
Existir na retina: viver o olhar (opositor)
Talvez uma das coisas que mais mexe comigo é o olhar do outro sobre mim; e esse olhar é racializado, aqui aviso. O olhar dos brancos que me despe da cabeça aos pés, me analisando e julgando, tornando-me pequeno, desprezível ou feio. Um olhar que às vezes demonstra medo, outras repulsa, ódio ou apenas que não sou bem-vindo ou pertencente àquele lugar. É um olhar que violenta e invade, no qual a fantasia de posse de sinhô ou sinhá é reimaginada e revivida, pois àqueles que detêm esse poder é permitido fazer tudo com suas posses, inclusive olhar livremente como quiser e na hora que quiser.
Vou pensar aqui com Stuart Hall, quando ele fala que esse olhar nos fixa em imagens de controle, como definiu Patricia Hill Collins, quando nos tornam Outros, o que passa por violência e hostilidade e, no entanto, também carrega a ambivalência do desejo. Hall pontua isso a partir de outro texto memorável, um trecho do Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon , quando este discute sobre como o olhar do outro sobre nós mesmos nos constitui em seres de identidade desde crianças. E aqui ele pontua uma diferença abissal do olhar do outro que procuramos “em casa” e do olhar que recebemos, no mundo colonial, dos brancos.
Fazendo relato de suas vivências na França depois de deixar a Martinica, Fanon mostra o poder dos brancos que o observam ao relatar uma cisão em sua identidade, de nível ontológico. Agora tudo que ele acreditava e sentia ser, algo cristalizado ao longo de sua vida, em sua terra natal, fora posto em xeque, de forma tal que até seu corpo e seus movimentos são colocados em dúvida. Ele seria um preto. Um preto que chama atenção pela epiderme e que não mais poderia ser apenas um homem seria então um animal exótico disponível ao olhar alheio, um sujo, um primitivo, um objeto de desejo; em suma, um objeto. Hall nos lembra como Fanon nos mostra que esse é um poder não somente da ordem de um fator externo, mas que também está do lado de dentro, internalizando.
bell hooks, por sua vez, nos lembra como a questão do olhar sempre foi algo proibido para o povo negro na época da escravidão, pois os cativos eram terminantemente proibidos de olharem para os senhores. Depois, os homens negros que olhassem para mulheres brancas poderiam ser linchados, como nos lembra a autora citando o caso da criança Emmett Till. E, por fim, ela lembra como, na infância, os adultos proibiam também as crianças de olharem com expressões críticas ou desafiadoras ou como eram obrigadas a olhar para os pais quando estavam sendo castigadas. Para hooks, a repressão e o medo envolvidos no ato de olhar criaram um desejo enorme de poder realizá-lo, dentro da comunidade negra estadunidense, e conclui o poder do olhar a partir do assombro e fascínio que ele acarreta.
Dominada por esse sentimento, a autora reflete que o olhar da norma para os outros é parte de um movimento de controle e coerção, integrando a estrutura de dominação da supremacia branca. No entanto, hooks também acredita que espiar ou encarar corajosamente nunca foi algo que conseguiu ser totalmente extirpado da nossa existência e que, ao insistirmos no ato de olhar, estaríamos criando uma forma de resistência que, então, poderia se transfigurar para um olhar opositor. Esse “olhar negro” deseja olhar criticamente e mudar a realidade, e, por mais que esta seja extremamente dura e hostil, manipulando os olhares dos condenados — para usar um termo fanoniano — também se abre a possibilidade de agência.
Existem espaços de agência para pessoas negras, onde podemos ao mesmo tempo interrogar o olhar do Outro e também olhar de volta, um para o outro, dando nome ao que vemos. O “olhar” tem sido e permanece, globalmente, um lugar de resistência para o povo negro colonizado. Subordinados nas relações de poder aprendem pela experiência que existe um olhar crítico, aquele que “olha” para registrar, aquele que é opositor. Na luta pela resistência, o poder do dominado de afirmar uma agência ao reivindicar e cultivar “consciência” politiza as relações de “olhar” — a pessoa aprende a olhar de certo modo como forma de resistência.
Isso vale para tudo, desde devolver o olhar naquele lugar que não te querem, passando pelo olhar crítico de produtos da mídia hegemônica, pela formação por imagens que podem nos politizar, como os protestos dos movimentos negros, ou pela fala de nossos mais velhos e mais velhas ou nosso(a)s artistas registrados em algum formato que permita o acesso e o compartilhamento. Diante de nós, aquilo que nos olha também é olhado de volta, agora com aguçado senso crítico e certo ar de desdém, a partir do olhar opositor. Uma revanche ocular.
