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Colina, de Lucas Rubly (2024).
#52SatisfaçãoCulturaLiteratura

O sexo revirado

por Bruno Cosentino

Escrevo a partir de uma perturbação provocada pela leitura de A história de O., clássico erótico assinado por Pauline Réage. A personagem O., após se submeter a todo tipo de flagelo sexual em uma sociedade secreta de homens sediada em castelo nos arredores de Paris, alcança, fora dali, na relação com as pessoas em sua vida cotidiana, um tipo de integridade. Parece inusitado que tal indiferença soberana se coadune com as humilhações sofridas por ela durante as temporadas no castelo. No entanto, uma vez tornada — por vontade própria — prisioneira e objeto da crueldade daqueles homens, o efeito de sua fantasia sexual, praticada com ascese, não é a degradação, mas, surpreendentemente, a retidão. 

A certa altura, constata o narrador da história sobre O.:

“Admirava-se de que ao ser prostituída viesse a ganhar em dignidade e no entanto tratava-se de dignidade. Sentia-se como iluminada por dentro e via-se, no seu modo de andar, a calma, e no seu rosto, a serenidade e o imperceptível sorriso interior que se adivinha nos olhos das reclusas.”

Uma questão logo me veio: O. atinge essa dignidade por meio do sexo — mesma matéria a partir da qual Freud erigiu seu saber psicanalítico, descrevendo, contudo, uma economia cerrada entre a vida psíquica e a vida em ato, sustentada exemplarmente na definição de pulsão:

“Conceito fronteiriço entre o anímico e o somático, representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo que alcançam a alma, uma medida da exigência de trabalho imposta ao anímico em decorrência de sua relação com o corporal”.

Em outras palavras: o corpo quer, não faz (porque não deve, não pode) e, logo, enche a cabeça, que precisa ser esvaziada na forma de palavras ditas em livre associação no setting analítico. 

Além disso, a pulsão sexual é caracterizada por exercer uma força constante (konstante kraft), como uma fonte cuja água não para de jorrar. Para Freud, ou a desviamos e encontramos caminhos para ela correr ou fechamos sua passagem, dois destinos, entre outros, aos quais deu respectivamente os nomes de sublimação e recalque. Pela primeira via, a da sublimação (segundo ele, a mais nobre), ao inibir a meta, isto é, não passar a fantasia ao ato, utilizamos a energia sexual (libido) como móvel de nossos contributos para a cultura ou a civilização; pela segunda via, a do recalque, produzimos sintomas neuróticos. Freud deixou, no entanto, de considerar outro destino possível, o transbordamento da água, pois a economia que regula sua teoria está assentada na premissa de que se deve evitar o dilúvio. 

Algumas décadas depois, o francês Georges Bataille — leitor de teoria psicanalítica, analisado por anos e aparentado de Jacques Lacan —, deteve-se diante da inundação, produto dessa água abundante que não cessa de jorrar. Pensando também a partir de uma lógica econômica, ressaltou, com sua noção de dispêndio, a função do gasto inútil, do excedente, da perda, do luxo, do supérfluo — justo a incontinência considerada nociva ao projeto civilizacional. Freud não considerou a via do derramamento digna de compor o mapa de sua análise da psique humana, até porque elaborou seu saber a partir de corpos recalcados, como os das histéricas, por exemplo, cujas reações somáticas respondiam a exigências de uma cabeça cheia. Mas e quando a seta da pulsão atinge o alvo (ou a meta)?

Dessa vida psíquica que opera com alguma autonomia em relação à vida experimentada no corpo poupa-se precisamente, entre outros, o ato sexual — aquilo que no seio da coletividade está desde sempre sob resguardo e cuja força indômita temos que destrinchar na análise, declinar em palavras, elaborar. Ao fim, supõe-se com isso atingir alguma saúde mental, a “cura”; ou, poderíamos também dizer: a tal indiferença soberana. Pois não é justo aí que chega O. pela via contrária, revirando o interdito do sexo, gastando-o em excesso? E então: se o corpo quer e o corpo faz, para onde vai essa água que derrama? E como fica a cabeça, esvazia-se? Já é um sinal. Outra dinâmica se instala para a suposta “cura”: o corpo experimenta em ato a fantasia e a cabeça responde com sensações, apenas. Aqui, não se trata de análise. Trata-se de forjar um estado de espírito alheio à desmontagem de tais sensações por meio de palavras para eventual elaboração — não, O. estava inteira, indivisível, opaca, silenciosa, anterior ao verbo.

