
O gozo da santa e dos pecadores
“Esses homens que caçam que atiram e que matam
Fazendo da morte esporte e lazer”
— João Chagas Leite
Eu tinha oito anos quando um primo de meu pai chegou, acompanhado de dois amigos, para ficar uns dias em nossa casa. Naquela época, início dos anos 90, morávamos em Jaguarão, uma pequena cidade bem ao sul do Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai. Por vivermos longe do restante da família, ficava bastante entusiasmada em receber visitas, em especial quando havia criança junto. Não era o caso dessa vez, o que nem de longe tornava a vivência frustrante, afinal, hóspedes eram sempre bem-vindos!
Observadora, me pus a examinar aqueles homens. Eles pareciam pessoas normais na noite de sua chegada, mas foram acometidos por uma transformação na manhã seguinte, quando passaram a usar vestimentas esquisitas e a carregar armas, algo que eu só havia visto em desenhos animados, nas mãos dos vilões. Meu pai tratou de me explicar o que aquilo significava: os rapazes tinham vindo para nossa casa porque, em uma localidade perto dali, eles podiam praticar seu esporte, a caça a animais silvestres. Por isso a roupa camuflada e as espingardas — por isso a expressão de júbilo em seu olhar, eu soube muitos anos depois.)
Recupero essa pequena história, retirada de memórias longínquas que nem sabia que ainda estavam vivas, para abordar o gozo na teoria lacaniana. Fazer uma breve explanação sobre esse tema inevitavelmente nos leva a pensar em significantes como falta, desejo, satisfação ou a impossibilidade de alcançá-la. Assim, logo de início, fui acionada pelo óbvio, a imagem do Êxtase de Santa Teresa (1647-1652), célebre escultura de Bernini, que retrata a experiência mística de Santa Teresa d’Ávila ao ser trespassada por uma seta de amor divino, empunhada por um anjo.
Jacques Lacan foi profundamente afetado por essa obra, que se situa entre o escândalo e a espiritualidade e que, apesar de ser um símbolo do fervor religioso, tem forte apelo erótico. A santa, com seus olhos semicerrados e voltados para o céu, tem entre os lábios um pequeno sorriso, que deixa adivinhar um gemido. Das palavras da própria Santa Teresa, o escultor extraiu a inspiração para a expressão que Lacan acaba por nomear como gozo: “A dor era tão grande que me fez gemer; e, no entanto, tão extraordinária era a doçura desta dor excessiva, que eu não podia querer me livrar dela. Nenhuma felicidade terrestre pode dar um prazer assim tão grande. Quando o anjo tirou sua lança, senti um enorme amor por Deus” (Autobiografia de Santa Teresa d’Ávila, nomeada Livro da vida).
No seminário 20, traduzido no Brasil como Mais, ainda, Lacan remete seu público diretamente à estátua, afirmando que a santa goza, e não há dúvidas disso. O mistério que paira no ar fica por conta dos motivos de seu prazer, pois há algo além de amor e desejo nesse significante enigmático. Todavia, a essa altura de sua obra, Lacan não tarda a associar o gozo da santa à dor e a uma espécie de satisfação feminina. Nesse terreno, talvez estejamos um pouco mais familiarizados, seja pela noção de masoquismo feminino, seja por manifestações da cultura que seguem apontando para a mulher nesse lugar, entre o fetiche e o desejo de submissão.
A literatura e o cinema são campos repletos de exemplos dessa configuração do desejo feminino – um exemplo bastante atual é o filme Babygirl, em que a sexualidade feminina entra em cena com suas diversas camadas, das mais comuns às mais peculiares, do grotesco ao complexo, dando mostras de como a fantasia é inimiga do politicamente correto e, ao fim, do indomesticável. O gozo, portanto, tem ligação com o corpo e com o pulsional, mas distancia-se do puramente biológico. Pronto, entramos no campo do inconsciente!
Chegamos, então, à difícil missão de tentar definir a noção de gozo na clínica de Lacan, e para isso precisaríamos dizer algumas palavrinhas sobre como ela é variável, servindo a propósitos diversos ao longo de sua obra. Em um primeiro momento, apresentamos o gozo perdido, que, em última instância, se refere à angústia e ao traumático, também se aproximando da dimensão ética, uma insistência perene da teoria lacaniana. Para falar de uma forma um tanto freudiana, seria possível aludir ao que se situa além do princípio de prazer — aquilo que se recusa mas retorna, normalmente sob a forma de sintoma. Aliás, o gozo é um conceito interessante para dar conta daquilo que entendemos como ganho primário do sintoma, uma dimensão da qual falamos menos, uma vez que a clínica psicanalítica trata mais dos restos.
Para avançar nesse tópico, é importante compreender que o aparelho psíquico funciona mediante um processo econômico, buscando sempre as alternativas capazes de gerar menos desgaste e mais prazer. Nessa economia libidinal, o sintoma, por mais esquisito que pareça, pode trazer satisfação, ainda que também custe algo ao sujeito. Por isso mesmo, o conceito de gozo acaba sendo uma ferramenta conceitual das mais úteis para a escuta, pois nos leva ao caminho daquilo que perturba a polaridade simples entre prazer e desprazer.
