
Satisfação: estamos em falta?
É o final de uma refeição, e os comensais, que são bons amigos, tratam de ir preguiçosamente retirando a louça suja da mesa e levando-as para a cozinha, onde as empilham na lava-louças. Alguém pergunta: “Estão satisfeitos?”. A maioria responde que sim, mas um deles diz: “Ah… Eu tomaria um cafezinho e esperaria um pouco para comer mais um pouquinho da sobremesa…”. Todos se entreolham; uma ideia sapeca foi semeada entre eles. No entanto, uma das figuras diz: “Agora não consigo! Eu não aguento mais…”. Já outra pessoa diz: “Até que seria bom, mas estou satisfeito…”.
A vivência de satisfação pode ser experimentada empiricamente como uma questão quantitativa, como se nota pelo parágrafo anterior. No entanto, vale observar que há uma ação do tempo em jogo: “esperar”, “não agora”, “até que seria bom”… A experiência de satisfação engana com isso, como se se tratasse apenas de um funcionamento tipo “tanque de combustível” ou qualquer metáfora semelhante: a fome vem conforme o tanque esvazia.
No entanto, se, por um lado, sentir fome é universal, por outro lado, há inúmeros atravessamentos sobre a questão da fome. Desde questões culturais e econômicas, que podem implicar populações vivendo sob condição de desnutrição ou de fome mesmo — ponto que não pretendo tratar aqui — até questões singulares. Se tomo a fome como paradigma, é apenas para lançar o desafio de como uma condição biológica se engendra em seres apalavrados (considerando o acesso ao alimentar-se).
A satisfação é um problema, ainda que sentir-se satisfeito possa ser satisfatório. Quero dizer que a satisfação é um problema para a psicanálise, pois ela é intrinsecamente ligada ao desejo. Problema delicioso para o deleite dos psicanalistas. Desde Freud, sabemos que o desejo humano vem da tendência pulsional. Ou seja, a pulsão demanda satisfação. Isso implica que há falta de um objeto que foi perdido em um momento mítico da vida de cada um, tal seja, um momento de plena satisfação no qual nada falta, nada sobra; e chamamos esse momento de mítico por nunca ter existido de fato. Uma espécie de medida de encaixe perfeito, que não cabe para nossa espécie humana, falante que é. A satisfação está ligada ao desejo, como esse pulsar indestrutível em cada um de nós. Assim, Lacan vai tratar o problema do desejo enquanto inesgotável, insatisfeito, faltante.
Se, com Freud e sua teoria pulsional, pudemos escandir necessidade e desejo, com Lacan, vamos trabalhar na escansão entre desejo e demanda. Isso quer dizer que, ao estarmos imersos e imiscuídos no campo da linguagem, as necessidades, mesmo as básicas, como comer, hidratar-se e dormir, já não obedecem mais somente a leis estritamente biológicas, de modo que, em cada um, esses basais estarão inscritos de diferentes formas, ou, melhor dizendo, de formas singulares, inscritos na história pessoal de cada um, esta que é impossível de reproduzir. A função da fala e da falta em cada um vai cavar uma espécie de não especificidade do objeto do desejo. É com Lacan, portanto, que podemos apreender que “desejo de chocolate” é da ordem de uma demanda com uma especificidade.
Adentramos algo mais complexo da psicanálise: as demandas ordinárias que surgem em nós como pequenas ou grandes vontades são decorrentes daquilo que chamamos “constituição do sujeito”, sujeito que atribuímos como “do desejo” ou “do inconsciente”, aqui praticamente sinônimos. Quando Lacan, apoiado em Hegel, propõe que o desejo é o desejo do Outro, isso quer dizer que algo de valor é transmitido, desde a chegada ao mundo, do Outro encarnado por um outro (cuidador) e que vai interpretar o desejo, tanto no sentido de uma leitura — interpreto o que penso ser valor para o outro — quanto no sentido de um papel — isso que destaco como valor para o outro me interpretar em uma posição subjetiva. Esse valor transmitido vai representar algo para alguém.
A satisfação não satisfaz plenamente, pois, entre desejo e satisfação, algo fica em falta. Apoiado em Saussure, Lacan vai (principalmente no primeiro momento de seu ensino) propor que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Isso significa que não há signos determinados que representam plenamente os objetos. Se o sujeito assujeita-se ao desejo do Outro, isto é, ele paradoxalmente faz-se objeto para advir como sujeito, isso o inscreve em uma cadeia de significantes em que “um significante representa o sujeito para outro significante”, de modo a instaurar uma cadeia infinita e deslizante. Quem sou eu? O que eu quero? Qual é o sentido da minha vida? Perguntas sobre as quais a filosofia se debruça muito antes da psicanálise. Mas o que faz da psicanálise um campo de saber não é propriamente responder a elas. Pelo avesso, é oferecer um modo de tratamento à cadeia significante que diz de cada um sem que se saiba. Para saber-se é preciso escutar-se. E, para escutar-se, é preciso um outro — o psicanalista —, que devolve ao analisante o que ele disse de si sem sabê-lo, ou seja, sua mensagem “invertida”.
O desejo é esse deslizamento infinito ao modo do paradoxo de Zenão, no qual a tartaruga está sempre na frente de Aquiles, sem que este possa alcançá-la. Essa operação lógica se dá por meio da falta. Na medida em que no desejo do Outro também está inscrita uma falta (estrutural), uma cena fantasmática inscreve o sujeito no fio da história e precipita as repetições na narrativa da sua história.
Narrar-se em um processo de análise é estar disponível a descobrir os paradoxos desse desejo insatisfeito e inalcançável — paradoxal por proporcionar realizações ao mesmo tempo em que a plenitude de sua realização não se alcança. Algo sempre falta, não por ter sido outrora perdido, mas por nunca se ter possuído.
Se a falta move o desejo, este é, portanto, insatisfeito. Não basta encher o tanque das vontades para cessar o desejo, pois isso é da ordem das demandas, impossíveis de se atender plenamente, ainda que, parcialmente, se possa ter a impressão de satisfação, mesmo que seja no tempo cronológico. De fato, satisfações parciais acontecem. Assim, a falta também balança a noção de tempo para a psicanálise, na medida em que o sujeito do desejo é dividido entre ser e objeto, e só podemos saber o que somos depois que fomos, em um sempre adiante nas narrativas que nos compõem, até o fim.
E o que é o fim, afinal? Com Lacan, foi possível pensar o fim de uma análise. O fim de um percurso, geralmente árduo, no qual se precipita um fazer-com essa falta, um fazer melhor em cada versão com a qual podemos nos apresentar no mundo, entre outros seres falantes e faltantes.