Isso nos coloca também na posição de pensar o prazer, a satisfação, no ato de reagir. De destruir aquilo que nos oprime. Nesse legado imagético, trago primeiro as pinturas que retrataram a Revolta de São Domingos, ou, como veio a ficar mais conhecida, a Revolução do Haiti. A primeira república declaradamente negra do que se convencionou chamar de modernidade venceu várias batalhas contra diferentes colonizadores, incluindo a marinha de Napoleão Bonaparte, e proibiu a escravidão em sua Carta Magna, algo que nenhum “iluminista” ousou fazer. A Europa e as colônias ou ex-colônias das Américas recebem a notícia em choque, e um pavor generalizado é provocado, mas apenas naqueles que trabalham nas engrenagens do sistema de subordinação dos não brancos. A autoria de muitos desses registros são difíceis de encontrar, e eles mostram militares coloniais sendo enforcados ou a população de origem europeia sendo atacada a facões ou porretes, alcançando a libertação, fundando o novo: a comunidade de sujeitos não mais colonizados e escravizados, inaugurando possibilidades de futuro através da violência contracolonial, pois, segundo Fanon, “o colonizado descobre o real e o transforma no movimento da sua práxis, no exercício da violência, no seu projeto de libertação”.
As palavras voam ao vento, os tambores que iniciaram a luta haitiana parecem ser escutados em locais distintos, longe dali, chegando e inflamando lutas e imagens de insubordinação e autodeterminação, como aconteceu com a Revolta dos Malês, em Salvador. Há prazer e êxtase naquilo que é destruído, mesmo que de forma simbólica, opondo-se a imagens de controle e restituindo a humanidade que ousaram tentar roubar, mostrando um povo não mais submisso e inferior, como antes nos retrataram.
Numa sala de cinema vejo um preto aplicando as táticas violentas dos senhores para sua libertação e dos seus iguais. Django está livre e, como um cowboy de um faroeste, torna-se um justiceiro contra a escravidão, sem perdoar também aqueles que aderiram à colonização mental em troca de pequenas vantagens — o negro da casa-grande, como adjetivou Malcolm X. Num exercício de imaginação, a ficção poderia ter ido além, e por isso não tenho total aderência a essa narrativa, pois, para conseguir sua vingança, o personagem de Jamie Foxx precisa da ajuda de um branco salvador. Mas há alegria e satisfação na destruição dos antigos algozes.
Em outro momento também me lembro do filme O nascimento de uma nação, de Nate Parker, que dirigiu, roteirizou e atuou no filme sobre uma rebelião liderada por um ex-escravizado, em 1831, chamado Nat Turner. A história verídica retrata o episódio em que ele e seus seguidores chegaram a assassinar sessenta senhores de escravizados, ocorrido antes da Guerra da Secessão — um marco que “refundou” a nação depois da derrota dos escravistas dos Estados do Sul. A grande ironia está no título escolhido, pois faz referência ao filme homônimo de D. W. Griffith, de 1915, que foi patrocinado pela Ku Klux Klan e que, além de fazer propaganda do grupo supremacista branco, utiliza atores caucasianos usando blackface para representar os negros de forma estereotipada e abjeta. O filme de Parker é também um filme de vingança, de inversão dos papéis, que nos provoca a rever a história pela ótica dos vencidos, exercitando o olhar opositor e afastando o perigo da história única, do qual Chimamanda Adichie nos alertou.
Corta para 24 de julho de 2021, São Paulo. Os noticiários mostram imagens de uma estátua enorme pegando fogo, e logo sabemos que é de um personagem nefasto da história nacional, o bandeirante Borba Gato. Assassino e escravizador de negros e indígenas declarado e, por isso, condecorado, sua imagem imponente em local público é um escárnio e uma afronta sem precedentes para os descendentes daqueles que sofreram todo tipo de violência por suas mãos ou ao seu mando. O racismo é realmente o crime mais que perfeito no Brasil, parafraseando o professor Kabengele Munanga, pois, além de não serem punidos, os perpetradores de todo o mal ainda são ovacionados. É a neurose que a antropóloga brasileira Lélia González nos obrigou a ver para falar de um país que reconhece (tardiamente) o racismo, mas não tem racistas; ou que ama a cultura negra, mas odeia seus criadores.
O grupo Resistência Periférica, liderado pelo motoboy Paulo Galo, ou Galo de Luta, faze uma ação coordenada e rodeia a estátua de treze metros de pneus rapidamente, para depois atear fogo. O que se vê logo após é uma imagem linda de reparação simbólica e reafirmação da agência dos subalternizados, avisando que as figuras opressoras não mais ficarão de pé, nos olhando e reafirmando o racismo estrutural e o mito apaziguador da democracia racial. A satisfação de assistir àquela destruição contra a representação da violência nos permite respirar com mais calma e maquinar futuros possíveis, levantando debates e reflexões sobre o passado desse país e todas as consequências das verdades que não foram ditas.
O poder dessa imagem pode nos levar ao pensamento crítico, ao olhar opositor, que, como bell hooks colocou, possibilita a tomada de ação, politiza a forma de enxergar os meios visuais de representação. A produção de uma crítica da imagem a partir de olhares negros deverá nos trazer um regime ocular da revolta e da mudança social para que possamos tratar nossas feridas. O fogo traz a cura, Obá Inã, o Rei do Fogo, que também é o deus da justiça: Kao Kabecile, Xangô!