Tentemos agora comunicar isso de uma forma mais simples: o gozo é aquilo do que o sujeito se defende, apesar de ser uma experiência impossível, uma vez que sua satisfação é mítica. Ademais, é interditado àquele que fala — essa é a formulação de Lacan, pois o gozo nos dá notícias de algo que não pode ser dito, situado aquém da linguagem e das palavras. O resíduo do desejo, de forma invertida, traz ecos do que seria o gozo, uma retomada daquilo que foi perdido. Assim, o gozo como um impasse da simbolização é um fenômeno de repetição, que se liga à pulsão de morte.
Mas todo esse linguajar sofisticado talvez pudesse ser resumido da seguinte maneira: somos todos sujeitos incompletos, e o desejo se move por sua relação com a falta – sem esquecer que, para Lacan, o desejo é o desejo do outro, mais especificamente daquilo que faz falta no outro e, por conseguinte, passa a fazer falta em nós. Dessa equação resulta uma satisfação sempre imperfeita, porque só possível parcialmente.
É no momento em que completo esse giro, na tentativa de estabelecer alguns pontos concisos sobre esse conceito denso e extenso na teoria lacaniana, que começo a me dar conta dos caminhos que minha lembrança infantil trilhou para ter insistido em mim, uma vez que traz notícias de um comportamento primitivo, momento no qual a linguagem está suspensa. O brilho no olhar daqueles homens pós-caça era o símbolo máximo do gozo que jorrara, mesclado com o sangue que escorria da carne dos bichos. A expressão de triunfo que estampavam em seus rostos, hoje sei, era o retrato daqueles que se sabem acima da lei, que, diante de sua frágil presa abatida, ignoram quão injusta era a batalha.
Em um salto no tempo, chegamos aos dias atuais, permeados por apreensão na relação dos sujeitos com a natureza, acossados que estamos todos por emergências climáticas. Então parece relevante salientar que falo de Porto Alegre, uma cidade que passou, em maio de 2024, pelo maior evento ambiental de sua história, uma inundação sem precedentes. Além do caos e do colapso vivido na época, essa ocorrência deixou um rastro de dor e destruição. Desde então, temos vivido com repentinos e repetitivos episódios de alagamentos, quedas de luz, falta de internet — fatos outrora raros e atualmente cotidianos, que impactam o trabalho, o lazer, a organização e o conforto.
Escrevo este texto em uma terça-feira do mês de fevereiro de 2025. São 15h, e os termômetros marcam 37ºC. Estamos na terceira bolha de calor do ano, e as previsões indicam que os próximos sete dias serão igualmente tórridos. O aquecimento global, que na década de 90 era anunciado por poucas vozes tidas como pessimistas, é hoje uma verdade inquestionável. Ainda assim, as queimadas seguem sendo realizadas em todo o território nacional, o lixo continua sendo descartado de forma irregular, a construção civil avança sem freios, a agropecuária continua degradando o solo, a energia permanece sendo utilizada de forma irracional. Tantos ataques nos levam a perguntar sobre o que acontece na economia do gozo que leva o homem a destruir o planeta que habita, a despeito de todos os alertas. Haveria algum prazer em consumir os recursos naturais de forma irresponsável, sustentando um ideal onipotente, narcísico e inconsequente? Essas são questões complexas e certamente não passíveis de serem respondidas somente pela compreensão psicanalítica, mas, se quisermos apostar em ideias para adiar o fim do mundo, como diria Krenak, é preciso promover um deslizamento da ideia do gozo fálico para o gozo da satisfação da crueldade — outra faceta humana, demasiado humana.
Epílogo
Após passarem três dias acampados para a prática de sua atividade, os caçadores regressaram. Naquela noite, minha mãe preparou um jantar para recebê-los, a despeito de seus pedidos, direcionados a meu pai, de que eles não retornassem no ano seguinte. Eu era pequena, mas lúcida o suficiente para perceber que aquela situação era incômoda para ambos, e torcia por um desfecho favorável, sem que isso significasse a ausência das sempre tão aguardadas visitas. Demorei a compreender o que havia se passado naquela noite para que jamais voltássemos a nos ver.
Inquieto com a cumplicidade silenciosa que ofereceu aos parentes, meu pai rompeu com sua passividade, deixando ressoarem na sala as palavras e a melodia do cantor gaúcho que apresentei na epígrafe deste texto. Incapaz de se insurgir em nome próprio, buscou na vitrola uma embaixadora, como a lembrar que, quando a lei é insuficiente em seu papel de barrar o derramamento pulsional em excesso, ainda existe um refúgio chamado arte, guardião da esperança e da ética.
E, na sala de jantar, o cancioneiro emitiu seu alerta de sangue:
“Vai ser temporada de caça esse mês
Lá vem espingarda, matança outra vez
Em cada espécie que os pouco se some
Também morre um pouco da vida do homem”.