 Se a fantasia pertence ao terreno fértil da vida psíquica, O. a coloca em ato, vive-a no jogo; no caso, o jogo erótico com seus algozes – ela, a vítima – no castelo de Roissy. Para Johan Huizinga, em seu célebre livro Homo ludens, o jogo (sua representação), mais do que realidade falsa, “é a realidade de uma aparência: é ‘imaginação’, no sentido original do termo”. Ele também aproxima as características do jogo às do rito e avança:

“A representação sagrada é mais do que a simples realização de uma aparência, é até mais do que uma realização simbólica: é uma realização mística. Algo de invisível e inefável adquire nela uma forma bela, real e sagrada. Os participantes do ritual estão certos de que o ato concretiza e efetua uma certa beatificação, faz surgir uma ordem de coisas mais elevada do que aquela que habitualmente vivem (…) seus efeitos não cessam depois de acabado o jogo; seu esplendor continua sendo projetado sobre o mundo de todos os dias, influência benéfica que garante a segurança, a ordem e a prosperidade de todo o grupo até a próxima época dos rituais sagrados”.

Esse fragmento dá a pista da resposta que busco para a improvável dignidade lograda por O. após tanta humilhação. Já sabemos que sua submissão é voluntária e, portanto, realização de uma fantasia posta em ato no jogo erótico. Huizinga lista ainda algumas qualidades atribuídas ao jogo, que podemos aproximar do que se passa dentro dos muros do castelo em Roissy. É preciso, destaca o pensador holandês, um espaço delimitado para sua realização; espaço que contribui para a criação também de um tempo fora do tempo produtivo. Nesse espaço-tempo intervalar — apartado da vida “real”, alheio aos tributos da civilização, desconhecedor de noções como vício e virtude, com suas próprias leis — O., apesar de vítima, vive com disciplina e liberdade sua fantasia, resguardada do jugo da razão e da moral.

Mas se esse castelo é um santuário pagão, que rito é esse que ali se passa? Qual mito encenam e reatualizam? O mito da cabeça vazia. Do acéfalo. Da desrazão. Do descentramento do ser-humano. Do dispêndio abundante e sem sentido da natureza. Dos frutos jamais colhidos que apodrecem no chão. Do sêmen desperdiçado. Da não produção de vida. Quase disse “da gratuidade do prazer”, mas ali tampouco há prazer, nem da parte dos algozes, menos ainda de O. Alguma satisfação sadomasoquista? Talvez, mas pouco provável. Ao se oferecer em servidão voluntária àqueles homens, que lhe enfiam os paus por seus buracos — seus orifícios deveriam estar sempre abertos e à mostra para o pronto descarrego de seus senhores —, O. cumpria com rigor sua função de vítima expiatória. Fora do castelo, seu corpo ostentava os ferimentos dos chicotes (havia vários tipos deles), as próteses que lhe alargavam o ânus e lhe apertavam a cintura, sua pele ardia. Como uma santa imantada, carregava seu esplendor.

Era um semblante, um espectro, despersonalizada, vivia indiferentemente às leis e aos costumes do cotidiano, pois seu corpo estava desafetado, marcado na pele, tanto na superfície, com cicatrizes, como por sensações de dor que nela perduravam. Havia sempre um incômodo. Eugenio Barba, no tratado de antropologia teatral A canoa de papel, atribui a certo incômodo, que causa uma “alteração de equilíbrio” no corpo, a pré-expressividade da presença teatral. Ou seja: a partir desse incômodo, o corpo não relaxa; ainda que parado, calado, produz presença, se expressa. Isso se deve ao que chama de sats: “impulso de uma ação que ainda se ignora e que pode tomar qualquer direção”; uma espécie de energia concentrada pronta para ser descarregada com força e precisão. Acontece que O., em sua vida ordinária, parece reter essa energia acumulada no corpo; ela é toda vibração. Como um ícone, uma escultura, uma obra de arte significante, sua aparência e seu estado de espírito irradiam a dor e a lassidão duradouras impressas em sua pessoa — carne e espírito — durante as temporadas no castelo-templo. 

Quando se recusa o papel de artífice da civilização, quando não se constrói canais, diques, lagos e outros engenhos para designar a “boa” direção para a abundante água que não cessa de jorrar, ela transborda, abre caminhos sinuosos, sulca a terra, rola pedras, cria vales, penetra no solo, acumula-se nos lençois freáticos (uma possível topologia geográfica para o inconsciente), irrompe, novamente, em olhos d’água, encharcando a superfície. O., ao deixar a água de seu corpo correr, integra-se ao natural, a seus cursos insuspeitados, esvazia a propalada cabeça ocidental, torna-se árvore que se alimenta de seu próprio líquido, redonda, como seu nome O.; petrifica-se, após, senhora de cinquenta mil anos, mineral, inorgânica, escultural, artifício natural — resplandecente.

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