorar terras indígenas.

Além disso, os colonizadores trouxeram doenças como a varíola, o sarampo e a gripe, para que os povos indígenas não tivessem imunidade. Estima-se que milhões de indígenas tenham morrido em decorrência dessas epidemias, configurando um dos maiores genocídios da história.

A violência também se manifestou de forma cultural. Os colonizadores, por meio de suas instituições, impuseram suas línguas, suas religiões e seus costumes, desvalorizando e tentando erradicar a vida e jeito de ser indígenas. A catequese, conduzida por missionários europeus, buscava “civilizar” os povos indígenas através da conversão traduzida ao cristianismo. Muitos grupos indígenas foram obrigados a abandonar suas práticas, seus conhecimentos e falar suas línguas.

“Entender o modelo de educação indígena pode ser um caminho. Aqui não custa nada lembrar que os povos indígenas têm seus próprios modos de educação.”

Esse processo deixou um legado de exploração e opressão que ainda ecoa nos dias de hoje, refletido nas lutas contínuas dos povos indígenas por reconhecimento, direitos e justiça. A história desse encontro não deve ser esquecida, pois compreender esses acontecimentos é essencial para considerar e enfrentar as consequências que persistem nas sociedades contemporâneas.

Apesar da extrema violência, os povos indígenas lutaram e continuam a lutar contra a colonização e a opressão. Muitas comunidades indígenas se reorganizaram e adaptaram suas formas de lutas ao longo dos séculos, utilizando desde a fuga para áreas mais remotas até a adoção de estratégias de negociação com os colonizadores.

Nos dias atuais, a luta dos povos indígenas pela vida, pela existência e pelos seus territórios continua sendo uma realidade dura, marcada pela luta contra invasões, desmatamentos, e pela busca incessante por reconhecimento e proteção de seus direitos e culturas, muitas vezes negligenciados ou ameaçados por interesses econômicos, políticas públicas e pelo modelo de conhecimento ocidental, mais conhecido como Ciência.

Vale a pena, aqui, adentrar nessa questão de modelos de conhecimento. Isto é, é importante abordar a questão dos modelos de conhecimento, especialmente o modelo europeu, que historicamente, sob o rótulo da ciência, tem tratado os conhecimentos indígenas como simples objetos de estudo e recursos a serem protegidos. Esse modelo não só se apropriou dos conhecimentos indígenas como base para suas teorias, tecnologias e soluções, mas também fez parte de um contato marcado pela violência colonial.

Apesar de toda política de dominação, os povos indígenas sempre lançaram mão de estratégias próprias para a “sobrevivência”, ora enfrentando fisicamente, ora se rendendo, ora fugindo para lugares remotos. Essas iniciativas garantiram a presença indígena e seus conhecimentos até os dias atuais.

Em todo esse tempo, entende-se que os conhecimentos indígenas foram guardados nos corpos e nas mentes dos detentores de conhecimentos. Atualmente, com a proposta de promover uma relação mais equitativa entre os povos e seus respectivos sistemas de conhecimento, torna-se urgente propor iniciativas que considerem os diferentes modos de conhecimento, ativar e semear os conhecimentos indígenas, com a mesma importância dada ao que é denominado Ciência.

Ativar para semear significa incluir os detentores de conhecimentos indígenas como interlocutores na educação oficial, nos debates mundiais e permitir que eles ativem seus conhecimentos “incubados” e desenvolvam suas próprias teorias, a partir de uma visão “nativa”. Ativar os conhecimentos implica, primeiramente, reconhecer o valor das epistemologias indígenas como fontes legítimas de conhecimento.

Durante séculos, os saberes indígenas foram encarados como arcaicos ou inferiores. No entanto, no mundo de hoje, cada vez mais afetado pelas mudanças, eles podem ajudar a compreender as mudanças e contribuir para tomadas de decisões mais assertivas em vista de um mundo mais equilibrado.

Dessa maneira, entender o modelo de educação indígena pode ser um caminho. Aqui não custa nada lembrar que os povos indígenas têm seus próprios modos de educação. Assim como em qualquer modelo educacional, o processo indígena é fundado na sua dimensão filosófica, envolvendo conhecimentos imateriais, práticas sociais, cuidado da pessoa, cuidado do corpo, cuidado coletivo e tecnologias que são desenvolvidos de acordo com as noções, as concepções, a ética e os valores de cada grupo social.

O processo de educação indígena começa na gestação e se estende até o fim da vida. Desde o nascimento, a proteção coletiva da pessoa é assegurada. Uma criança que acompanha sua mãe e seu pai em atividades domésticas já está sendo educada, cuidada e protegida. Ao estar com pais, avós e irmãos, seja em atividades domésticas ou no roçado, as crianças amadurecem e aprimoram seus conhecimentos sobre as concepções, regras sociais e noções de ética do seu grupo. Existem outras dimensões que fazem parte do processo de educação e constituem o sistema de educação indígena. Aqui, vamos elencar algumas de modo didático.

As crianças, desde cedo, são educadas a desenvolver cuidados com os seres que habitam a terra, a floresta, a água e o espaço aéreo. Desde pequenas, elas são ensinadas a respeitar os seres que vivem em ambientes como cachoeiras, rios, lagos, matas e na própria terra, pois são consideradas responsáveis por cuidar de tudo que existe no território. A falta de cuidado, proteção e respeito a esses seres pode resultar em ataques a elas e às outras pessoas da comunidade. Assim, as crianças são orientadas a respeitar cada lugar e ambiente por onde circulam, garantindo uma qualidade de vida sem doenças e conflitos e assegurando a abundância de recursos necessários. Elas são também educadas para cuidar de seus territórios, da floresta, da terra e da água, para que não falte fartura de alimentos e fertilidade, garantindo, assim, a qualidade de vida coletiva.

O respeito e cuidado com as pessoas também é uma dimensão fundamental da educação indígena. As crianças são ensinadas a respeitar seus pais, avós, tios, irmãos e parentes que vivem na mesma comunidade ou em outras comunidades. Nesse sentido, é importante que elas aprendam comportamentos adequados e uma linguagem apropriada para interagir com outras pessoas. O respeito é ensinado no dia a dia, com base em noções de ética, educação e relações interpessoais e cosmopolíticas.

Além disso, o cuidado com o corpo é outra dimensão essencial da educação indígena. Todos os dias, ao amanhecer, as crianças são orientadas a tomar banho e a se movimentar na água para fortalecer o corpo, ganhar força para as atividades diárias e limpar o estômago. Esse cuidado inclui a ingestão de um cipó específico durante o banho matinal. Além disso, manter o corpo protegido com pinturas corporais é fundamental, pois se acredita que a desproteção pode causar sérias doenças.

Outra educação importante são os hábitos alimentares. As crianças e jovens indígenas são orientadas e acompanhadas a consumir certos alimentos de forma moderada. Algumas regras incluem evitar o consumo excessivo de peixes assados, evitar alimentos quentes e de peixes considerados gordurosos ou remosos. O cuidado com a alimentação é essencial, pois contribui para a aprendizagem e memorização, o desenvolvimento de um corpo ativo, um espírito intuitivo aguçado e um estado de disposição sem preguiça.

Enfim, a noção de qualidade de vida para os povos indígenas não se restringe ao aspecto de relações com a “natureza” ou o biológico. Antes o contrário: envolvem aspectos cosmopolíticos e conecta o coletivo ou a pessoa numa teia de relações com outros seres, com os waimahsã, com os animais, com a floresta, com a território, com a água, com os artefatos, com a casa, com os parentes e com outras pessoas.


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Este texto inicialmente foi publicado na revista SESC/São Paulo.