
Suor e esplendor: Trabalho de Carnaval
Exposição na Pinacoteca de São Paulo entrega o protagonismo aos bastidores da festa popular.
A Pinacoteca encerra o ano com uma exposição que, numa feliz exceção, desvia o olhar do desfile e o direciona para a correria que põe o festejo inteiro de pé. Trabalho de Carnaval, em cartaz no edifício Pina Contemporânea, parte de uma constatação simples, raramente lembrada: por trás da maior festa popular do país há um ofício contínuo, feito de repetições, improvisos e convicção. O resultado dessa investigação já está em cartaz e pode ser visto até 12 de abril de 2026.

Com curadoria de Ana Maria Maia e Renato Menezes, a mostra reúne 200 obras de 70 artistas de diferentes origens e gerações. Fotografias, vídeos, adereços, maquetes e croquis formam um panorama do Carnaval como cadeia produtiva e campo de imaginação coletiva. A exposição não se propõe a capturar a festa em si, mas o processo por trás dela, jogando o holofote sobre esse território em que a criação conceitual e o trabalho manual se confundem. Se, como dita o clichê, somos o país do carnaval, antes de tudo somos o país da peleja e do suor.
Os quatro núcleos — são eles Fantasia, Trabalho, Poder e Cidade —, mostram as diferentes camadas do Carnaval. Em Fantasia, há o gesto de planejar e sonhar a festa. Estudos de J. Cunha para o Carnaval de Salvador e de Joana Lira para as ruas do Recife revelam a força do desenho como primeira forma de desfile. Tudo que encanta e fascina vem de um esboço, ainda que esse processo de criação muitas vezes não ganhe o devido destaque, já que os louros vão para o resultado final.

No núcleo Trabalho, a festa se despe de qualquer romantização e é aí que surgem os corpos que costuram, pintam, levantam estruturas e colam lantejoulas madrugada adentro. São as mãos que fazem o espetáculo acontecer, mesmo quando o país insiste em não enxergá-las.

No núcleo Cidade, o Carnaval ganha escala urbana. Fotografias de blocos, cortejos e agremiações revelam o modo como a festa ocupa o espaço público, um gesto que é, também, uma importante afirmação de pertencimento. A rua, tomada pela música e pela cor, se transforma em um território simbólico de disputa e de encontro.

Já o núcleo Poder inverte as hierarquias: trabalhadores rurais se tornam reis do maracatu, mulheres negras assumem o centro da festa, corpos periféricos ocupam a narrativa.

A mostra é, nesse sentido, uma aula sobre a economia simbólica do Brasil. O Carnaval é o espelho de um país que produz beleza em meio à precariedade, que transforma falta de recursos em invenção. A Pinacoteca, e os curadores Maia e Menezes, traduzem esse paradoxo ao montar um espaço que é simultaneamente museu e ateliê, onde a arte contemporânea convive com o saber popular, sem hierarquia.
Muito da força da exposição está naquilo que não se vê de imediato. Quem passa pelas salas não escuta o barulho das máquinas de costura nem sente o cheiro da cola quente, mas há algo desses ruídos que resiste nas imagens e faz, sim, ecoar esses sons, discerníveis a quem se atenta. O brilho exposto nos painéis é resultado de meses de cansaço, da pressão dos prazos, do ritmo que se acelera à medida que o desfile se aproxima — e tudo isso é um desfile por si só.



Um grupo que encarna com força essa vivência, que é praticamente a costura entre invenção, exaustão e desglamourização, são os bate-bolas. Presentes nos subúrbios do Rio, eles formam uma espécie de espelho distorcido e fascinante do próprio carnaval: anônimos sob máscaras exuberantes, movidos por uma energia de manter uma tradição viva e criar novas formas de existência. Assim como os artistas e trabalhadores que sustentam o espetáculo das escolas de samba, eles vivem o carnaval o ano inteiro, para além do espetáculo, como prática cotidiana de criação.
Em entrevista para a edição Amarello Sonho, a pesquisadora Rafaela Pinah, que acompanha esses grupos desde 2016 e atua na direção criativa de muitas deles, descreve esse universo como uma “economia criativa dos bairros”. Ali, a produção é constante, o fluxo de dinheiro e de afeto em algum nível circula o ano inteiro, e a potência cultural se sustenta à margem das grandes estruturas. “Hoje essas pessoas podem vislumbrar o lugar dessa potência cultural”, comentou Pinah, “de agentes culturais locais, trabalhando inteiramente para a cultura do governo do Estado do Rio de Janeiro, criando e trocando com as turmas, trazendo um trabalho psíquico e pedagógico também para essas crianças.”
Os bate-bolas são uma síntese do que há de mais genuíno no Carnaval, que é a capacidade de criar mundos a partir do que se tem. A cola, o tule, o glitter, os restos de tecido e o tempo roubado entre um trabalho e outro se transformam em fantasia, identidade e presença. É um gesto de resistência e de beleza que escapa da lógica da passarela e retorna às ruas, às vielas, às calçadas onde o carnaval nunca deixou de existir. Essa realidade é trazida à tona por Trabalho de Carnaval, mesmo quando não a explicita. Cada obra da mostra parece carregar a memória desse corre coletivo, amplificando o ruído e a magia que brilham por detrás das sombras.
Esses bastidores constituem um modo de vida, um sistema de saberes compartilhados que se repete a cada ano, como um ciclo que o tempo e o cansaço não conseguem interromper. Ao trazer esse universo para o espaço expositivo, a Pinacoteca questiona a própria noção de arte institucional. O que acontece quando o museu se abre para o trabalho que o Carnaval representa? O que se transforma quando o gesto popular é observado como produção estética e social? Há, em Trabalho de Carnaval, uma tentativa de corrigir uma antiga miopia cultural, que considera arte apenas aquilo que chega pronto, limpo, apresentado. O processo também pode ser esplendoroso.

O Carnaval, como símbolo de nossas contradições, concentra o desejo de liberdade, a falta de estrutura, a potência criativa e a desigualdade persistente. É uma celebração que começa muito antes do samba e continua quando o silêncio volta a ocupar as ruas.
Mas o brilho nunca esteve só na avenida. Ele começa nas mãos que fazem. E é a elas que a Pinacoteca dedica, com precisão e respeito, o seu último samba do ano.
Trabalho de Carnaval
De 8 de novembro de 2025 a 12 de abril de 2026
Edifício Pina Contemporânea (Grande Galeria)
Endereço: Avenida Tiradentes, 273, Luz, São Paulo — SP.
Horário de funcionamento: de quarta a segunda, das 10h às 18h.
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