
Estoicismo demais, empatia de menos: por que homens leem menos ficção?
Entre tanta correria, redes sociais, planilhas de trabalho e conteúdos de autoajuda, os livros de ficção têm perdido espaço no cotidiano das pessoas, em especial na vida dos homens. O Brasil é um país que lê pouco, e isso se deve a uma combinação de fatores: o acesso desigual à educação, o analfabetismo geral e o funcional, a precariedade das bibliotecas públicas, a falta de políticas consistentes de incentivo à leitura e o alto custo dos livros. Mas o desinteresse não se limita a quem enfrenta essas barreiras estruturais e, no meio disso tudo, os homens são tem mais se distanciado dos romances, motivados pela ideia de que esse tipo de livro é uma espécie de gasto de tempo improdutivo, uma atividade que não cabe na agenda de quem tem metas a cumprir.
Apesar da ausência de dados recentes que mostrem a preferência por romances dividida entre homens e mulheres, os levantamentos disponíveis indicam que o público feminino segue sendo maioria entre os leitores brasileiros. Segundo a pesquisa mais recente da Câmara Brasileira do Livro, feita em parceria com a Nielsen BookData e divulgada no começo de fevereiro, 61% das pessoas que compraram livros nos 12 meses anteriores eram mulheres — um salto em relação aos 57% registrados em 2023.
Já o levantamento Retratos da Leitura no Brasil, publicado em novembro de 2024, aponta que 22% dos leitores costumam escolher livros de contos, enquanto 20% preferem romances. Ou seja, entre cada 100 leitores, apenas 20 escolhem romances. Se cruzarmos essa porcentagem com o perfil de quem mais compra livros, é possível estimar que, a cada 100 pessoas que compraram romances, cerca de 61 seriam mulheres. Isso reforça a hipótese de que elas também são maioria entre as leitoras de ficção. Assim, mesmo sem um recorte específico por tipo de obra e gênero dos leitores, o cruzamento desses dados permite uma inferência: considerando que as mulheres representam a maioria dos leitores e compradoras de livros no Brasil, é bastante provável que também liderem quando estamos falando da leitura de romances.
Se o Brasil lê pouco e os homens são os que leem menos, um número ainda menor recorre aos romances. Mas por quê?
Historicamente, o culto à produtividade é imposto mais fortemente sobre os homens. Ler, por prazer, seria quase um ato de resistência — e, no caso dos homens, uma pequena revolução contra a lógica do “faça mais em menos tempo”. Mas essa resistência, muitas vezes de pouco fôlego, acaba silenciada pela pressa e pela necessidade de produzir, produzir, produzir.
Durante o século XIX, nas casas mais abastadas, a leitura de romances tornou-se associada à feminilidade justamente porque as mulheres da burguesia, enclausuradas no espaço doméstico, buscavam na literatura uma válvula de escape. Os homens, ao contrário, se mantinham no domínio do “útil” e liam para se informar, para se educar, para construir. Um eco dessa visão antiquada ainda reverbera no mundo moderno. Romances ainda são sinônimo de fantasia “inútil”.
No Brasil, a diferença começa cedo. Segundo educadores, meninos costumam ter menos modelos leitores do mesmo gênero. Enquanto são incentivados a correr, competir e produzir, meninas crescem cercadas por mais referências literárias — nas mães, nas professoras, nas personagens que leem. Como resultado, por volta dos 11 anos, muitos garotos deixam para trás os livros que os encantaram na infância. A adolescência, então, vira praticamente de terra de ninguém para a leitura masculina. O mercado editorial, ao notar esse afastamento, responde reforçando estereótipos femininos, tanto na estética quanto na narrativa. E o ciclo se retroalimenta.
Quando a figura de um homem ideal é vendida, fugir à regra não é convidativo. Parecer sensível demais, por exemplo, é fugir dessa regra, assim como se envolver com emoções que não se encaixam na armadura do homem prático, do líder infalível, do sujeito que resolve, mas não sente. Há o medo de se reconhecer na fragilidade de um personagem, de chorar em público com uma cena banal, de se comover com a dor de alguém que nem existe. De entrar numa floresta literária onde não há trilhas bem demarcadas e a saída não é um falacioso “upgrade”. Visões ultrapassadas como essa ainda estão por toda parte — nas falas, nas piadas, nos silêncios. E continuam afastando muitos homens de algo simples, humano e necessário: a experiência da empatia.
O erro colossal dessa resistência, que chega a beirar o absurdo, está em enxergar a ficção apenas como passatempo, como um dispêndio sem função prática. Para além do problema de avaliar tudo a partir de sua praticidade, os romances, na verdade, têm muito a oferecer nesse quesito: nuances, contradições, zonas cinzentas — tal qual, veja só, a vida. Ler ficção não é se alienar da realidade, mas mergulhar nela com mais profundidade. É exercitar o olhar do outro, expandir o repertório emocional, treinar o olhar para aquilo que não está dito. E isso, convenhamos, é tudo menos fútil.
É claro que não ler romances ou valorizar a produtividade não quer dizer necessariamente que uma pessoa não tenha empatia, da mesma forma que ler ficção não transforma automaticamente uma pessoa em alguém mais sensível ao outro. Mas há, sim, estudos que indicam uma relação entre a leitura de ficção e o desenvolvimento da empatia e, na maioria das vezes, isso falta em muitos dos discursos que exaltam apenas a eficiência.
E é claro também que esse padrão de insegurança e de masculinidade estóica não é exclusivamente brasileiro. Como apontou uma matéria da Dazed que causou bafafá no meio do ano passado, muitos homens do Reino Unido, sobretudo os heterossexuais, tendem a evitar a ficção e, quando recorrem à leitura, preferem livros de não ficção com apelo à produtividade, melhoria pessoal e conhecimento prático. Não estamos sozinhos — e, nesse caso, isso não é um alívio.
A masculinidade, ainda marcada por traços de virilidade engessada, não abre espaço para o tipo de entrega emocional que a leitura de um romance exige. No Brasil, onde as taxas de depressão entre homens crescem e a busca por modelos positivos de masculinidade é urgente, o romance poderia ser uma rota alternativa. Não é exagero dizer que ler romances poderia ajudar a salvar vidas. Ao criar vínculos invisíveis com personagens, ao exercitar o músculo da empatia, o homem leitor deixaria de ser apenas espectador da própria rigidez. Tornaria-se, também, aquele que sente, sem precisar pedir desculpas por isso.
Talvez esteja aí a verdadeira “ameaça” do romance: ele nos convida a parar. A desacelerar o passo, suspender as metas, silenciar as notificações internas. E parar, para muitos homens, ainda é sinônimo de fracasso. Mas se há algo de urgente no Brasil de hoje — e nos homens brasileiros, sobretudo — é a necessidade de reaprender a parar. De sair do modo “otimizar” e se permitir estar com um livro sem a cobrança de sair dele mais produtivo, mais forte, mais eficiente. Apenas estar. Ler por ler. Sentir por sentir.
Seria fácil dizer que a perda é deles, e que lidem com isso. Que são os homens que deixam de acessar um repertório emocional mais vasto, que vivem presos em um modelo de masculinidade sufocante. Mas o buraco é mais fundo. Uma sociedade em que metade dos seus integrantes se afasta da ficção, da escuta e da vulnerabilidade não é uma sociedade equilibrada. Quando os homens se blindam contra o sentir, todas as relações empobrecem: afetivas, familiares, profissionais.
Há muito futuro nas páginas de um romance. Um futuro muito mais empático e menos violento. Mas, para alcançá-lo, essas páginas precisam ser folheadas.