
Da gargalhada à crítica: no Brasil, rir é coisa séria
Parte da identidade nacional, o humor mostra um país que busca narrar a si próprio pela graça.
Desde sempre, nós brasileiros nos comunicamos pela linguagem informal, florescendo a partir dela, muitas vezes, o lado jocoso, o deboche, o humor histriônico e, claro, o improviso. Faz parte de quem somos. “Está no sangue”, diriam alguns. Agora, passado um quarto de século XXI, os memes deram forma digital a um impulso praticamente ancestral e, respondendo a algo tão intrínseco à nossa essência, nada mais justo que uma exposição dedicada ao tema. MEME: no Br@sil da Memeficação está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo. Sinal dos tempos, não é? Mas, nesse caso, a expressão vem à ponta da língua com aura positiva.

À primeira vista, a ideia parece improvável e até fora de propósito. Reunir num espaço museológico piadas cujo âmago reside na reprodução em massa, na falta de apuro estético? Como transformar em objeto de contemplação aquilo que vive da velocidade, da efemeridade, do calor do momento? Mas é justamente nesse esforço de subversão de valores que a exposição mostra a que veio. Esse humor talvez não caiba num catálogo tradicional, mas tê-lo nesse tipo de espaço é, enfim, reconhecê-lo, chancelado por uma entidade cultural de primeira linha, como linguagem, crítica social e, sobretudo, afeto coletivo.
A curadoria de Clarissa Diniz e Ismael Monticelli, em parceria com o @newmemeseum, organiza o percurso em seis núcleos temáticos. São ambientes imersivos que misturam neons, esculturas, vídeos, figurinos, pinturas e experiências interativas. Do “sanduíche-iche” — que já existe há duas décadas, advindo de uma época em que o termo “meme” nem fazia parte do nosso vocabulário — às dancinhas virais da Carreta Furacão, atravessa-se um labirinto onde a zueira revela um país inteiro tentando se narrar pela graça.
“Memes não são só piadas. Eles são ferramentas políticas, culturais e afetivas”, explica Clarissa. “São como o Brasil elabora, disputa e negocia suas diferenças em tempo real.” E Ismael Monticelli, categórico, arrebata: “Enquanto fazemos memes, os memes refazem o Brasil.”


Talvez esteja aí o centro da questão: engana-se quem pensa que rir é um ato de distanciamento e de mero desdém. Ele é, na verdade, uma forma de agir. Articular ideias, e, convocar as pessoas à roda, é o que o humor faz de melhor — para o bem e para o mal.
Ciente disso, a exposição apresenta um núcleo chamado Combater ficção com ficção, que reflete sobre como o humor participa da disputa política. A sátira, por exemplo, pode iluminar contradições, mas também ser arma de desinformação. O riso, no auge dos seus extremos, pode libertar e, a quem convier, também pode ferir. Essa tensão atravessa a mostra inteira. De certa forma, atravessa todos nós.

O núcleo A Hora dos Amadores celebra o gesto criativo que nasce à margem do “profissionalismo” e que, justamente por isso, carrega a potência de subverter hierarquias. O vídeo mal editado, a montagem improvisada, o humor tosco e toda essa “estética do erro” pode ser uma escolha consciente, mas, na maioria das vezes, é o acaso que impõe seu ritmo e define a magia. Basta um comentário solto, um tweet despretensioso, um registro caseiro ou até uma gafe televisiva para acionar a alquimia da reprodução. É nesse território que o brasileiro brilha com intensidade única. Expandir o que já está dado é quase um talento nato. Levar uma piada até às últimas consequências e fazê-la atravessar conversas, telas e discursos é uma habilidade coletiva que nos caracteriza. Não há síntese mais precisa desse espírito do que o meme.
Há maneira mais simples e concisa de dizer que se está diante de uma situação absurda, entre o choro e o riso, do que um simples “kkkcry”? Honestamente, duvido muito.


É interessante pensar que, com essa exposição, a distância entre o que é arte e o que fazemos ao longo do dia fica menor. Não estão expostos artistas que passaram anos e anos estudando, não estão naquelas paredes quadros que requerem um olhar mais refinado para serem compreendidas, não estamos falando obras que se pretendem revolucionárias. O que se vê no CCBB, espaço que já recebeu nomes dos mais altos calibres, são as imagens que circulamos entre nós todos os dias. Nesse gesto, há uma espécie de reparação. Justiça é feita, pois ninguém sabe melhor do que nós que a criatividade que pulsa nos memes é, sim, preciosa.
O neon verde instalado no CCBB é certeiro: “O Brasil é um meme que nunca dorme.”
Que fique claro: quando transformamos a tragédia em meme, não estamos banalizando o sofrimento, mas criando condições para atravessá-lo coletivamente. O riso online foge da solidão por compartilhar uma experiência de mundo e criar comunidade em torno do absurdo.
Falar de memes é falar da vida comum. Falar de riso é falar de sobrevivência. Há tempos, o humor foi compreendido como mecanismo de defesa, com a psicanálise o reconhecendo como uma das formas mais engenhosas de contornar a dureza do real. O Brasil, por sua vez, levou essa estratégia a outro patamar, transformando-a em marca identitária.
O espírito é esse: por aqui, rir é coisa séria.
MEME: no Br@sil da Memeficação
Até 3 de novembro, de quarta a segunda, das 9h às 20h
Centro Cultural Banco do Brasil (Rua Álvares Penteado, 112, São Paulo)
Grátis
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