
Um cafezinho com Maria Luísa Barreto
Fotos de Derek Fernandes
Tomar café na casa de alguém é um convite para conhecer profundamente essa pessoa. Nossa casa é a casca que nos protege do mundo. Ela é parte importante de nossa cultura particular e reflete a maneira como enxergamos e gostaríamos de nos inserir no mundo.
Aqui, dividimos casas de pessoas que gostam de casa. Que têm suas casas vivas, cheias de objetos que contam a história de uma vida, sem um lugar perene em seus espaços.
Para mim foi um privilégio poder entrar na casa e conversar com a Maria Luísa Barretto, uma senhora amável, doce e com uma vida enorme.
Maria Luísa vive na sua casa, projetada pelo seu marido Joaquim Barreto, há 44 anos, rodeada de histórias, pelos seus amigos que já se foram, e pela família toda através dos seus objetos, livros, lembranças e memórias.
Todas as quintas, ou quase todas, ela faz um sarau com os amigos e vizinhos, no anfiteatro da casa. e nunca sabe quantas pessoas vão aparecer, quem vai tocar e o que vai tocar. Podem aparecer cinco pessoas ou vinte, que ela estará com as portas da sua casa tipicamente paulistana, abertas.
Essa visita para mim foi uma aula sobre gosto. Sobre um gosto, que é o dela. Nem bom, nem ruim mas um gosto de uma vida, pela vida, de uma casa que você entra e sente que ali existe uma vida vivida.

***
Desde quando vocês vivem aqui?
Deixa eu ver nos álbuns. Tenho tudo neles, minha neta adora. Este daqui, por exemplo, “7 de novembro de 81, mudança pra casa nova”. Depois segue “devagar, mais um dia acaba”. O projeto da casa é de 1978. Começamos a costruçnao no fim de 79 e terminamos em 81. Até que foi rápido.
Foi rápido pra esse desafio todo.
Pois é, foi rápido. E foi meu marido que fez tudo. Claro, com mestre de obra, engenheiro e tudo, mas o projeto é dele.
Qual é a relação dele com Ribeirão Preto?
A família dele era de Ribeirão Preto. O pai dele foi gerente do Banco do Brasil durante muitos anos. Ele saiu de Ribeirão Preto, foi para Araraquara, antes para Jaboticabal. Sempre moraram no interior.
Tem uma casa dele muito importante lá, não tem?
Tem sim. Ele fez várias casas em Araraquara, vários projetos. Mas eu conheci ele em São Paulo, quando ele veio estudar. Ele começou [querendo ser] dentista. Não sei se era dentista ou médico, na verdade. Depois foi trabalhar com café e, finalmente, encontrou o caminho na arquitetura. Ele tinha um sócio, amigo de infância, o Francisco Segnini, que foi coautor desse projeto. Depois eles se separaram, mas tudo bem. A casa era pra ser o cartão de visita dele. Infelizmente, morreu muito novo e morou aqui só quatro anos.
Que pena.
É, que pena. Ele ia ser um grande arquiteto. Fez o projeto da Igreja da Cruz Torta, de muitas casas aqui em São Paulo e no interior. A igreja era linda, mas agora mudou um pouco. Fiz o batizado da minha primeira filha lá, quando a igreja nem estava terminada. E todos os casamentos dos meus filhos foram lá. Depois que ele faleceu, eu fiquei aqui com as crianças. A mais nova tinha quatro anos, e a mais velha tinha nove. Criei eles aqui. Depois, aos poucos, fui pondo os móveis que eram dos meus pais, pelo menos os mais importantes. Móveis que vieram da Itália em 1951, quando nos mudamos para cá. Meu pai se mudou para cá em 51, por acaso, porque ele veio por 15 dias para supervisionar uma obra que tinha feito junto com o sócio dele. O sócio pegou o primeiro avião, voltou pra lá sem ter feito absolutamente nada, e meu pai ficou aqui para cumprir o contrato. Foi aí que ele viu que aqui tinha muito mais oportunidades para ele como engenheiro hidrelétrico. Um ano depois, chamou minha mãe e eu para virmos também.


Onde vocês moravam na Itália?
Eu nasci numa pequena cidade perto de Turim, se chama Alexandria. Depois, durante a guerra, nós nos mudamos para uma casa que era do meu tio e que antes era do meu avô, onde ele reuniu a família para fugir dos bombardeios de Milão. Eles eram de Milão. A casa era uma casa linda, no lago Maggiore. E eu passei minha primeira infância lá, junto com meus primos. Pra mim, a época da guerra foi linda, porque não sentia nada. A gente tinha comida e, teoricamente, estávamos protegidos, porque havia uma fábrica de pólvora a três quilômetros de uma ponte muito importante, que ligava a Lombardia a Piemonte. Os aviões desciam em cima da nossa casa para bombardear, então meu pai e meu tio, que eram engenheiros, fizeram, no porão, uma espécie de refúgio, e a gente descia lá e ficava lá, tranquilos. Quando acabava a sirene, saíamos. Curiosamente, para mim, era um paraíso. Quando acabou a guerra, fomos para Milão. Morei lá de 1946 até 1952. Minha família continua lá, e mantenho laços estreitos com duas primas, sabe por causa sabe de quê? Das cartas que minha mãe e as irmãs dela trocavam dando notícia da família inteira. Agora seria muito diferente. Acho que as cartas criam laços muito importantes. Eu datilografei todas as cartas que meu pai escreveu pra minha mãe quando ele veio pela primeira vez para o Brasil.
E tem o parecer dele sobre o país?
Tem. Falava que era um país novo, interessante, que tinha muita perspectiva. De fato, ele fez uma carreira. Teve sorte também, porque foi uma época em que foram feitas as grandes hidrelétricas do Estado de São Paulo, ele participou de todas. Teve sorte porque encontrou sócios que eram engenheiros, cada um numa especialidade, e eles criaram uma empresa de engenharia e projetos de engenharia, praticamente a primeira que existiu em São Paulo, chamada Themag. Depois ela ficou muito conhecida. Fizeram todas as hidrelétricas do Estado de São Paulo, fizeram Urubupungá, Itaipu, Tucuruí. Obras monumentais. Ele teve uma carreira brilhante, feita aqui no Brasil. Ele se naturalizou, e eu vim pra cá meio relutante. Não gostei, no começo.
Por quê?
Porque eu deixei toda a minha família e todos os meus amigos para trás. Não se fala muito nisso, mas naquela época eu sofri muito bullying. Os primeiros anos não foram fáceis. Depois, quando eu tinha 20 anos, fui para a Inglaterra fazer um estágio, estudar inglês, e aí encontrei vários italianos, não gostei, voltei e me naturalizei também.
Percebi então que já tinha criado raízes aqui. Me naturalizei, casei com brasileiro. Eu sempre falo que tenho três amores: o materno, que é pela Itália; o de marido, escolhido, que é pelo Brasil; e o de amante, que é por Paris. Quando meu marido morreu, meu pai ainda estava aqui, então acabei ficando, e ficando muito ligada à família do meu marido. Fiz questão de ficar nesta casa, apesar de agora ser enorme. Ela tem um sentido afetivo, mas uma mulher de 85 anos morando numa casa deste tamanho é meio surreal.
Como começou a história da família com esta casa?
Começou quando meu marido, junto com minha mãe, compraram o terreno. Meu pai deixou o meu marido livre pra fazer o que ele quisesse. No primeiro projeto, completamente diferente, tinha só dois andares, e o andar dos quartos dava pra sala, sem privacidade. Esse eu não gostei. Aí ele modificou o projeto e fez este. Ele construiu e eu adorei, estou aqui até hoje.


E qual é o papel dessa arquitetura da casa na sua vida?
Olha, eu nunca pensei muito na arquitetura, pensei na casa como minha casa. Claro que admiro muito a arquitetura modernista, sempre gostei e fico feliz de ter uma casa desse tipo, mas não dei muito valor pra parte arquitetônica, eu dei mais valor para a decoração: os pisos, os banheiros, as portas, a ventilação, que é muito interessante aqui, porque não tem uma cortina, a ventilação é feita toda pelas partes que abrem. Nos quartos, sempre tem uma porta que abre completamente e ventila.

Sim, a luz aqui dentro é linda. Ela entra de uma maneira super bonita. Quais são as suas melhores e maiores lembranças da época da construção da casa e de quando vocês se mudaram pra cá?
Na época da construção, eu não acompanhei muito. Eu vinha de vez em quando, gostava, mas não me envolvi com a construção. A época da mudança, porém, foi um sonho realizado.
Teve uma fase de adaptação por conta da arquitetura da casa der muito específica?
Não, eu me adaptei imediatamente. Não teve problema nenhum, nem pra mim, nem pras crianças.
Qual é a história do anfiteatro? É assim que vocês chamam?
Sim, é uma espécie de anfiteatro. É difícil até de descrever. No lugar de fazer um muro de arrimo, ele inventou isso. Foi um espaço em que teve muita festa, as crianças brincaram nesse espaço, que era recheado de almofadas que ele fez pra mim pra comemorar a conclusão do meu mestrado, com almofadas verdes e vermelhas. As crianças aproveitavam muito esse lugar. Toda quinta-feira tinha um sarau. Porque, quando você fica velho, os grandes amigos ou ficam doentes, ou partem, então aproveitei que criaram um grupo de vizinhos para cuidar da praça do bairro e comecei a convidá-los pra vir aqui e fazer esses saraus. Uma atividade sem programa estabelecido, cada um faz o que quer. Quem toca piano, toca piano, quem toca violão, toca violão, quem não toca nada, a gente bate papo, enfim. Às vezes vem cinco pessoas, às vezes vem 15, eu nunca sei. Então criei outro círculo de amigos, muito mais novos do que eu, mas é muito interessante, muito gostoso.

E como é conviver com os objetos desta casa?
Eles são a minha vida inteira. Tem uma foto minha numa daquelas cadeiras quando eu tinha seis meses. Os móveis vieram da Itália, do apartamento do meu pai. Trouxe assim que ele faleceu. São peças com que convivi a minha vida inteira.
Tem algum único objeto a que a senhora tem muito apreço?
Aquele Pinóquio, eu comprei numa papelaria de Milão, onde eu comprava meus cadernos da escola primária. Aqueles vasinhos eram uma coleção do meu tio, que morou na Colômbia muitos anos. Aquele desenho foi um arquiteto que veio visitar a casa e fez em cinco minutos. As fotos são todas dos meus entes queridos, vivos e mortos. É como se fosse aquelas árvores mexicanas, onde se põe o retrato de todo mundo. Tem meus netos, tem meus filhos, tem meus amigos. Esse é meu cunhado, aquela lá em cima é a mulher do arquiteto Joaquim Guedes, que era muito amiga minha.
Eu amo o trabalho dele também. Vocês eram amigos?
Eu trabalhei com ele. Sou socióloga, mas trabalhei com sociologia urbana, então estivemos juntos no projeto de Marabá e Carajás. E conheci ela, que era praticamente a alma do escritório.
A senhora falou que foi muito envolvida nos interiores, se envolveu nos pisos.
Sim, só nos pisos, praticamente. O mobiliário foi um processo que começou com a partida do meu pai, aos 92 anos. Passei a preencher com os móveis que também eram dele e com a minha história. Aqui não tem nada comprado em loja de decoração, porque prefiro os objetos com seus significados. Uma cadeira dessas, por exemplo, deve custar uns R$15 mil a R$20 mil, se for nova. O valor que enxergo nela é o de ter sido a cadeira onde meu pai tirava soneca à tarde. Pra mim, não interessa quanto algo custa ou custou.
Qual é o papel da beleza na sua vida?
Fundamental, mas ela tem que estar associada a uma história. Olha isso, isso daqui é um castelo do século XII na França. Esse daqui é o dono dele, ele fez 90 anos esta semana. Nós somos amigos desde que eu tinha 24 anos. Ele tinha 29 anos quando a gente se conheceu.


Uau, que lindo. Conheceu ele na Itália?
Não, aqui no Brasil. Foi por acaso, no Guarujá, um dia que eu estava com uns amigos. Ele saiu do mar e se juntou a esse grupo. Eu falava francês muito bem, porque minha avó tinha me ensinado, e começamos a conversar. Somos amigos até hoje. Esse castelo é lindo, mas tem um valor que é muito mais sentimental. Esses livros são todos antigos. Então a beleza é isso.
É esse tempo.
Esse tempo, essa ligação. A gente se correspondeu durante 30 anos por cartas. Ele casado, eu casada, mas amigos. Isso é muito raro. E não existe mais. Essa é a beleza pra mim. O tempo, a conexão, os gostos parecidos, a história comum. São esses laços que contam na vida.
A senhora acha que teria feito esse laço com ele através de mensagem de texto?
Não. Completamente diferente. A ligação que eu tenho com a minha família italiana foi através das cartas. Eu tinha 12 anos quando vim pra cá. Agora tenho 85. E o laço se mantém. Agora a gente não escreve mais carta, a gente se liga pelo WhatsApp. Mas a ligação, ela de certa forma se perde.


Ninguém escreve nada, e a escrita é tão importante. Eu acho que, no fim, já que a gente estava falando de amizade, as pessoas hoje não disponibilizam tempo pra isso.
Pode ser. Isso mudou muito. O mundo digital tem muitas vantagens. Eu conheço, tento me adaptar, mas gosto de ler jornal em papel, acho prático. Praticidade é uma coisa, conexão é outra. Conexão é mais profunda, é mais íntima, mais verdadeira. E praticidade é uma coisa útil.
O que significa o ato de tomar um cafezinho com alguém?
Ah, eu gosto muito. Sempre ofereço para as pessoas que vêm aqui. Na Itália, se convida muito para tomar café fora de casa. É um momento de encontro, e momentos de encontro são fundamentais.

A senhora falou muito bem, na Itália o hábito é muito pra fora. Aqui é mais em casa. Nunca tinha parado pra pensar nisso. Acho que tomar um café fora é uma coisa muito vinculada a trabalho aqui no Brasil.
É. Por exemplo, eu encontro minhas amigas na rua para bater um papo, mas dificilmente para tomar um café.
Nunca tinha pensado nessa localização específica do hábito do café no Brasil.
Sim, fora de casa você vai para o cinema. Café a gente gosta mesmo é de tomar em casa.

Objeto de Carinho
de Maria Luisa Barreto
Maria Luisa vive rodeada de muitos obejtos e, obviamente tem muitos objetos de carinho, mas destacou este Pinóquio comprado por ela na Itália, no lugar onde comprava seus materiais escolares, e que a acompanha desde então.

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